domingo, 26 de fevereiro de 2006

Covadonga

..."‑ Velho lobo do Hermínio, aproxima‑te - disse Pelágio em tom de gracejo, como que tentando afastar as tristes idéias que lhe oprimiam o espírito. ‑ Que buscas a tais desoras? Tiveste, acaso, em sonhos saudades das barrocas das tuas serras nevadas, e creste que Covadonga era o antro de teu irmão, o javali?

‑ O caçador das montanhas ‑ replicou o lusitano, na sua linguagem pinturesca de bárbaro ‑ não estaria aqui, se a saudade dos lugares em que nasceu lhe morasse no coração. Os homens de além do mar mataram‑lhe ou cativaram‑lhe mulher e filhos quando estes, por seu mal, num dia em que ele perseguia nos cimos da serra os lobos ferozes, ousaram descer com o rebanho aos vales do Munda. Por isso te segui eu, ó godo: tu derramas o sangue dos homens de além do mar, e eu quero derramá‑lo também.

‑ A que vens, pois aqui? ‑ replicou Pelágio, a quem as palavras do celta traziam de novo ao espírito a lembrança de que também ele era, talvez, órfão de irmã querida.

‑ A dizer‑te que um desconhecido chegou ao vale. Repete não sei que nome godo, como o teu; de Hermengarda, me parece. Pede para te falar.

‑ Onde está ele? ‑ exclamou Pelágio, em cujos olhos brilhara a esperança misturada de temor. ‑ Que venha! oh, que venha breve!

E, alevantando‑se, encaminhou‑se ligeiro para a entrada da gru­ta, de onde Gutislo outra vez desaparecera. Antes, porém, que aí chegasse, um velho, cujos trajos desordenados, rotos e cobertos de lodo davam indícios de ter atravessado largo espaço das serranias, entrou na caverna e, arrojando‑se aos pés do duque de Cantábria, rompeu em soluços, sem poder proferir palavra.

Num relance Pelágio o conhecera.

‑ Aldefonso! onde está Hermengarda? Bucelário! onde está a filha do teu patrono?

O velho tentou responder; porém não pôde, e continuou a soluçar.

‑ Entendo‑te: é morta! Nunca mais te verei, minha pobre irmã! ‑ murmurou o mancebo, escondendo o rosto entre as mãos.

Ao gardingo, que durante esta cena se conservara imóvel, fugiu um gemido abafado. Depois, levou o punho cerrado à fronte, como se quisesse conter aí uma idéia dolorosa que tentava resfolegar.

Houve largo espaço de temeroso silêncio. O velho quebrou‑o por fim:

‑ Não; não é morta! Mas, porventura, ainda o seu fado é mais horrível. Jaz cativa em poder dos infiéis. Não me foi dado salvá‑la, e não quis morrer sem vos dar esta nova cruel. Agora...

Um brado de Pelágio atalhou as palavras do bucelário sufocadas pelo choro.

‑ As minhas armas e o meu cavalo! Que me dêem o meu franquisque! Velho vilíssimo, já que não soubeste deixar‑te despe­daçar junto dela, dize, ao menos, onde poderei encontrar os pagãos que cativaram Hermengarda.

Lavado em lágrimas, o ancião narrou‑lhe em breves palavras os sucessos que se haviam passado no mosteiro da Virgem Dolorosa. Ele tinha feito tudo para a resolver a tentar a fuga. "Ainda na cripta fatal ‑ concluiu Aldefonso ‑ através das grades que me embargavam os passos, por vós, pelas cinzas de vosso pai, lhe supli­quei de joelhos que me acompanhasse. Os velhos bucelários de Favila, no meio do tumulto, a teriam, talvez, posto em salvo! Sorriu, porém, das minhas esperanças e conservou‑se firme no seu propósito. Mas Deus tinha ordenado que, em vez de obter o martírio, caísse nas mãos dos agarenos. De todos os que vínhamos em sua guarda, só eu, acaso, pude escapar, misturado com os soldados da Transfretana. Assim, segui por algum tempo os árabes, que se encaminham para o lado de Segisamon. Ao anoitecer, embrenhei‑me nas montanhas. Um pastor que encontrei me serviu de guia, até que cheguei aos pés de meu senhor para lhe pedir a morte e para lhe jurar que estou inocente."

‑ De pé, cavaleiros! Aos infiéis, em nome de Cristo! ‑ gritou o duque de Cantábria, com uma voz que retumbou nas profundezas da caverna."...
Eurico, o Presbítero, Alexandre Herculano
Fonte: HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. 7ed. São Paulo : Ática, 1988 .
Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa
Texto-base digitalizado por: Paula Regina Cícero Yort

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