quinta-feira, 13 de abril de 2006

Provincianismo, clericalismo e estagnação cultural

Portugal festeja – de 17 de agosto de 2000 à mesma data de 2001 – o Ano Eça de Queirós, pelo centenário de sua morte. Exposições, simpósios e conferências, além de concursos literários, reavaliam a figura do grande escritor cuja fama, em vida, ultrapassou as fronteiras de Portugal e encontrou no exterior – principalmente no Brasil – uma acolhida mais imediata e calorosa do que em seu próprio país. Não é de admirar. Em Portugal, perseguia-o a censura oficial do governo monárquico. Contava também com maior resistência dos próprios leitores, pois usava suas grandes qualidades de observação e crítica diretamente sobre a sociedade portuguesa da época, denunciando seu provincianismo, clericalismo e estagnação cultural, sua corrupção política, e criando uma galeria de personagens e histórias cuja força resiste ao passar do tempo – saltam ainda hoje diante de nós, vivas, coloridas, universais.

Mas o Brasil tem um motivo mais direto para associar-se aos festejos de ultramar: nos últimos 20 anos de vida, quando estava justamente no apogeu de seu talento, Eça – que iniciara a vida profissional no jornalismo, e nunca o abandonara – tornou-se colaborador regular de um de nossos maiores jornais, a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. E nele publicou até alguns de seus romances, sob a forma de folhetins.

"Mãe incógnita"

Era uma vez... na cidadezinha pitoresca de Viana do Castelo, uma jovem de boa família que no ardor de seus 19 anos cometera, no ano de 1845, uma falta que – apesar de bastante corriqueira desde os primórdios da humanidade – para seu meio e época não encontrava perdão: tomara-se de amores por um belo rapaz de uma vizinha cidade, e engravidara. Esses personagens chamavam-se Carolina Augusta Pereira de Eça, filha de um general já falecido, e José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, que em Vila do Conde exercia a função administrativa de delegado do procurador régio.

Segundo o uso hipócrita da época, Carolina teve de deixar sua cidade e refugiar-se em casa de um parente, numa afastada praia de pescadores, Póvoa de Varzim, onde a 25 de novembro de 1845 deu à luz o fruto de seu pecado – o futuro escritor José Maria Eça de Queirós. A criança foi logo entregue para criação a uma ama, muito pobre e mulata – Ana Leal de Barros, brasileira, natural de Pernambuco –, casada com um alfaiate de Vila do Conde.

Há algo de muito estranho e misterioso na atitude dos pais que o abandonaram: eram ambos solteiros, jovens, do mesmo meio. Portanto, não havia objeção legal ou social, nem empecilhos familiares que os impedissem de legalizar a união e reconhecer o filho. Continuaram a manter relações, e a ter outros filhos. Casaram-se quatro anos depois do nascimento de José Maria, mas continuaram a mantê-lo escondido. Pelo que parece, nem o visitavam. Ao contrário do que costuma acontecer, o pai foi, dos dois genitores, o que se preocupou mais com ele. Tanto que reconheceu-o logo, declarando no batismo que era filho seu, mas de "mãe incógnita". E como criança que devia permanecer esquecida e oculta, deram-lhe como padrinhos a própria ama e o Senhor dos Aflitos.

Embora haja divergência entre os biógrafos de Eça quanto à figura familiar que mais teria insistido para que o romântico par se casasse – uns dizem que o desembargador Queirós seria o mais insistente, outros que a avó materna fizera-lhes o pedido, no leito de morte –, todos parecem convergir num ponto, que não deixa de ser curioso: ao contrário do que se espera, a resistência ao casamento seria da parte de Carolina Augusta, tida como "romântica" e "orgulhosa". Não se sabe muito mais dela, mas seu comportamento de desafio à sociedade era evidente.

Um de seus biógrafos e críticos, o ensaísta José Maria Bello, fala do empenho do avô paterno no casamento. Figura interessante também, essa de Joaquim José de Queirós e Almeida – foi um herói das lutas liberais e por volta de 1820 tivera de fugir para o Brasil, para salvar a pele. Trouxera consigo a moça Teodora de Almeida, que depois se tornaria sua mulher. Do Brasil levara, ao voltar a Portugal, a mucama Ana Leal, que lhe criara o filho (pai de Eça), nascido no Brasil, e lhe criaria também o neto.

Somente quando Eça contava 41 anos e ia casar-se com Emília de Castro Pamplona, filha da condessa de Resende, foi que os pais consentiram em declarar que José Maria era seu filho legítimo.

O ressentimento pelo abandono materno está refletido em todos os romances de Eça. A figura da mãe leviana, que abandona o lar, é repetida pelo menos em Os Maias e em A Tragédia da Rua das Flores – é a sua conduta que, tanto em um como em outro livro, provoca o incesto. Em Os Maias entre irmãos (Carlos e Maria Eduarda), que não se conhecem por terem sido criados separados, e na Tragédia entre mãe e filho (Genoveva e Victor) – abandonando-o recém-nascido, ao voltar a Lisboa após 23 anos a sedutora mãe, sem o saber, acaba envolvendo-se com o filho.

À figura da mulher, vista quase sempre com temor e desconfiança, Eça, apesar de seu pretenso "realismo", opunha a mais romântica visão da "mulher virtuosa", que vivia para o lar: "Prática, positiva, doméstica, hostil à fantasia, tem uma alta idéia da sua missão... julga-se e tem o orgulho de Previdência e reina verdadeiramente", como diz em um artigo de 1872.

Estudante medíocre

Quando Ana Leal morreu, o menino, que então contava de 6 para 7 anos, foi entregue diretamente aos avós paternos, para que continuassem sua criação. Aos 11 anos sofre também a perda da avó, dona Teodora. É então internado no Colégio da Lapa, no Porto, cidade onde residiam seus pais. Estes já tinham tido mais quatro filhos, mas o primogênito bastardo continuou a ser discriminado, sem nunca poder se integrar muito bem à estrutura familiar.

Para compensar, seu tempo no colégio foi feliz e sua inteligência logo reconhecida e alimentada – o filho do diretor era Ramalho Ortigão, mais velho nove anos do que Eça, e tornou-se seu grande amigo e guia intelectual. Uma amizade e parceria que se prorrogariam por toda a vida. Ensinou-lhe francês e fez com que lesse os escritores da época, principalmente os românticos Almeida Garrett (que teria muita importância em sua formação) e Alexandre Herculano, autor de grandes romances históricos. Mais tarde ambos escreveriam juntos uma série de virulentos artigos, englobados sob o título de As Farpas, e uma reportagem fictícia e romanceada, O Mistério da Estrada de Sintra. Juntos criariam também um personagem famoso, Carlos Fradique Mendes, a quem dotariam de biografia fictícia e de extensíssima correspondência.

Aos 16 anos Eça foi cursar leis na Universidade de Coimbra, onde permaneceu seis anos (de 1861 a 1866). Pode-se compreender como a vida livre da qual enfim o jovem pôde gozar embriagou-o. Cidade voltada para a famosa universidade, uma das mais antigas e conceituadas da Europa, Coimbra oferecia tudo para seus estudantes – do alimento intelectual à vida boêmia. Foi esta que mais o seduziu, pois os estudos de direito sempre o entediaram profundamente. João Gaspar Simões, autor do estudo introdutório à Obra Completa de Eça de Queirós (Editora Aguilar), define-o como estudante medíocre, "vagabundo das ruas luarentas da velha Coimbra", pouco amigo de freqüentar os círculos intelectuais. Revelava o jovem, entretanto, grande interesse pelo teatro. Estimulado pelo amigo Carlos Meyer, tornou-se ator no Teatro Acadêmico, o qual, por coincidência, seu próprio pai ajudara a fundar, quando estudante, e onde também atuara. Esse seu interesse por "entrar nos personagens" foi aos poucos sendo canalizado para a literatura – não é outra coisa que os romancistas em geral fazem. E a estrutura dramática que conseguiu conservar na criação de seus romances é responsável por seu êxito, permitindo que até hoje eles possam ser lidos com agrado.

Ainda em Coimbra Eça conheceu, embora superficialmente, os poetas Antero de Quental e Teófilo Braga, que já manifestavam de maneira articulada o desejo de renovar a literatura portuguesa, investindo contra os românticos e os classicistas do tipo de Antônio Feliciano de Castilho. A Questão Coimbrã marcou época, animando o debate intitulado "Bom Senso e Bom Gosto" em que os jovens intelectuais, mais tarde agrupados sob o rótulo "geração 70", procuravam inserir no provincianismo do Portugal monárquico e ultramontano o espírito de renovação do "pensamento novo", que vinha principalmente da França.

Embora Eça declarasse mais tarde que a essa polêmica assistira de longe, à semelhança de algum entregador de pães que tivesse presenciado, também de longe, a tomada da Bastilha e depois seguisse seu caminho assobiando, é evidente que teve muita influência sobre ele esse clima coimbrense, agitado pelos vários ismos – positivismo, agnosticismo, anticlericalismo, darwinismo, socialismo – que iam lançando no "jardim d’Europa à beira-mar plantado" raízes fundas de árvores perenes. As da modernidade.

Ecos românticos

O ano de 1866 marcou tanto a formatura de Eça em direito como sua estréia literária. Publicou na Gazeta de Portugal em março daquele ano um poema em prosa em que os temas do amor e da morte se entrelaçavam, muito no estilo do poeta romântico alemão Heinrich Heine. Em julho Eça dizia adeus a Coimbra e instalava-se na casa paterna, na capital. O pai e o avô queriam que desse continuidade à tradição familiar, na advocacia ou na magistratura. Eça tentou contentá-los, mas fracassou. Estava fascinado pelo jornalismo, que nunca abandonaria, e começava a publicar também suas primeiras obras de ficção, em folhetins. O ensaísta José Maria Bello chama a atenção para o caráter bem jornalístico de seus romances: "Toda a sua obra madura seria o desdobrar de sua atividade jornalística", pois levou para ela a temática do cotidiano da sociedade, o estilo direto, objetivo, criando seus imortais personagens de carne e osso.

Para aproveitar o talento do filho e ao mesmo tempo dar-lhe oportunidade para seguir uma carreira, José Maria pai tentou ainda encaminhá-lo para o campo político. Conseguiu que fosse dirigir em Évora um jornal que um grupo hostil ao governo acabara de fundar, O Distrito de Évora. Eça desincumbiu-se bem da missão, mas o tédio provinciano pesava-lhe demais. Não conseguiu ficar mais do que oito meses fora de Lisboa. Quatro anos mais tarde, entretanto, convencido de que nem o jornalismo nem a literatura supririam jamais suas necessidades financeiras, faria concurso para a carreira consular, que lhe daria pelo menos estabilidade, já que durante a vida toda continuou a lutar com problemas de dinheiro. Exerceu suas funções consulares nas Antilhas e na Inglaterra e, quando faleceu, vítima de tuberculose, era cônsul em Paris.

Retornando à capital, após o período passado em Évora, o jovem retomou imediatamente a vida que tanto lhe aprazia e a parceria intelectual com seus amigos, como Ramalho Ortigão, Antero de Quental, que regressara da França e vinha cheio de idéias novas, Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis e vários outros. Em um cômodo alugado na Travessa do Guarda-Mor – por eles denominado de Cenáculo Patriótico – para desespero dos vizinhos reuniam-se para declamar versos de Victor Hugo e Baudelaire em tertúlias literárias que varavam a noite e geralmente iam terminar ruidosamente em alguma taberna ou bordel, entre grandes comes e bebes. Perpassa em toda a obra eciana a sensualidade da gula exaltada, o louvor dos quitutes refinados, o aguçamento de todos os sentidos.

Diz João Gaspar Simões: "Nessa atmosfera crepitante, onde se caldeia um romantismo ardente com um aguerrido positivismo, constitui-se, pouco a pouco, um núcleo intelectual como outro ainda não fora visto entre nós". Influenciados pelo socialismo, que logo depois ganharia forças com o episódio sangrento da Comuna de Paris (1871), nesse final dos anos 60 a maioria desses jovens passava dos debates intelectuais à ação política. Discursavam em reuniões operárias em que se falava da Internacional Socialista, distribuíam panfletos e anunciavam a revolução como "prestes a arrebentar, para a semana".

Apesar de muito jovem, Eça de repente mostrou grande consciência da necessidade das mudanças sociais. Certamente sua infância sofrida e a criação entre os mais pobres na aldeia afinaram-lhe a percepção, dotando-o do espírito agudo de observação e descrição que exerceu plenamente. E assim, traçando um plano de trabalho, procurou moldar seu estilo segundo o caminho dos escritores franceses que mais admirava: Flaubert, Balzac (que o antecediam de uma geração) e Zola, seu contemporâneo.

Na trilha do realismo

O momento exato dessa tomada de atitude é 1871, quando Eça pronuncia no Cassino Lisbonense uma histórica conferência, "O Realismo como Nova Expressão da Arte", patenteando suas intenções: "Que queremos nós com o realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado: queremos fazer a fotografia, para dizer a caricatura, do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, e apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático, preparar a sua ruína".

Nos 30 anos seguintes Eça estaria entregue à feitura regular de seus romances de crítica social, sem deixar de escrever artigos, crônicas e contos, participar de polêmicas ou corresponder-se longamente com os amigos. Após o grande sucesso obtido com O Crime do Padre Amaro e com O Primo Basílio, pretendia criar, à semelhança do que fazia Émile Zola com sua série dos Rougon-Macquart, um conjunto seqüencial de romances intitulado Cenas da Vida Real (ou Cenas Portuguesas, ou Cenas da Vida Portuguesa). Alguns livros menores, como A Capital, O Conde de Abranhos, Alves & Cia. e A Tragédia da Rua das Flores foram escritos com essa intenção, mas permaneceram inéditos até muito depois de sua morte. E o grande projeto foi abandonado quando o escritor dedicou-se completamente à obra Os Maias, considerada sua obra-prima e publicada em 1888.

Na última década de sua vida, tanto sua situação de homem bem-casado e pai como a atuação no meio diplomático e o convívio da alta sociedade abrandam a virulência de sua crítica, "reconciliam" o antigo rebelde com a pátria, de cujas paisagens e gente sente nostalgia. Seu estilo, por volta dos 50 anos, perde em agressividade mas ganha em clareza, e Eça produz duas obras maiores – A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras – que serão publicadas somente após sua morte, em 1900 e em 1901.

Vários de seus críticos lamentam, tomando como fraqueza, essa sua atitude. Outros, pelo contrário, vêem nessa mudança um sinal de maturidade. Pelo menos maturidade estilística era, sem dúvida. Se não houvesse morrido aos 55 anos, justamente quando começava a escrever dessa outra maneira, Eça teria certamente descoberto novos e estimulantes caminhos para a literatura de seu tempo.

A mudança natural que, em cada geração, "transforma em bombeiros de hoje os incendiários de ontem" pode no caso de Eça de Queirós ser detectada comparando-se o grupo dos exaltados do Cenáculo de 1870 ao aristocrático, hedonista e bem-pensante Vencidos da Vida, fundado por ele e pelos amigos por volta de 1888, cujos grandes feitos não passaram de alguns poucos e fartíssimos banquetes em hotéis de luxo, em Lisboa e em Paris...

Do imenso espólio literário que deixou, vêm sendo até hoje pescados originais deixados terminados ou para terminar, que estão ainda vindo à luz. Em 1925 seu filho organizou uma grande edição desses manuscritos. Mas um primoroso romance como A Tragédia da Rua das Flores somente seria publicado quase um século após a morte do romancista, em 1983.




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Jantar cor-de-rosa



Grande observador e crítico severo, Eça de Queirós descrevia, com estilo primoroso, situações vividas ou imaginadas. Veja alguns trechos de suas obras:

Fartura

"O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egito, emergia duma calda de cereja, e desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada!"

"...e ofereceu às suas amigas esse sublime jantar cor-de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as luzes, as louças, os cristais, os gelados, os champanhas, e até (por uma invenção da alta cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor da rosa, enquanto do teto, dum velário de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas..."

"Não só na vida íntima, mas na vida pública das nações, o jantar constitui a melhor e a mais solene cerimônia que os homens acharam para consagrar todos os seus grandes atos, imprimir-lhes um caráter de união e de comunhão social."

"O sacrifício da rês sobre a ara era uma espécie de merenda espiritual, em que o Deus, atraído pelo cheiro da carne assada, descia e se tornava acessível ao crente, partilhando com ele das vitualhas santas."

Miséria

"...E pareciam-lhe atrozes aquelas carruagens forradas de cetim, quando ela chapinhava na lama com o último par de botinas; e tantas frutas ricas nas lojas dos comestíveis, tantos pratos nos restaurantes, quando ela comera um pão e uma salsicha."

"Uma mulher macilenta, em farrapos, com uma criança doente, veio-lhe pedir esmola e olhava com dor para dentro, para os doces, os fiambres avermelhados, os potes de geléias, e para um senhor, que dava pastéis a um pequeno gordalhufo vestido de escocês, que lambia a nata, farto, sem vontade."

"Mas será justo ... que se tire um pedaço do pão do pobre para dar mais uma farda a um embaixador? Que se onerem os gêneros de consumo, a carne, o sal, o azeite, o arroz, o pão, para que no mundo oficial haja mais aparatos reluzentes e mais transformações feéricas?"
Cem anos após a morte, Eça de Queirós é mais atual do que nunca
CECÍLIA PRADA


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