sábado, 26 de abril de 2008

Será que valeu a pena tanto sacrifício deste Homem para se conquistar a liberdade?


Ser fiel a Salgueiro Maia

É com emoção que estou aqui para homenagear Salgueiro Maia, o símbolo mais puro do 25 de Abril e o seu herói mais incómodo. Incómodo pelo seu apelo à liberdade e pelo seu desapego do poder. Incómodo porque derrubou uma ditadura, ajudou a construir a democracia, arriscou sempre tudo e nunca quis nada para si, nem cargos, nem benesses nem honrarias.
Quando outros não acreditavam, ele acreditou. Quando outros tinham medo de ousar, ele ousou. Quando outros diziam que era impossível, ele partiu de Santarém, mal equipado e mal armado, mas “claro no pensar, claro no sentir e claro no querer”. E assim mostrou que com vontade e coragem é possível, por vezes, na História, concretizar a utopia.
O legado que ele nos deixou é o legado do seu sonho. O legado da sua coragem e da sua tolerância. Porque ele foi grande na decisão com que venceu, mas também na nobreza com que tratou os vencidos. E grande continuou, na modéstia com que se retirou de cena e na forma como desprezou a inveja e a mesquinhez, sorrindo por alto e por cima a vexames e humilhações que lhe fizeram. Várias vezes o ouvi dizer: - Qualquer dia sou acusado de estar implicado no 25 de Abril.

Herói incómodo. Homem de rigor moral e de exigência ética. A melhor forma de evocarmos Salgueiro Maia é não nos deixarmos acomodar. É sermos capazes de ser incómodos como ele foi, na defesa da dimensão ética e social do 25 de Abril. Porque o 25 de Abril não se fez apenas para restaurar as liberdades formais. Fez-se para construir uma democracia em que os direitos políticos sejam inseparáveis dos direitos sociais: o direito à saúde, à habitação, ao ensino, à cultura, ao trabalho. Todos esses direitos estão consagrados na Constituição. Pode haver diferentes concepções no modo de os concretizar, mas não se pode esquecer nem esvaziar o seu conteúdo, sob pena de enfraquecer os direitos políticos e a própria democracia.
Quero deixar aqui um apelo e um alerta: ser fiel à memória de Salgueiro Maia é dizer aqui hoje que não se pode desmantelar o Serviço Nacional de Saúde, não se pode abrir a porta a um sistema de saúde privada para ricos e a um sistema público para pobres. E também não podem privatizar-se serviços públicos que fazem parte da própria essência do Estado. Ser fiel à memória de Salgueiro Maia é combater com eficácia a corrupção e não permitir que interesses económicos ou mediáticos se sobreponham ao poder legítimo democrático.

Herói incómodo. Porque Salgueiro Maia queria uma democracia de valores e um Portugal mais limpo, mais justo e mais solidário. Neste tempo de inversão da História e subversão da memória, a atribuição pela Câmara Municipal de Santarém da medalha de oiro da cidade, a título póstumo, a Salgueiro Maia é em si mesma um acto de cultura democrática. Neste tempo de tanto egoísmo e tanta acomodação, ser fiel ao legado de Salgueiro Maia é ser inconformista como ele foi. Inconformismo contra a degenerescência de valores éticos, políticos e até nacionais. Inconformismo contra as tentativas de rever a História, de branquear o que não pode ser branqueado e de ressuscitar fantasmas que não podem ser ressuscitados.

Creio que Salgueiro Maia, mais do que lembrar o passado, gostaria que pensássemos nos seus filhos e em todos aqueles que ainda não eram nascidos em 25 de Abril de 1974. Porque foi por eles que ele arrancou de Santarém. Foi para eles que se fez a revolução. É por eles que temos de continuar a ser incómodos e inconformistas. Com esperança e confiança no futuro livre e democrático de Portugal. Porque essa foi a causa pela qual, há 33 anos, Salgueiro Maia saiu de Santarém para conquistar a vitória e entrar na modernidade.

Homenagem de Manuel Alegre a Salgueiro Maia por ocasião da entrega da medalha de oiro da cidade de Santarém a Natércia Maia

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