terça-feira, 22 de setembro de 2009

da sua própria militância comunista na luta antifascista

Para a Zita Seabra

Foi Assim

"AQUELE fora um mês de más notícias. O deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, descendente da velha estirpe paulista, pensava com alegria que dentro em poucas horas aquele fatídico mês de outubro do ano de 1937 estaria terminado, talvez novembro se iniciasse sob melhores auspícios.
Vinha de trocar de roupa e, ao esvaziar os bolsos do paletó que usara durante a tarde, encontrou o telegrama de Paulo. Mais uma vez o releu e logo o jogou sobre a cama num gesto irritado. Afinal quando êle chegaria? Por que se demorava em Buenos Aires? Nenhuma precisão no telegrama. Paulo poderia desembarcar de um avião a qualquer momento e se encontraria, com certeza, cercado de repórteres ávidos. Fez um esforço para não pensar no filho, na sua próxima chegada, no escândalo que o cercava.
Olhou-se novamente no espelho, antes de sair, e encontrou-se elegante no “smoking” bem talhado, um formoso homem ainda, apesar dos seus cinqüenta anos. Quem lhe daria essa idade? Soubera conservar-se jovem e os raros fios de cabelos brancos emprestavam-lhe um certo ar de distinção que ia a calhar num político da sua responsabilidade. Ajustou a gravata, agora pensava em Marieta Vale.
Na rua, o chofer curvou-se um pouco ao abrir a portinhola do grande automóvel negro. Artur ordenou:
– Vamos à casa do Costa Vale.
Chovera no principio da noite e o automóvel atravessava uma cidade molhada e semideserta nas ruas silenciosas do barro elegante. Através dos vidros, Artur enxergava os postes elétricos derramando uma luz baça sobre gotas d’água no passeio, dando-lhes um brilho de pedra preciosa. À proporção que avançavam para o centro da cidade o movimento aumentava e a marcha se fazia lenta. Uma longa fila de autos atulhava o viaduto do Anhangabaú, dirigindo-se ao Teatro Municipal. Enquanto esperava o descongestionamento do trânsito, Artur leu, quase soletrando através dos cristais úmidos, a inscrição em piche que mãos desconheci das haviam traçado sobre os sólidos muros do edifício monumental da Light & Power, monopólio americano da energia elétrica:
ABAIXO O IMPERIALISMO IANQUE VIVA O P.C.B.
E de novo foi lançado em turvos pensamentos sobre o mês de outubro e suas desagradáveis lembranças. O automóvel marchava outra vez mas Artur continuava a enxergar a inscrição subversiva. E ela relembrava-lhe a entrevista com o dirigente comunista, a precisão das palavras do moço, suas propostas de união e a perspectiva dramática que êle traçara no caso que os políticos democráticos continuassem “de olhos fechados”. Uma estranha mistura de sentimentos dominava Artur ao recordar a entrevista: um certo despeito – aquele homem ainda moço, mal vestido, saído sem dúvida dos meios operários, querendo lhe ensinar política – e uma certa admiração pela severa figura do revolucionário.
Pensou na outra entrevista que tivera naquele mês: com o Ministro do Exterior, gordo e pegajoso diplomata, a propósito do caso de Paulo. Fora igualmente desagradável, não lhe deixara tampouco uma lembrança amável. Mas tinha sido diferente: com o Ministro ele se encontrara dono da situação em todos os momentos, dirigira o desenrolar da entrevista como melhor lhe parecera. Em todo caso, muito desagradável.
Gostaria de pensar em coisas alegres, de arrancar-se das recordações daquele outubro exasperante. Por que não pensar em Marieta Vale que ia rever após longos meses de ausência – o colar de pérolas brilharia sem dúvida mais sobre a brancura do seu colo que as gotas d’água cortadas pela luz – por que não pensar em seus olhos e em seu sorriso que dentro de momentos reencontraria, por que amargurar-se com a boataria política, com o telegrama anunciando a próxima chegada de Paulo, com o escândalo que cercara a bebedeira do rapaz, com a entrevista com o Ministro, com o recente encontro com o dirigente comunista? Parecia-lhe ouvir ainda as últimas palavras pronunciadas, com uma gravidade quase solene, pelo revolucionário:
– A culpa caberá inteiramente aos senhores. Quanto a nós, saberemos como agir...
Fitando o pavimento molhado, tentava enxergar, sob a luz derramada pelos postes, o rosto moreno e melancólico de Marieta, tantos anos inutilmente desejado. E o que via era a face magra, de uma extrema magreza, do homem jovem que Cícero d’Almeida lhe apresentara simplesmente como “João”. A testa larga onde começavam a rarear os cabelos, uns profundos olhos curiosos, as mãos nervosas em contraste com a voz grave e tranqüila, pausada como a de um professor. A certeza mais absoluta que a entrevista deixara a Artur é que sua comentada habilidade política – “aquilo é sutil com um gato”, dizia dele o líder da maio ria na Câmara – de nada lhe servira ao conversar com o comunista. O homem sabia o que queria e o dizia tranqüilamente, sem escolher palavras, sem frases dúbias, de uma forma direta e clara à qual Artur não estava habituado. E quando êle tentava envolvê-lo nos meandros das suas sutilezas, o rapaz apenas sorria e o deixava falar para depois voltar aos seus argumentos precisos, à citação dos fatos concretos, à proposta de união de todas as forças democráticas contra Getúlio Varias e os integralistas. Em nenhum momento, durante hora e meia em que conversaram, Artur se sentiu senhor da situação.
Sim, outubro fora um mês de más notícias, de indesejáveis acontecimentos. Um clima nervoso de incerteza andava pelo ar, dominava os políticos e dele se despendia um indefinível sentimento de medo, medo de qualquer coisa que iria fatalmente acontecer de um momento para outro sem que nenhuma pessoa pudesse evitar. Ninguém precisava o que mas por que diabo ninguém acreditava tampouco que as eleições se realizassem? Por que essa quase certeza de um imprevisto cortando a marcha regular da campanha eleitoral, que parecia estar no conhecimento de todos quando na realidade nada de positivo se sabia, nada de concreto se provava? No entanto, era tão forte aquela atmosfera de expectativa que Artur podia sentir o medo como uma coisa quase palpável quando conversava com os colegas nos corre dores da Câmara, com os correligionários pelas cidades do interior. Terminara por dominá-lo a êle também, apesar da sua longa experiência política que o situava como um dos mais hábeis parlamentares do país e um dos chefes antigetulistas de maior prestígio.
A verdade é que o comunista “João” (como se chamaria ele em realidade?, perguntava-se Artur. João não era certamente o seu nome) precisara essa coisa que andava no ar, falara concretamente do golpe de Estado que Getúlio Vargas preparava em aliança com os integralistas e, ao contrário de todos os demais políticos, êle afirmava, em nome do seu Partido, desse misterioso e amedrontador Partido, que nunca se contava na relação dos partidos políticos do país, que o golpe poderia ser evitado, as eleições poder-se-iam realizar se as forças dos dois candidatos à presidência da República se quisessem unir, fazendo uma trégua na campanha eleitoral, para impedir as manobras de Vargas e dos fascistas. Uma declaração pública, afirmada pelos dois candidatos e pelos governadores que os apoiavam, senhores da situação nos Estados mais importantes, seria o bastante para alertar a opinião pública e pôr um paradeiro ao golpe em preparação. O comunista mostrava um perfeito conhecimento da situação:
– Não me refiro ao governador de Minas. Esse é um homem de Getúlio, cem por cento. Falo dos Estados que apóiam realmente os dois candidatos: São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Bem, o comunismo falara de coisas concretas. Da viagem do agente de Vargas, o avião parando em cada capital de Estado para consultar – para avisar, dissera o rapaz – os governadores sobre o golpe, cuja data já estava marcada. Uma constituição fascista linha sido redigida por um jurista mineiro e aprovada pelos integralistas. Um general fascista seria nomeado comandante militar da cidade do Rio de Janeiro. Não eram boatos, o rapaz estava perfeitamente bem informado. Artur já antes tivera notícia da viagem do emissário de Getúlio, mas o comunista dera-lhe detalhes novos, irrefutáveis, trechos de conversas, a certeza de que o golpe se estava gestando e não tardaria a liquidar a campanha eleitoral, a liquidar também as mais caras esperanças do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, cuja designação para Ministro da Justiça era considerada coisa assentada no caso de Armando Sales ser eleito presidente da República."/...
Jorge Amado, Os Subterrâneos da Liberdade I – Os Ásperos Tempos
pp1-5

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