Quando o então cardeal Joseph Ratzinger disse que a Igreja Católica Apostólica Romana é mãe e não irmã das demais denominações cristãs, ele estava apenas fazendo uma constatação histórica. E, no entanto, a frase causou enorme polêmica tanto na época como agora, quando circulou novamente depois que foi eleito Papa. Tudo o que se passou desde a morte de João Paulo II, no entanto, não é outra coisa senão a prova de que o então cardeal estava certo. O mundo deu foco absoluto ao que João Paulo fez e ao que Bento XVI fará: gente de virtualmente todas as denominações cristãs deu opiniões sobre os caminhos que a Igreja Católica deve adotar. Se a Igreja estivesse de fato fora do tempo, anacrônica e ultrapassada, poucos se dariam a esse trabalho.
Como disse Bento XVI na homilia da missa que marcou o início de seu pontificado: "A Igreja está viva e é jovem."
E anda muito injustiçada. Li em mais de um lugar que a Igreja, no futuro, será responsabilizada pelos milhões de mortos vítimas da Aids na África, por condenar o uso da camisinha. Isso não tem lógica, não faz sentido. A Igreja não condena isoladamente o uso de preservativos; ela prega também a castidade de solteiros e a fidelidade de casados.
Ora, se ela tivesse força suficiente para convencer as pessoas a não usar camisinha, teria também força para que elas se mantivessem castas e fiéis. É ilógica a suposição de que os fiéis seguem uma orientação e não seguem a outra. Pode-se acreditar que a camisinha seja um imperativo no mundo de hoje. Mas não se pode acusar a Igreja de induzir milhões à morte ao discordar disso.
A posição da Igreja neste e em outros assuntos é a prova de sua coragem. A Igreja Católica, como o nome mesmo diz, é uma religião que se pretende universal. Sua missão é se espalhar pelo mundo. Sua existência depende disso. Que ela queira conquistar almas com postulados tão pouco populares é uma prova de sua honestidade, não o contrário. É também um sinal claro do grau de segurança em suas próprias crenças. E, aqui, reside uma enorme confusão conceitual, que Ratzinger, na missa antes do conclave, tentou desfazer mas foi, mais uma vez, mal interpretado: as pessoas só têm ouvidos para ouvir o que querem. Defendendo a doutrina da Igreja, Ratzinger disse que, hoje, todo aquele que defende uma fé clara é rotulado de fundamentalista.
Era, portanto, uma declaração inequívoca de que ter uma fé clara não é ser fundamentalista. Mas, mundo afora, vimos publicadas análises dizendo o oposto: Ratzinger defendera o fundamentalismo.
A raiz da confusão é o significado da palavra "fundamentalismo". Foi no fim do século XIX que protestantes conservadores americanos pregaram o retorno dos cristãos ao que eles chamaram de fundamentos da fé contra toda sorte de inovações. O termo se espalhou , entre 1910 e 1913, com a distribuição de mais de três milhões de cópias de uma série de 12 livros intitulados "Os Fundamentos". O que aqueles cristãos pregavam era uma leitura absolutamente literal dos textos sagrados. Se a Bíblia diz que o mundo foi criado em seis dias, o mundo foi criado em seis dias, ponto final. Com o advento do radicalismo islâmico, por empréstimo, passou-se a também chamá-lo de fundamentalismo. Porque, acreditava-se, o que os fundamentalistas islâmicos pregavam era o retorno do Islamismo aos fundamentos do Islã, à literalidade do Alcorão.
Mas isso foi um equívoco. O que define o fundamentalismo islâmico não é exatamente o apego à literalidade da palavra. O Alcorão, como todos os que já se aventuraram a lê-lo sabem, é carregado de símbolos, metáforas, mensagens cifradas. O que os fundamentalistas fazem é dar ao Alcorão uma interpretação radical e não uma leitura literal. E a sua marca, a sua característica principal, é a tentativa de impor essa interpretação a todos mediante o uso da força e do terror. Uma vez cristalizada a idéia de fundamentalismo como algo essencialmente islâmico o termo passou a ser usado, pejorativamente, para rotular os conservadores cristãos americanos de hoje em dia. Uma volta inconsciente ao início, resultado ou do desapego a conceitos ou do desconhecimento.
Tendo em mente a matriz cristã ou islâmica do termo, chamar de fundamentalista a Igreja herdeira do Concílio Vaticano II, que a revolucionou, é pura ignorância. Nada mais longe da literalidade do que a teologia católica. Da mesma forma, o que a Igreja Católica quer não é a submissão pela força mas a adesão espontânea ao que considera a sua verdade. Isso não quer dizer, no entanto, que a Igreja não se apegue aos fundamentos de sua fé. Isso não a torna fundamentalista, mas faz dela apenas o que ela é: uma fé, uma crença. Não há religião sem verdade, não se pode acreditar "mais ou menos" no que a sua religião diz ser a verdade revelada. Ser crente, de qualquer religião, é exatamente isso: acreditar.
Num mundo como o nosso, admito, nem todos conseguem. Mas é nisso que reside o que as religiões chamam de graça.
"Bento XVI e o fundamentalismo"
Ali Kamel no "O Globo"
1 comentário:
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