domingo, 30 de abril de 2006

sou mais um português à procura de coisa melhor

...Como as “Gentes que distantes a sonhar na ponte do salário / ardem em chamas” (Lemos: 1985), Fernando Lemos, no período em que realizou as fotografias da Exposição da Casa Jalco, partiu da simplicidade e do sonho - este, imaginação e desejo - para compensar as faltas materiais de então. Assim, em “Saudades”:

Eu sonho dormir com o poder do gesto
aproveitando esta hipótese pequeníssima
de me quebrar em memórias tuas
mais que o conhecimento que tenho da saudade (Lemos: 1985)

Certamente, “o poder do gesto”, Fernando Lemos o tem em seu imaginário estético, seja literário, seja plástico. Segundo Jorge de Sena, “seria um simplismo ver [na] recorrência” da palavra gesto nos textos de Fernando Lemos a “denúncia de quanto são escritos por um homem que, pintor e desenhista, não pode deixar de ter o ‘gesto’ como essencial função”, pois “pintar ou desenhar não pressupõe mais gestos do que escrever.” (Sena: 1985). Todavia, em português, a palavra gesto é bissêmica: seu significado mais comum é “movimento do corpo, especialmente da cabeça e dos braços, ou para exprimir idéias ou para realçar a expressão”, e de fato é redutor perceber, na presença do significante gesto na poesia de Fernando Lemos, apenas a interferência da atividade de pintor, que tem nos “gestos” um registro patente. O outro significado da palavra gesto é restrito, no século XX, a um pequeno número de especialistas, mas corrente, por exemplo, na poesia de Camões: “semblante” (Ferreira: 1972) ou, aproximadamente, “rosto”. Desta forma, o objeto do “sonho” será o “gesto” em “Saudades”, e “gesto” será, possivelmente, “semblante” no poema “Outra apresentação em forma de conversa (do catálogo de uma Exposição)”:

Há em todas as coisas expectativas
O gesto traz sempre no rosto
o seu significado (Lemos: 1985)

Apenas um gesto (movimento) pressupõe a fotografia, mas a repetição deste gesto pelo “fotógrafo-poeta” Fernando Lemos registrou a “expectativa” de inúmeros gestos (semblantes), em retratos que adquiriram autonomia estética através do que “neles era achado essencial”. Muitos destes, como já foi dito, tiveram parte na exposição de 1952, em cujo catálogo António Pedro apresentava o então jovem surrealista, nos seguintes termos:

Quanto a querer dizer coisas que não têm nada que ver com a pintura, o Fernando Lemos é felizmente daquela espécie de gente que é capacíssima de as coisas dizer quando não está a pintar. Pintando, com a máquina fotográfica ou com os pincéis, age como quem ama devagar: descobrindo aos milímetros e enternecendo-se a cada descoberta - desmultiplicando o enlevo do pormenor até ao esquecimento de tudo. (Pedro: 1994)



NOTA
Além de muitas referências à imagem de um modo geral, explícitas ou implícitas nos versos de Fernando Lemos, sua poesia reunida em 1985 é encerrada por uma seção sugestivamente intitulada “Poemagens”. “Desígnio”, que a antecede imediatamente, é uma série de sete poemas, seis deles acompanhados por desenhos, em que a relação entre o objeto plástico e o literário é patente e definitiva (Lemos: 1994). Todavia, este trabalho focaliza exclusivamente a produção fotográfica e poética do primeiro movimento da trajetória de Fernando Lemos: as fotografias realizadas entre 1949 e 1952 e os poemas incluídos até a segunda edição de Teclado Universal, de 1963.


Mauricio Matos (Brasil, 1973). Jornalista, poeta e ensaísta. Tem textos publicados no Brasil e em Portugal sobre poetas de língua portuguesa, tais como Fernando Lemos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Camões, Jorge de Sena, etc. Como editor, exerceu o cargo de Assistente Editorial na Fundação Nacional de Arte - FUNARTE, entre 2000 e 2001.
Agulha

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