O General sem Medo
O General Humberto Delgado é um homem cuja vida mudou as nossas vidas. Depois dele nada ficou na mesma. Nem o regime que o mandou matar, nem a oposição de que ele foi o símbolo principal. O regime salazarista ficou para sempre moralmente manchado. E a oposição ficou marcada pelo exemplo de um combate que Humberto Delgado levou até às últimas consequências.
A sua campanha, em 1958, constitui uma viragem histórica na luta pela liberdade em Portugal. Não porque a oposição tenha nascido então. Basta lembrar as revoltas militares de 27 de Fevereiro e 3 de Agosto, as greves de 1944, as manifestações populares de 1945, o Movimento de Unidade Democrática, a campanha de Nórton de Matos que, em 1949, reuniu no Porto mais de cem mil pessoas, assim como a resistência de todos os dias, anónima, clandestina, permanente, essa resistência a que o mesmo Nórton de Matos chamou “indomada e indomável”. Mas a campanha presidencial de Humberto Delgado foi um verdadeiro levantamento nacional pacífico, um não histórico e irremediável a que o General deu corpo e voz. Foi uma pedrada no charco da paz podre do regime e foi uma sacudidela nas próprias rotinas da oposição. Delgado mudou tudo e todos. De certo modo incomodou tudo e todos. Com ele uma nova esperança nasceu. Não apenas porque ele era o general mais novo e vinha das fileiras do próprio regime. Mas por algo que tinha a ver com ele e só com ele, com a sua própria personalidade, única e inconfundível, com o seu estilo, a sua chama e a sua alma. Com uma pequena frase quebrou todos os tabus, desinibiu os portugueses e libertou as consciências. Com o agitar nervoso dos seus braços galvanizou as multidões.
Os portugueses tinham sido forçados ao silêncio, educados para o conformismo, a obediência, senão mesmo a subserviência. O regime reinava pelo medo, pela mordaça, pelo silêncio imposto. Humberto Delgado veio rasgar a mordaça, romper o silêncio e sacudir o medo. Veio, de certo modo, ensinar o inconformismo, a desobediência e a rebeldia. Passou a ser o único político com legitimidade sufragada pelo povo, ainda que em eleições fraudulentas e roubadas. Abanou o fascismo e sacudiu o marasmo, as inércias e as inibições de muitos sectores da vida nacional. Sem o seu exemplo, muitos de nós não seríamos o que somos hoje. Por muitos anos que viva, não esquecerei jamais o dia da sua chegada a Coimbra, porque esse foi o dia que para sempre mudou a minha própria vida.
Dizia-se no tempo da clandestinidade que só a paciência é revolucionária. Esta frase serviu para justificar muita acomodação e muitas omissões. O General Delgado era por certo impaciente. Mas nunca foi um acomodado e nunca usou o álibi de estratégias de longo prazo para se escusar ao risco e ao combate. “Ele corre o risco”, dizia, apreensivo, Álvaro Cunhal quando, em 1964, o General se afastou da Frente Patriótica, tornando-se permeável às armadilhas e provocações.
Humberto Delgado tinha pressa e o seu objectivo era claro: derrubar a ditadura, mesmo que, para tal, ele tivesse que se envolver pessoalmente, correndo riscos que a prudência e a experiência desaconselhavam.
As formidáveis manifestações que tiveram lugar durante a sua campanha, apesar das intimidações da PIDE e das forças repressivas, criaram nele a convicção de que a sua presença em Portugal poderia, por si só, voltar a levantar as multidões e a pôr do seu lado parte das Forças Armadas. Foi nesse estado de espírito que atravessou clandestinamente a fronteira e apareceu em Beja por ocasião do assalto ao Quartel da cidade, comandado pelo então capitão Varela Gomes e no qual participaram destacados resistentes, entre eles o meu querido amigo Edmundo Pedro. O assalto ao Quartel de Beja fracassou. O General voltou a atravessar clandestinamente a fronteira, agora em sentido contrário. Participaria depois, em Roma e em Praga, na 1ª e na 2ª Conferência da Frente Patriótica de Libertação Nacional, que agrupava as principais correntes da oposição democrática ao fascismo. Como Presidente da Junta Revolucionária Portuguesa, órgão de direcção exterior da Frente Patriótica, instalar-se-ia em Argel, onde foi recebido pelo Presidente Ben Bella com honras de Chefe de Estado.
Entretanto, já a PIDE tinha conseguido infiltrar, como representante do General em Roma, o sinistro Mário de Carvalho, que viria a estar na origem da separação do General da Frente Patriótica e, posteriormente, da cilada que o conduziu a Badajoz e a Vila Nueva del Fresno onde, em vez dos conspiradores que supunha ir encontrar, tinha à sua espera uma brigada da PIDE chefiada pelo inspector Rosa Casaco e da qual fazia parte o agente Casimiro Monteiro. Foi este que atirou a matar sobre Humberto Delgado e assassinou também a sua secretária, a cidadã brasileira D. Arajaryr de Campos.
Estes factos são conhecidos, estão publicados em vários livros e constam também do processo em que, após o 25 de Abril, foram julgados e condenados, alguns à revelia, os responsáveis pelo assassínio político do General Humberto Delgado, o único General dos tempos modernos que, de certo modo, morreu no campo de batalha.
Depois da campanha presidencial tinha ficado claro que a Ditadura não cairia por via pacífica. Delgado mostrou o caminho e o Ditador não lhe perdoou nunca mais. E mesmo quando Humberto Delgado era já um homem doente, isolado, enfraquecido, Salazar continuava a ter medo dele. A cilada foi montada. O General e a sua secretária foram cobarde e barbaramente assassinados.
Salazar ordenou que se fizesse silêncio, impediu qualquer investigação séria e os que o tentaram fazer, como Mário Soares, advogado da família, foram impiedosamente perseguidos. O discurso de Salazar depois do crime ficará como o retrato mais completo da sua hipocrisia, do seu cinismo, da sua crueldade de mandante e encobridor de assassinos. Mas a morte do General e da sua secretária veio mostrar ao mundo que o regime, a que hoje, seraficamente, se chama “regime anterior”, era na verdade uma ditadura violenta, que não recuava perante o crime. E veio mostrar que o seu Chefe, a quem, cerimoniosamente, hoje, alguns recomeçaram a tratar por Professor, era, na realidade, um ditador hipócrita e mau, que não hesitava em mandar eliminar fisicamente os seus adversários, como fez com o General Humberto Delgado.
O agente da PIDE que o matou, Casimiro Monteiro, terá morrido na África do Sul, sem que nada tivesse sido feito para conseguir a sua extradição. O ex-inspector Rosa Casaco, que comandou a brigada assassina, andou por Espanha, volta e meia vinha a Portugal e agora regressou de vez, dando-se ao luxo de publicar um livro. A memória de alguns é curta. Outros procuram impor-nos a sua estratégia do esquecimento, que não é senão uma tentativa de branquear um passado de violência e de opressão. Mas talvez, ao fim e ao cabo, não seja por acaso que ninguém se interessou pela localização dos assassinos do General Humberto Delgado. Talvez a sua extradição fosse um incómodo para a má consciência que a vida e a morte do General provocam em muita gente. A má consciência dos assim-assim, dos que se calaram, dos que, pelo conformismo e pela omissão, consentiram.
Há homens que mesmo depois de mortos continuam a incomodar. Essa é a força de Humberto Delgado, o General sem medo.
Por decisão do então Presidente da República, Mário Soares, o General, promovido a Marechal, foi finalmente sepultado no Panteão Nacional. Mas continua a faltar, numa praça de Lisboa, um monumento ao General Humberto Delgado, para que ele seja para sempre lembrado como um exemplo de coragem, de risco, de inconformismo, de desprendimento e sacrifício, de amor à Pátria e à liberdade.
Manuel Alegre
Vila Franca de Xira, 28.04.06
O General Humberto Delgado é um homem cuja vida mudou as nossas vidas. Depois dele nada ficou na mesma. Nem o regime que o mandou matar, nem a oposição de que ele foi o símbolo principal. O regime salazarista ficou para sempre moralmente manchado. E a oposição ficou marcada pelo exemplo de um combate que Humberto Delgado levou até às últimas consequências.
A sua campanha, em 1958, constitui uma viragem histórica na luta pela liberdade em Portugal. Não porque a oposição tenha nascido então. Basta lembrar as revoltas militares de 27 de Fevereiro e 3 de Agosto, as greves de 1944, as manifestações populares de 1945, o Movimento de Unidade Democrática, a campanha de Nórton de Matos que, em 1949, reuniu no Porto mais de cem mil pessoas, assim como a resistência de todos os dias, anónima, clandestina, permanente, essa resistência a que o mesmo Nórton de Matos chamou “indomada e indomável”. Mas a campanha presidencial de Humberto Delgado foi um verdadeiro levantamento nacional pacífico, um não histórico e irremediável a que o General deu corpo e voz. Foi uma pedrada no charco da paz podre do regime e foi uma sacudidela nas próprias rotinas da oposição. Delgado mudou tudo e todos. De certo modo incomodou tudo e todos. Com ele uma nova esperança nasceu. Não apenas porque ele era o general mais novo e vinha das fileiras do próprio regime. Mas por algo que tinha a ver com ele e só com ele, com a sua própria personalidade, única e inconfundível, com o seu estilo, a sua chama e a sua alma. Com uma pequena frase quebrou todos os tabus, desinibiu os portugueses e libertou as consciências. Com o agitar nervoso dos seus braços galvanizou as multidões.
Os portugueses tinham sido forçados ao silêncio, educados para o conformismo, a obediência, senão mesmo a subserviência. O regime reinava pelo medo, pela mordaça, pelo silêncio imposto. Humberto Delgado veio rasgar a mordaça, romper o silêncio e sacudir o medo. Veio, de certo modo, ensinar o inconformismo, a desobediência e a rebeldia. Passou a ser o único político com legitimidade sufragada pelo povo, ainda que em eleições fraudulentas e roubadas. Abanou o fascismo e sacudiu o marasmo, as inércias e as inibições de muitos sectores da vida nacional. Sem o seu exemplo, muitos de nós não seríamos o que somos hoje. Por muitos anos que viva, não esquecerei jamais o dia da sua chegada a Coimbra, porque esse foi o dia que para sempre mudou a minha própria vida.
Dizia-se no tempo da clandestinidade que só a paciência é revolucionária. Esta frase serviu para justificar muita acomodação e muitas omissões. O General Delgado era por certo impaciente. Mas nunca foi um acomodado e nunca usou o álibi de estratégias de longo prazo para se escusar ao risco e ao combate. “Ele corre o risco”, dizia, apreensivo, Álvaro Cunhal quando, em 1964, o General se afastou da Frente Patriótica, tornando-se permeável às armadilhas e provocações.
Humberto Delgado tinha pressa e o seu objectivo era claro: derrubar a ditadura, mesmo que, para tal, ele tivesse que se envolver pessoalmente, correndo riscos que a prudência e a experiência desaconselhavam.
As formidáveis manifestações que tiveram lugar durante a sua campanha, apesar das intimidações da PIDE e das forças repressivas, criaram nele a convicção de que a sua presença em Portugal poderia, por si só, voltar a levantar as multidões e a pôr do seu lado parte das Forças Armadas. Foi nesse estado de espírito que atravessou clandestinamente a fronteira e apareceu em Beja por ocasião do assalto ao Quartel da cidade, comandado pelo então capitão Varela Gomes e no qual participaram destacados resistentes, entre eles o meu querido amigo Edmundo Pedro. O assalto ao Quartel de Beja fracassou. O General voltou a atravessar clandestinamente a fronteira, agora em sentido contrário. Participaria depois, em Roma e em Praga, na 1ª e na 2ª Conferência da Frente Patriótica de Libertação Nacional, que agrupava as principais correntes da oposição democrática ao fascismo. Como Presidente da Junta Revolucionária Portuguesa, órgão de direcção exterior da Frente Patriótica, instalar-se-ia em Argel, onde foi recebido pelo Presidente Ben Bella com honras de Chefe de Estado.
Entretanto, já a PIDE tinha conseguido infiltrar, como representante do General em Roma, o sinistro Mário de Carvalho, que viria a estar na origem da separação do General da Frente Patriótica e, posteriormente, da cilada que o conduziu a Badajoz e a Vila Nueva del Fresno onde, em vez dos conspiradores que supunha ir encontrar, tinha à sua espera uma brigada da PIDE chefiada pelo inspector Rosa Casaco e da qual fazia parte o agente Casimiro Monteiro. Foi este que atirou a matar sobre Humberto Delgado e assassinou também a sua secretária, a cidadã brasileira D. Arajaryr de Campos.
Estes factos são conhecidos, estão publicados em vários livros e constam também do processo em que, após o 25 de Abril, foram julgados e condenados, alguns à revelia, os responsáveis pelo assassínio político do General Humberto Delgado, o único General dos tempos modernos que, de certo modo, morreu no campo de batalha.
Depois da campanha presidencial tinha ficado claro que a Ditadura não cairia por via pacífica. Delgado mostrou o caminho e o Ditador não lhe perdoou nunca mais. E mesmo quando Humberto Delgado era já um homem doente, isolado, enfraquecido, Salazar continuava a ter medo dele. A cilada foi montada. O General e a sua secretária foram cobarde e barbaramente assassinados.
Salazar ordenou que se fizesse silêncio, impediu qualquer investigação séria e os que o tentaram fazer, como Mário Soares, advogado da família, foram impiedosamente perseguidos. O discurso de Salazar depois do crime ficará como o retrato mais completo da sua hipocrisia, do seu cinismo, da sua crueldade de mandante e encobridor de assassinos. Mas a morte do General e da sua secretária veio mostrar ao mundo que o regime, a que hoje, seraficamente, se chama “regime anterior”, era na verdade uma ditadura violenta, que não recuava perante o crime. E veio mostrar que o seu Chefe, a quem, cerimoniosamente, hoje, alguns recomeçaram a tratar por Professor, era, na realidade, um ditador hipócrita e mau, que não hesitava em mandar eliminar fisicamente os seus adversários, como fez com o General Humberto Delgado.
O agente da PIDE que o matou, Casimiro Monteiro, terá morrido na África do Sul, sem que nada tivesse sido feito para conseguir a sua extradição. O ex-inspector Rosa Casaco, que comandou a brigada assassina, andou por Espanha, volta e meia vinha a Portugal e agora regressou de vez, dando-se ao luxo de publicar um livro. A memória de alguns é curta. Outros procuram impor-nos a sua estratégia do esquecimento, que não é senão uma tentativa de branquear um passado de violência e de opressão. Mas talvez, ao fim e ao cabo, não seja por acaso que ninguém se interessou pela localização dos assassinos do General Humberto Delgado. Talvez a sua extradição fosse um incómodo para a má consciência que a vida e a morte do General provocam em muita gente. A má consciência dos assim-assim, dos que se calaram, dos que, pelo conformismo e pela omissão, consentiram.
Há homens que mesmo depois de mortos continuam a incomodar. Essa é a força de Humberto Delgado, o General sem medo.
Por decisão do então Presidente da República, Mário Soares, o General, promovido a Marechal, foi finalmente sepultado no Panteão Nacional. Mas continua a faltar, numa praça de Lisboa, um monumento ao General Humberto Delgado, para que ele seja para sempre lembrado como um exemplo de coragem, de risco, de inconformismo, de desprendimento e sacrifício, de amor à Pátria e à liberdade.
Manuel Alegre
Vila Franca de Xira, 28.04.06
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