domingo, 11 de junho de 2006

O que ficou do Império

"A revista Index on Censorship de Janeiro de 1999 inclui um dossier dedicado a Portugal, com o título "The Last Empire". Desde o logo o título bombástico, a lembrar filme épico daqueles que atraem multidões, nos surpreende. Não nos reconhecemos nele. Império? Portugal? Vinte e cinco anos depois da independência das colónias? De que é que esta gente está a falar? Depois percebemos: o dossier é compilado a pretexto da devolução de Macau à China, agendada para Dezembro de 99, acto este que é visto, do exterior, como o fim real e simbólico do Império. Cá por casa, há muito que o "Império" desapareceu dos mapas da escola, e mesmo do nosso imaginário. Se o pensamos, quando o pensamos, é como parte de um passado remoto, mais velho do que os vinte e cinco anos que tem a Revolução. Porque a própria retórica do colonialismo Português ao tempo da Guerra Colonial - e ao contrário de outros, como o inglês -, é a retórica de uma única pátria, um "Portugal do Minho a Timor". Sabemos que esse Portugal único era um mito. Ainda assim, e mesmo quando já crescemos na negação e denúncia desse mito, ficou a fazer parte do nosso imaginário. Daí não nos reconhecermos no título, na forma como nos vêem, de fora.

Diferentes artigos oferecem percepções múltiplas da experiência colonial e pós-colonial portuguesa, chamemos-lhe assim, e incluem vozes "de dentro": Ana Duarte Melo, António Figueiredo, um poema de Graça Moura, a "Grândola", de Zeca Afonso; vozes do "outro lado": Sousa Jamba (Angola), Mia Couto (Moçambique), Ramos Horta (Timor); e ainda "de fora", de estrangeiros com conhecimento da cultura portuguesa: Hilary Owen (Novas Cartas Portuguesas), Landeg White (comentário a "Grândola"), Barry Lowe (Macau), David Tomory (Índia). Estes textos reflectem sobre a questão da nossa herança colonial, e adoptam, em geral, a retórica do multiculturalismo, que permite repensar as "Descobertas", o colonialismo e o pós-colonialismo como um "encontro de culturas".
Esta retórica é a mais politicamente correcta nos nossos dias, e a única que nos permite pensar uma reconciliação entre povos com um passado de sangue. Tem no entanto os seus perigos, nomeadamente o esquecimento das assimetrias desse "encontro cultural", a relação de poder, ainda e sempre desigual. Como muito bem lembra David Tomory, na sua contribuição "Reluctant Heritage", onde comenta a polémica em torno das comemorações da chegada de Vasco da Gama à Índia, a "herança", ou o negócio da herança, permite a recuperação, para consumo de todos, das coisas bonitas - a gastronomia, a música, o artesanato -, esquecendo o lado trágico da história.
Segundo a versão corrente do "intercâmbio cultural", a nossa contribuição para essa herança comum teria então sido o fado e a saudade. Subscrevendo esta posição, diz Ana Duarte Melo: "Fado, Portuguese blues, and saudade …is everyday currency among 140 million Portuguese speaking Brazilians, as well as in Angola, Mozambique, Guiné-Bissau, Cape Verde and São Tomé e Príncipe". Não sei se será possível sustentar este mito perante o cenário dos dirigentes da Junta Militar da Guiné-Bissau, com um português reduzidíssimo ou nulo, a precisar de tradutor. Achará Assumane Mané que o fado é parte da sua herança?

Que papel tem a língua portuguesa na herança que deixámos aos outros? Sousa Jamba, no artigo intitulado "A Morsel of Honey", dá uma resposta a esta pergunta no contexto angolano, colocando uma cultura urbana, de "assimilados", que passa pela adopção da língua portuguesa e pela recusa da aprendizagem das línguas bantu locais, em oposição a uma cultura rural, poliglota e africana.

Nos territórios mais longínquos, Timor e Macau, a língua portuguesa tem ainda uma posição mais frágil. Como diz Ramos-Horta (e como, de resto, qualquer espectador atento da questão timorense terá constatado, ao observar as muitas dezenas de jovens que se foram refugiando em Portugal nestes últimos anos), apenas uma minoria dos timorenses fala português, e a herança aí deixada teria sido a religião, o futebol, alguma música.

A multiplicidade de vozes neste dossier é evidente: vozes de Portugal, Moçambique, Angola etc., que nos facultam diferentes abordagens de uma mesma questão. Há, no entanto, alguns silêncios, nomeadamente no que se refere às comunidades africanas residentes em Portugal, e que aqui vieram parar na sequência do desmembramento do Império de que se fala. Ainda que Landeg White, no artigo "Empire's Revenge", as refira - "tens of thousands remain outside society" - bem como o racismo de que são vítimas, a existência deste grupo significativo, de largos milhares de pessoas, resume-se a uma breve referência, à qual não se segue uma história contada na primeira pessoa pelos envolvidos.

Este silenciamento corresponde ainda a uma versão da "história sem tragédia". A que nos convém, a que é adoptada em programas da televisão do estado como "Atlântico" (RTP1). Este programa, celebratório da herança comum da Lusofonia - centrada embora no eixo Portugal/Brasil - é exemplo desta retórica, a qual, ainda que de sinal político contrário, é ainda herdeira de "Portugal do Minho a Timor". Estaremos a substituir um mito por outro, em que a assimetria das relações se mantém, sob a capa de uma "herança comum"?

Mia Couto em "A Celebration in Waiting", a sua contribuição para o Index, alerta para a necessidade de uma nova relação, em que todas as partes se constituam como sujeitos. Só assim poderá haver uma verdadeira celebração das "Descobertas", e uma herança verdadeiramente "comum".

Acrescente-se ainda um apontamento sobre os textos deste dossier que nos colocam na oposição de objectos, e que se situam no exterior da questão colonial propriamente dita. Significativa é a escolha do poema "Crónica", de Graça Moura, para abrir: aí se fala de mar, navios, despedidas, tempestades, ventos, algas e corais - a parafernália de que se faz uma certa imagem de Portugal. Vasco Graça Moura é um bom poeta; a questão aqui é a escolha deste poema e não outro. Foi escolhido este, imagino, porque se encaixa às mil maravilhas na imagem pré-concebida de um país em cujos discursos historiográfico e poéticos têm ainda um lugar importante a Época das Descobertas e a nostalgia a ela ligada.
Aquilo, afinal, que nos ficou de um império de cujo último estilhaço o país agora se despede, e que se calhar não chegou verdadeiramente a ter. Falo de um discurso que já não se adequa à nossa realidade, cada vez mais europeia, mas que talvez corresponda ainda a um imaginário que continua a fazer-se ver e ouvir, de acordo com o qual (ainda) construímos a nossa imagem, e pelo qual os outros (ainda) nos vêem. Que encontramos, por exemplo, nas letras das canções do Festival da Canção. E que é muito bem parodiada no programa da BBC que a TVCabo transmite, "The Tony Ferrino Phenomenon", no qual a personagem de Tony Ferrino, pretensamente um cantor português, aparece com os "irmãos", vestidos de pescadores, a cantar o mesmo refrão até a náusea: "peixe e mariscos, peixe e mariscos".
O nome é italiano, "Tony" fala um português arraçado de castelhano e italiano, e corresponde a uma imagem estereotipada dos "homens do sul" em geral. O retrato é uma caricatura; mas a culpa é talvez também um pouco nossa, que ainda não encontrámos, para falar de nós próprios, uma linguagem nova, alternativa às estafadas metáforas de mar e marinheiros.

Haverá forma de evitar o estereótipo quando se fala do "Outro"? Ou só se reconhece o estereótipo quando o "Outro" somos nós? Como quando Landeg White, ao comentar "Grândola" no Index, a identifica como um fado, e Zeca Afonso como fadista, acrescentando que a canção que serviu de senha para pôr a Revolução na rua serve agora para vender azeite. Confundindo até a nossa inconfundível "Grândola" com a canção popular "Ó Rama, ó que linda rama". Porque o "Outro" não é percepcionado como múltiplo, mas como uno. Porque, de acordo com esta lógica, todos os portugueses cantam sempre e só fado".

Adriana Bebiano
zonanon.com/non/letras Mar.99

Sem comentários: