segunda-feira, 17 de julho de 2006

Terras do Xisto - Janeiro de Cima

Volto à estrada, para Janeiro de Cima e só irei parar na Sarnadela para respirar o ar mais puro que há no mundo. O viajante gosta de natureza pura mas ficava aqui muito bem um miradouro. Frente a frente com o aguilhão, aquele pedaço de terra transformado em indústria de extracção de areias. Quem dera aos pescadores, de algum dia, este lago da míni hídrica para dar largas às suas pescarias. Conheci um desses pescadores que manobrava as tarrafas como ninguém, fazia ele próprio esses artefactos. Um dia perguntei como aprendeu o Sr. Joaquim Martins, a arte da construção das tarrafas. — Isso é uma história muito triste para mim, um dia o guarda-rios agarrou-me aos peixes, como o meu pai não tinha dinheiro para pagar a multa fiquei um mês na cadeia da Pampilhosa da Serra e aprendi lá, com outro preso, que sabia fazer estas tarrafas.

Bom é uma história triste mas dá para pensar nas leis e nos rios. Não encontro maneira de dizer que nasci aqui, a ouvir a música que o rio canta mais alto no açude da Quinta do Canal.
Mais tarde segui as pedras que o rio traz até ao recreio da escola de Janeiro de Cima. Ai, os meninos do meu tempo ensinaram-me o jogo do fito. Nesse jogo tudo é xisto e pontaria. Aprendem cedo a brincar com pedras os meninos de Janeiro de Cima. Na descida dos Carritos, lanço o olhar ao vale do Zêzere. Lá ao longe a serra mãe, Serra da Estrela. Só lhe viro as costas para mergulhar na rua da volta. Este anel de casas em volta da igreja velha, foi salva a velha igreja pela iniciativa de um pequeno grupo, ao qual se juntou mais tarde toda a população. Esta aliança do velho com o novo torna esta aldeia a jóia, das jóias do xisto.


Hoje Janeiro de Cima impôs-se como uma jóia. Para isso foi determinante a contribuição dos técnicos do Gabinete Técnico Local. Das aldeias no concelho do Fundão. Desenvolve um trabalho único de classificação, projectando a recuperação do casario destas aldeias. Tenho o prazer de acompanhar alguns desses técnicos em algumas acções. Sinto que só com uma vontade imperturbável, a energia estampada no rosto da Arq. Ana Cunha, para referir um nome. Se pode lutar na defesa e contra alguma incompreensão por vezes chocante dos próprios interessados. É que aqui os técnicos são confrontados com uma luta desigual, precisam de inovar com opções técnicas novas adaptadas ao património existente. Alargar largos e ruas. Convencendo quem determina a obra; os proprietários.


Já não tange a guitarra o Sr. António Almeida. Mais uns meses e fazia os cem anos de vida. Imortalizou a sua música, o musicólogo Dr. José Alberto Morais Sardinha, ao incluir na colectânea de música popular “Portugal Raízes Musicais”, duas cantigas do saudoso António Almeida Brito Cardoso. Em boa hora o viajante o denunciou ao Dr. Sardinha. No dia 20 de Janeiro de cada ano, sobe este povo e convidados ao alto do cabeço de São Sebastião, para se cumprir a tradição de dar pão e vinho, a quem ali vier. Depois da missa na aldeia os mordomos carregam os sacos de pão até ao alto do monte, sempre a subir. O autor destas linhas já isso fez. Teve a honra de transportar um saco de linho cheio de merendas. Pois os meus pais apesar de não viverem na freguesia há muitos anos, os outros mordomos têm a amabilidade de nos convidar, a dar as merendas quando chega a nossa vez.
Em tempos a tradição era outra: segundo o cura, Joseph Pereyra. Maio de 1758. ─ No dia do espírito santo há festa cantada, dá-se um bodo a quem se acha presente, que vem a ser dois bolos, e quatro copos de vinho, duas cuvetes de tremoços.


Que encanto terá tido o professor Agostinho da Silva, por Janeiro de Cima? um dos maiores pensadores portugueses, percorreu o mundo, fundou universidades no Brasil. De seu nome completo Jorge Agostinho Batista da silva, nasceu no Porto em 1906, sabe-se que visitava Janeiro de Cima, e fez por cá amizade.


Gosta o viajante de dar a volta ao cabeço do mártir S. Sebastião. Está convencido de que este cabeço foi desbastado pela milenar exploração mineira dos romanos; toda a aldeia está sobre essa exploração. Ir à Folha de Cima e visitar a Horta das Covas, tirar água com uma das picotas, já o fez sem que o dono o visse. O dono da horta Sr. Américo, é mestre na arte da pedra e esta horta é prova disso mesmo, um lugar fantástico. Apetece dar duas varadas na barca serrana, ali na praia fluvial. Esta barca feita cá na terra, o mestre Eduardo Gil, já não precisa de montar estaleiro como antigamente que a construção de um barco destes era obra de meses, tudo era pensado a tempo de seleccionar parte das madeiras ainda na árvore, é que não se faz um Galaripo de um pau qualquer.


Terras do Xisto
“Apontamentos do viajante” D.B.Gonçalves

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