NO OUTRO dia cheguei à Covilhã com um livro muito usado. Era o meu Os lusíadas. Sabia que a Encadernação Cassapo continuava a existir e para lá me dirigi a suar para salvar o meu livro. Entrei na porta verde por onde tantas vezes entrou o Cassapo, o homem que encadernava a nossa alma covilhanense, e dei de caras com as filhas dele que fazem tudo para que o ofício do pai nunca morra. Nesta nobre profissão não se enriquece: só se fazem amigos. Foi o que sempre fez o Cassapo com as suas velhas máquinas: uma Heidelberg de tipografia, outra Wohlemburg de cortar livros, uma Pernuma de picotar e vincar com pedal... Em 1960, vejo-o de Vespa, na recolha e na entrega de trabalhos encadernados e com as filhas, quatro, a caminho da Serra aos domingos. Nem só de livros vive o homem. As duas gémeas iam de pé à frente contra o seu peito, a mulher sentada no assento de trás com uma outra filha ao colo e na roda sobresselente ia a filha mais velha com o cesto da merenda. Não podia ir nessa altura a quinta filha porque ainda não nascera mas faltava pouco... O velho salvador de livros, que começou a trabalhar aos dez anos morreu há dois anos, mas o seu mester continua graças à perseverança das suas formidáveis filhas... Um dos seus títulos de glória eram os mitológicos calendários de bolso, verdadeiros oráculos, que traziam à nossa cidade turistas e forasteiros: “Faça Montanhismo“, “Escola Portuguesa de Esqui“... A sua sombra paira no alto da velha cidade e hoje quando se encaderna aí um livro é um acto de memória...Era uma vez um homem que gostava de livros...
Manuel da Silva Ramos - Jornal do Fundão
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