quarta-feira, 22 de novembro de 2006

A afinidade com um escritor

UM POETA BEIRÃO: Simões Dias
Beatriz Alcântara
A afinidade com um escritor constrói-se, via de regra, a partir da identificação que o leitor estabelece com sua obra. Por esse modo lembro-me de terem-se iniciado minhas preferências literárias e, a devoção que nutro por certos escritores como, Luís Vaz de Camões, Marcel Proust, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Clarice Lispector e Josué Montelo.

Todavia, para cada regra formulada, logo surge um fato contrário, e assim, numa contra-regra, aconteceu a ligação que estabeleci com um dos mais ilustres beirões de todos os tempos, o benfeitense Dr. José Simões Dias.

Fala-se que a aldeia da Benfeita, no concelho de Arganil, distrito de Coimbra, tem a forma de um lenço de três pontas. Numa das pontas desse lenço, no pequeno largo da capela de Nossa Senhora da Assunção, ficava a casa de meus bisavós Fonseca, onde, nos tempos em que minha avó Augusta e tia Laura viviam, eu passava boa parte das férias “grandes”.

Tanto quanto lembro das águas frias nos meus pés a chapinharem sobre os seixos na ribeira estival, recordo, e ainda repito, algumas quadras de Simões Dias recitadas durante os serões familiares da meninice. Uma dessas quadras, de sabor popular, é quase proverbial na minha pequena família, na outra banda do Atlântico:

Quem tem filhos, tem cadilhos
Quem não os tem, antes os tivesse
Porque quem tem filhos a vida
não finda, mesmo depois de morrer.
Mas atenção! Há um engano. Como poderia um poeta de tão grande arte como o Dr. José Simões Dias, de competente e sábio domínio literário a ponto de ter compilado os conhecimentos em duas obras valorosas, Compêndio de Poética e Estilo e Teoria da Composição Literária, ter construído uma quadra tão alheia à métrica normativa da redondilha maior?
Compare-se a anterior à quadra original do poeta:

Quem tem filhos tem cadilhos
Diz o rifão, mas é ver
Se alguém há que tendo filhos
Deseje vê-los morrer!

Peninsulares: odes,

A modificação das quadras toca num ponto nevrálgico, raramente abordado na relação autor e fruidor da obra de arte.

Uma obra literária, cinqüenta anos passados da morte do escritor, passa a ser, por lei, de domínio publico, livre de direitos autorais, e portanto, patrimônio popular, desde que ao povo assim lhe apeteça.

Antes desse prazo regulamentar, no entanto, nas quadras em questão, o senso comum interiorano português achou-se por tal modo identificado no sentir com o brilho setissílabo de Simões Dias que essas quadras modificaram-se ao sabor das vontades, numa literatura, digamos, quase oral, percorrendo um sinuoso trajeto de casa para casa, a ecoar de uma aldeia para outra, entoada por cantadores ambulantes, jograis e cegos de feira em feira das entre-beiras até os “algarves”, pois foi no sul peninsular que Estácio da Veiga ouviu o canto popular das trovas de “O Teu Lenço”, poema aqui reproduzido, em parte:

O lenço que tu me deste
Trago-o sempre no meu seio,
Com medo que desconfiem
D’onde este lenço me veio.
As letras que lá bordaste
São feitas do teu cabelo;
Por mais que o veja e reveja,
Nunca me farto de vê-lo.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A cismar neste bordado
Não sei até no que penso;
Os olhos trago-os já gastos
De tanto olhar para o lenço.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quanto mais me ponho a vê-lo,
Mais este amor se renova;
No dia do meu enterro
Quero levá-lo p’ra cova.
Peninsulares: canções, 5ª ed. Comemorativa
I Centenário da Morte de J. Simões Dias, Porto, 1999.

Se alguns versos do autor das Peninsulares - a obra mais renomada – converteram-se quase ao anonimato, talvez o fato se deva a que o poeta - o homem, o cidadão - ascendeu social e culturalmente, mas a sua poesia jamais perdeu a feição, o tom e a sabedoria da gente simples da sua aldeia - Benfeita. Simplicidade essa, tão marcante que, ainda hoje, decorridos mais de cem anos da morte do escritor, acha-se a povoação natal de Simões Dias tão distante da regência capitalista e do seu poder predatório, que sequer possui um comércio estruturado de portas abertas.

Não é difícil reconstruir, pela visão e mente, a terra que moldou a natureza, o imaginário, a emoção e o modo de estar no mundo de Simões Dias, pois a Benfeita preservou uma feição própria, pouco se alterou, avizinhando-se graciosamente do passado.

Na aldeia, as ruas permanecem de uma estreiteza afoita e raro permitem a circulação de um veículo no seu interior. Mesmo a via de circulação pública e o pequeno largo que conduzem à casa onde o poeta nasceu, sequer possuem uma denominação própria. Tudo permaneceria como então, não fossem o acesso que a construção da estrada permitiu, a eletrificação, algumas reduzidas comodidades tecnológicas e a rara presença de crianças.

Na Benfeita contemporânea, o ilustre poeta achar-se-ia próximo ao seu tempo, tempo no qual ela denominava-se Santa Cecília.
Das Peninsulares reproduzimos versos de saudade, evocações de folguedos, rumores de uma infância distante:

NOITE DE LUAR
. . . . . . . . . . . . . . . .
E aquela fresca ribeira
Onde à tarde ao pôr do sol
Vem cantar o rouxinol
Na copa da romãzeira;
E o toque da Ave-Maria,
Lamento de mãe aflita,
Tão doce que nem o imita
Uma rola ao fim do dia;
E os domingos de folgança,
Em que ao pé da ermida se arma,
Em festiva e doida alarma,
Uma fogueira e uma dança;
E aquelas tardes no rio,
Tardes e tardes inteiras,
Escutando as lavadeiras
A cantar ao desafio;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
São invocações recorrentes das quais Simões Dias ficou para sempre refém, não se cansando de louva-las, como neste outro poema:

A VOLTA DO PEREGRINO
A ver-vos torno, ó grutas,
Ó côncavos penedos,
Onde hei depositado
Meus infantis segredos!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Montanhas arrelvadas,
Vergéis do meu país,
Vendo-vos torno aos dias
D’essa idade feliz!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Por isso eu vos saúdo,
Por isso eu vos bendigo,
Lugares que me fostes
Berço, consolo e abrigo!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um não sei quê de vago,
Um tão suave encanto,
Que involuntário acode
A borbulhar meu pranto!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Além campeia a torre
Da solitária igreja,
E ao pé triste cruzeiro
No cemitério alveja!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ai! Quem me dera agora
A cândida ignorância
Dos tempos que sorriram
À minha alegre infância!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Então um cemitério,
A recender a flores,
Era um breve canteiro
Falando-me de amores!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Bendita seja a hora
Em que te torno a ver,
Ó terra abençoada,
Que és parte do meu ser!
Quando te piso e apalpo,
Que sonho e que ilusão!
Penso que vive ainda
Meu pobre coração!

A infância benfeitense e as alegrias pueris, contudo, foram cedo abandonadas. O jovem Simões Dias despertou a atenção do mestre-escola que, reconhecendo-lhe uma inteligência incomum, recomendou aos pais a continuação dos estudos.

Logo, ficaram para trás a aldeia de Santa Cecília – como a Benfeita chamava-se ao tempo - que o vira nascer a 05 de fevereiro de 1944, e os socalcos verdejantes entre os contrafortes da Serra da Estrela.

Uma educação formal e religiosa iniciou-se em Pedrógão Grande (1854-57), continuando no Seminário de Coimbra, onde concluiu o Curso Teológico em 1861, terminando os estudos superiores com a Formatura em 1968.

A vida acadêmica coimbrã fomentou-lhe o gosto pelas letras e ensejou a colaboração em variadas periódicos.

No dizer do seu biógrafo autorizado, Visconde de Sanches de Frias, no Bosquêjo da sua vida e obras, ficou registrado: “...num período de 9 anos, de 1861 a 1870, não houve em Coimbra publicação literária, que não tivesse a sua colaboração.”

Da época de estudos superiores, datam seus primeiros versos, o cantar da idade verde:

Gentis namoradas, tal sou como o vento
Que em brandos suspiros se expraia no ar,
As notas que tiro do alegre instrumento,
São vozes que gemem d’amor, ao luar!
....................................................................
Arcanjos dormentes, ó pálidas moças,
Correi às janelas a ouvir descantar;
As trovas que solto são minhas, são vossas,
Ouvi lindas trovas d’amor, ao luar!
"Canção ao Luar"

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