Janeiro de Cima pela objectiva de quem lá vive
FotoXisto é o registo fotográfico que faltava em torno do projecto das Aldeias do Xisto. Mais do que um olhar profissional, artístico ou meramente curioso, este é o testemunho do quotidiano daquelas aldeias; desta vez reportado por aqueles que lá vivem...
ALDEIAS do Xisto. Por estes lados, o termo é automaticamente associado à localidade de Janeiro de Cima. Ao seu património, às suas casas, ruas e ruelas, todas de xisto claro está. Ao rio Zêzere. Às suas gentes, às suas histórias, à sua hospitalidade. Aos seus ambientes e paisagens únicas, sedutoras, românticas. Em suma, aos conjuntos que convidam artistas e leigos (por norma visitantes ocasionais) a perpetuá-los através da suas obras. Sejam frases, livros, esculturas, pinturas ou – o mais comum – fotografias. De tudo já se fez por ali e mais de um tudo se fará para dar a conhecer esta e outras Aldeias do Xisto.
Mas será que que o que estes forasteiros vêem é a verdadeira aldeia?
Provavelmente não. Provavelmente aos olhos daqueles que ali vivem há décadas estas obras nada mostram sobre o seu dia-a-dia. Pouco têm de real.
Foi então para conseguir essa autenticidade que João e Manuela Margalha, em colaboração com a Pinus Verde, lançaram um desafio à população: “Tirem as vossas próprias fotografias. Das pessoas, dos locais, das actividades. Não interessa do quê. O importante é a vossa visão”.
O desafio foi aceite. E o conjunto de máquinas digitais que iam sendo entregues à população depressa começou a disparar pelos quatro cantos de Janeiro de Cima e das restantes nove aldeias integradas no projecto. O resultado foi surpreendente. Mais de mil fotografias, 240 das quais seleccionadas para uma exposição (patente até 14 de Janeiro na Casa Grande da Barroca do Zêzere) em que, a julgar pela qualidade, os autores poderiam ser fotógrafos famosos.
Mas, não são. São, isso sim, pessoas como Álvaro Dias. O presidente da Junta de Freguesia de Janeiro de Cima não podia deixar de participar numa iniciativa que “ajuda a promover a aldeia”. Por isso de máquina em punho lá foi percorrendo a sua aldeia. A primeira paragem foi logo na sua padaria, local onde todos os habitantes passam à procura de pão fresco. Depois, uma casa que foi totalmente rodeada pelo fogo, mas que não sucumbiu à força das chamas. Álvaro ficou impressionado e resolveu retratar o local.
Quem também ficou maravilhado com a força na natureza foi António Gama Silva. Este habitante de Janeiro de Cima aproveitou a máquina para tirar fotografias das últimas cheias. Fotografou ainda uma matança do porco “que sempre fez parte da realidade da terra”. Além disso, tal como fazia em tempos de menino e moço, voltou a subir ao Pico do Peixoto, desta feita para tirar uma fotografia panorâmica à aldeia. “É o sítio ideal para vermos a terra toda”, diz.
E por falar em sítios imperdíveis. Lá está a fotografia – também de António Silva – do bar O Passadiço. Um local que, com certeza, dentro de alguns anos virá a ser ponto de encontro para as crianças que Maria Jesus fotografou no parque infantil.
“Tinha que registar aquele espaço, e as crianças que por lá passam. Elas representam o futuro desta aldeia”.
Uma fotografia que está a par da do seu pai, Hermínio Gaspar, acompanhado pelo seu rebanho; à do Cristo pregado na cruz; à do parque das merendas e à dos idosos que jogam às cartas no café do senhor Costa. E a tantas outras que representam o quotidiano da aldeia, mas desta vez, visto por dentro...
O testemunho da realidade de mais nove aldeias também está presente
SE JANEIRO de CIMA abre a exposição FotoXisto, o certo é que esta apresenta outras realidades. Deste projecto fizeram parte 10 das 23 Aldeias do Xisto. Assim, por entre as 240 fotografias tiradas por 61 pessoas também encontramos trabalhos dos habitantes das localidades de Aigra Velha, Aigra Nova, Benfeita, Cerdeira, Fajão, Foz do Cobrão, Gondramaz, Martim Branco e Talasnal. E também nestes casos, as fotografias contam as histórias da sua terra. É o caso do retrato da Torre da Benfeita que todos os anos assinala o fim da Segunda Guerra Mundial. No dia da efeméride, naquela torre replicam tantas badaladas como o número de dias que durou a guerra.
Já nas fotografias de Gondramaz encontramos a placa relativa ao “Beco do Tintol” ou os seus habitantes empenhados na apanha da castanha. Mas, entre as fotografias mais representativas está a das figuras (espécie de máscaras) gravadas em xisto por um habitante local.
Por seu turno, na localidade de Talasnal, Mirita Meira dos Santos teria que ser obrigatoriamente fotografada. Esta mulher é a autora dos talasnicos, um bolo que contribui para a fama da terra. Muitos são os visitantes que percorrem aqueles caminhos rurais só para provar os talasnicos da dona Mirita.
E nas fotografias da Foz do Cobrão lá encontramos representada a actividade que durante anos deu fama à terra. Trata-se do garimpo do ouro, actividade que actualmente só é praticada em iniciativas promovidas por associações locais. Foi numa dessas iniciativas que as fotografias foram tiradas.
Menos famosa é a senhora presente em uma das fotografias de Martim Branco. Trata-se de uma mulher de idade incerta, sempre para cima dos 70, encostada a um motocultivador. Não obstante de ser para a maioria uma desconhecida, o seu retrato foi, de entre os trabalhos, várias vezes destacado. Não é de surpreender. Este retrato representa todo o espírito da iniciativa. Representa a realidade de locais marcados pelo envelhecimento e pela interioridade; mas também representa a resistência, a coragem e até as novas dinâmicas que os seus habitantes vão imprimindo nomeadamente na agricultura.
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