sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

"Ainda não leu o acordão do TC?"

Ainda não leu o acórdão do Tribunal Constitucional?
Mário Pinto
1.De facto e de direito, o que está em causa no próximo referendo é o aborto completamente livre até às dez semanas, a pedido da mãe sem ter de alegar quaisquer razões. O aborto já é lícito, em Portugal, quando tem o consentimento da mulher grávida e é justificado: por razões "de morte, ou de grave e duradoira ou irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida"; por razão de "grave doença ou malformação congénita" do feto; por inviabilidade de vida do feto; por razão de gravidez resultante de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher. Os prazos variam: conforme os casos, podem ser de 12 ou 24 semanas, ou até sem prazo. Mas são sempre prazos praticamente operativos - por exemplo, no caso de "constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida", não tem prazo. O consentimento da mulher grávida, se for menor ou psiquicamente incapaz, pode ser prestado (conforme os casos) por ascendente, ou descendente ou qualquer parente da linha colateral. A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez deve ser certificada em atestado médico. Este é o essencial do regime legal em vigor em Portugal.2. Em vários países, que a propaganda abortista nesta matéria entre nós tem eleito como países modelo, a lei é sensivelmente análoga à nossa. É o caso de Espanha, onde a liberalização se faz pela prática ultraliberal dos médicos que reconhecem, a torto e a direito, que a mulher grávida que quer abortar tem sempre uma doença psíquica cujo remédio passa pelo aborto.3. Portanto, a lei portuguesa já contém um regime de equilíbrio entre os interesses e direitos da mãe e o direito à vida do filho. Considerando que o direito à vida é o mais importante e decisivo de todos os interesses e direitos, porque sem a vida não há direitos e tirando a vida tiram-se todos os demais direitos, não falta quem (e a meu ver com razão) considere que, no regime em vigor, já se foi longe de mais na desprotecção da vida intra-uterina, face à norma do art. 24.º da Constituição que diz: "A vida humana é inviolável" - esta norma, note-se bem, é aplicável à vida dos embriões humanos segundo uma doutrina consensual do Tribunal Constitucional. O que o referendo vem propor é ir mais longe naquela desprotecção da vida humana do embrião; a ponto de se perder completamente a ideia de um real equilíbrio. Vejamos.4. Posto perante a pergunta do próximo referendo, em que o aborto se torna um direito absoluto e incontrolado da mulher grávida nas primeiras dez semanas, o Tribunal Constitucional foi obrigado a ir à questão fulcral da inviolabilidade da vida humana - e, por isso, a leitura do Acórdão n.º 617/2006 é indispensável. Porém (com o devido respeito, e em minha opinião) a tese vencedora no Tribunal Constitucional não esteve à altura do problema. E é isso mesmo o que, sem grande dificuldade, se pode tirar da leitura do corpo do acórdão relatado pela juíza-conselheira relatora, e das impressionantes declarações dos juízes-conselheiros vencidos (apenas por sete a seis). A leitura do acórdão está ao alcance do cidadão que se queira esclarecer; e permite concluir que a tese que venceu à tangente se exprime por uma argumentação manifestamente injusta e absurda: em que, por um lado, se não protege realmente o direito à vida do embrião (que é o direito fundamental entre os fundamentais); e, por outro lado, se absolutizam abstractamente interesses ou direitos da mulher, recorrendo a fórmulas abertas que dariam para justificar tudo e a ponderações comparativas absurdas. Exemplificarei com dois pontos.5. Para justificar o "poder soberano" que se confere à mãe para matar o filho nas primeiras dez semanas da gravidez, o acórdão do Tribunal Constitucional não encontra melhor argumento do que o da invocação da "liberdade de [a mulher] desenvolver um projecto de vida (...) como expressão do desenvolvimento da [sua] personalidade". Nunca se ouviu falar de tamanho e totalitário direito de desenvolver a personalidade própria, através de um projecto de vida que, no caso, passa pelo projecto de uma morte. Se o direito de decidir um projecto de vida pessoal, alegadamente para desenvolver a personalidade própria ("o direito ao desenvolvimento da personalidade" que todos temos), pode ter este poder incontrolado e poderoso, ao ponto de afectar os direitos fundamentais dos outros e designadamente o direito à inviolabilidade da vida humana, isso é caso inédito na jurisprudência constitucional e na teoria dos direitos fundamentais. E não se diga que se trata de uma aplicação a um caso especial, porque neste caso do aborto aquele direito defronta o direito fundamental de inviolabilidade da vida humana do art. 24.º da Constituição, cuja aplicação se estende consensualmente à vida humana intra-uterina.6. Mas há mais. A tese vencedora no Tribunal Constitucional afirma que com ela se constrói um equilíbrio entre: de uma parte, a protecção dos direitos e interesses da mãe (ao desenvolvimento da sua personalidade); e, de outra parte, a protecção do direito à inviolabilidade da vida do filho. E como se concretiza esse equilíbrio? Diz o tribunal que é pelo chamado "método dos prazos". Qual é esse método? É concedendo à mulher grávida o direito de decidir arbitrariamente da vida ou morte do filho nas primeiras dez semanas; e, para equilibrar, concedendo protecção à vida do filho... depois das dez semanas. É inacreditável! Se não fosse trágico, seria para rir.7. Como é óbvio, a protecção que no acórdão se diz conceder à vida do filho depois das dez semanas só existe se a mãe decidir não abortar nas primeiras dez semanas. Ou seja: a protecção aos direitos e interesses de uma das partes no conflito, o filho, depende absoluta, arbitrária e definitivamente da decisão prejudicial da outra parte, a mãe. Portanto, a protecção à vida do filho é virtual; e assim não corresponde ao espírito constitucional, que garante no art. 24.º uma inviolabilidade real, e não apenas virtual, à vida humana. Supondo que, em Portugal, todas as mulheres grávidas decidissem abortar nas primeiras dez semanas, nunca nenhuma vida humana intra-uterina viria a beneficiar da protecção jurídica do art. 24.º da Constituição, que diz: "A vida humana é inviolável". É este o equilíbrio do método dos prazos?!8. Conclusão evidente: a alternativa aberta pelo próximo referendo de uma total liberalização do aborto até às dez semanas, por vontade discricionária e incontrolada da mulher grávida, é um excesso bárbaro, uma injustiça humana e uma mistificação constitucional. Com efeito, se as reais razões da mulher para abortar não precisam de ser invocadas, então poderão elas ser quaisquer: desde razões sérias, a razões perversas; desde reais dificuldades, até caprichos, negócios, feitiços, vinganças, crueldades, tudo. Desta maneira, note-se bem, deixa de haver limites, nem éticos, nem morais, nem sociais, juridicamente relevantes. Literalmente: "não há direito".
Professor universitário

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