terça-feira, 8 de maio de 2007

"O jihadismo"

O Dilema Americano – Ameaça, risco e guerra preventiva
Carlos I.S. Azambuja
Resumo: O jihadismo não é uma tentativa de restaurar uma forma genuína e anterior do Islam, mas uma tentativa de criar uma nova doutrina universalista que possa ser uma fonte de identidade no contexto do mundo moderno, globalizado e multicultural.
© 2007 MidiaSemMascara.org
É comum os americanos afirmarem que “tudo mudou depois do 11 de setembro”, querendo com isso dizer que surgiu uma situação nova e muito grave, que exigia um conjunto muito diferente de respostas em termos políticos. Isso certamente está correto até certo ponto, e um indicador da mudança foi o fato de o governo Bush conseguir convencer a maioria do povo americano a apoiar duas guerras no Oriente Médio nos 18 meses subseqüentes aos ataques às torres gêmeas e ao Pentágono. Porém, a exatidão a respeito de como e até que ponto a ameaça mudou é importante, porque influencia os tipos de risco que os EUA correm com sua reação.
Os ataques de 11 de setembro mudaram as percepções das ameaças aos EUA porque reuniram duas ameaças que eram muito mais mortais combinadas do que separadamente: o islamismo radical e as armas de destruição em massa.
A possibilidade de uma organização não-estatal relativamente pequena e fraca infligir um dano catastrófico, é algo genuinamente novo nas relações internacionais e representa um desafio sem precedentes à segurança. Todo o edifício da teoria das relações internacionais é construído em torno do pressuposto de que os Estados são os únicos participantes significativos na política mundial. Se uma destruição catastrófica pode ser infligida por agentes que não são Estados, então muitos conceitos que fizeram parte da política de segurança ao longo dos dois últimos séculos – equilíbrio de poder, dissuasão, contenção e assemelhados – pedem sua relevância. A teoria da dissuasão, em particular, depende de o usuário de qualquer forma de arma de destruição em massa ter um endereço e, com ele, ativos que possam ser ameaçados em retaliação.
Após os ataques de 11 de setembro surgiu uma grande diferença de percepções sobre esta questão entre americanos e europeus. Muitos americanos estavam convencidos de que o terrorismo catastrófico era provável e iminente e que os ataques de 11 de setembro marcaram o início de uma tendência ascendente na violência. Os europeus tendiam mais a assimilar os ataques à luz de sua experiência com o terrorismo de grupos como o IRA irlandês ou a ETA-Basca, encarando-os como um evento único surpreendentemente bem-sucedido, uma exceção em um fenômeno mais comumente marcado por bombas em carros ou assassinatos.
Não se pode descartar a possibilidade de um ataque terrorista com grandes baixas aos EUA. Porém, existe um motivo para pensar que a probabilidade desse tipo de ataque tenha se reduzido desde o 11 de setembro. O motivo é simplesmente que, antes daquela data, o enorme aparato de Segurança Nacional dos EUA, bem como os Serviços de Informações e as forças policiais de outros países não estavam concentrados nesta questão, como uma prioridade. Depois do 11 de setembro ficaram. Embora tenham sido necessários alguns meses para virar este super-petroleiro e colocá-lo em um novo curso, uma vez redirecionado ele trouxe enormes recursos para combater o problema.
Porém, a eficácia desses recursos depende do tamanho da ameaça política. Se uma parcela significativa dos muçulmanos do mundo – cerca de um bilhão – fosse mobilizada para cometer terrorismo suicida contra os EUA, até mesmo esse aparato de segurança teria dificuldades para deter a maré. Por outro lado, se os terroristas realmente perigosos constituíssem um número de pessoas relativamente pequeno, então o problema provavelmente seria administrável. Assim, parte da avaliação da ameaça depende de uma avaliação das dimensões políticas da ameaça representada pelos radicais islamitas.
A terminologia é importante. Há distinções significativas entre fundamentalistas islâmicos, islamitas, radicais islamitas e muçulmanos comuns, distinções essas que se tornaram particularmente importantes na esteira dos ataques de 11 de setembro. Os fundamentalistas islâmicos agem por motivos religiosos e procuram reviver uma forma anterior e mais pura de prática religiosa. Já os islamitas tendem a enfatizar metas políticas e querem, de alguma forma, introduzir a religião na política, embora não necessariamente de maneiras hostis à democracia. Um exemplo é o do Partido Islâmico de Justiça e Desenvolvimento da Turquia, que foi eleito democraticamente e apoiou o ingresso do país na União Européia. Os radicais islamitas, ou jihadistas, como Osama bin Laden, destacam a necessidade da violência na busca da consecução de suas metas políticas.
Há quem pense que estamos diante da “Quarta Guerra Mundial”, tendo sido atacados por um inimigo potencialmente tão perigoso e poderoso quanto aqueles que foram enfrentados nas duas guerras mundiais e na Guerra Fria. Talvez a exposição mais clara desse ponto de vista tenha sido feita por Charles Krauthammer:
“Desdenhar o apelo do islamismo radical também é uma opinião dos secularistas. O Islam radical não é apenas tão fanático e impossível de apaziguar quanto qualquer outra coisa que já vimos em seu anti-americanismo, anti-ocidentalismo e anti-modernismo. Ele tem a distinta vantagem de se basear numa religião venerável com mais de um bilhão de adeptos, que não somente fornece um suprimento imediato de recrutas, treinados e preparados em mesquitas e ‘madrassas’ – centros de aprendizado – que são muito mais eficazes, autônomos e ubíquos do que a Juventude Hitlerista e o Konsomol – seu equivalente soviético – mas também pode se basear numa profunda e longa tradição de zelo, expectativa messiânica e culto ao martírio. Hitler e Stalin tiveram que inventar tudo isso a partir do zero. O radicalismo islâmico marcha com uma bandeira com muito mais profundidade histórica e apelo duradouro do que as religiões artificiais da suástica e da foice e martelo que se mostraram historicamente superficiais e sem substância” (1).
Em outras palavras, Krauthammer afirma que a ameaça política enfrentada provém de uma versão da religião islâmica, que é completamente impossível de apaziguar, é anti-ocidental e está profunda e amplamente arraigada entre os muçulmanos do mundo.
Cada uma dessas afirmativas é contestável e todas exageram em muito a ameaça enfrentada pelos EUA no mundo posterior a 11 de setembro. Os EUA não estão combatendo a religião islâmica nem seus fiéis, mas uma ideologia radical que representa apelo para uma distinta minoria de muçulmanos. Essa ideologia deve muito a idéias ocidentais e atrai os mesmos indivíduos alienados que, em gerações anteriores, teriam gravitado para o comunismo ou o fascismo. Existem boas razões para concordar com os especialistas franceses em assuntos islâmicos Gilles Kepel e Olivier Roy, que afirmam que, como movimento político o jihadismo foi, em grande parte, um fracasso (2). Os ataques de 11 de setembro e a guerra no Iraque lhe deram nova vida, mas a capacidade dos jihadistas de conquistar poder político é baixa e tem sido consistentemente superestimada por muitas pessoas no Ocidente. A ameaça terrorista é real e mortal, mas sua forma mais provável será de ataques isolados na Europa Ocidental ou em países muçulmanos, comparáveis aos atentados a bomba em Casablanca, Bali, Madri, Londres e Amã.
O jihadismo não é uma tentativa de restaurar uma forma genuína e anterior do Islam, mas uma tentativa de criar uma nova doutrina universalista que possa ser uma fonte de identidade no contexto do mundo moderno, globalizado e multicultural. Uma tentativa de ideologizar a religião e usá-la com fins políticos, mais como um produto da modernidade do que uma reafirmação de religião ou cultura tradicional. Muitas idéias islamitas radicais não são de origem islâmica, mas ocidental. Se voltarmos até os pensadores políticos que moldaram a ideologia da Al-Qaeda, como Hassan al-Banna e Sayyid Qutb, da Irmandade Muçulmana, Maula Mawdudi, do movimento paquistanês Jammar-e-Islami, ou o aiatolá Khomeini, encontraremos uma doutrina sincretista peculiar que mistura idéias islâmicas com idéias ocidentais, tomadas de empréstimo das extremas esquerda e direita da Europa do século XX (3). Conceitos como “revolução”, “sociedade civil”, “Estado” e a valorização moral da violência não provêm do Islã, mas do fascismo e do marxismo-leninismo.
A implicação desta visão é a de que não estamos envolvidos em nada que se assemelhe a um “choque de civilizações”, mas em algo muito mais parecido para nós a partir da experiência do século XX. As pessoas mais perigosas não são os muçulmanos piedosos do Oriente Médio e sim, jovens alienados e deslocados em Hamburgo, Londres ou Amsterdã que, como os fascistas e marxistas antes deles, vêem a ideologia – neste caso o jihadismo – como a resposta para sua busca pessoal por identidade. Os atentados de 11 de março de 2004 em Madri, o assassinato do cineasta holandês Theo van Gogh em Amsterdã por Mohammed Bouyeri em 2 de novembro de 2004, e os atentados de 7 de julho de 2005 em Londres por um grupo de cidadãos britânicos de origem paquistanesa, são demonstrações disso.
O jihadismo é um sub-produto da modernização e da globalização, e não do tradicionalismo e, dessa forma, será um problema em sociedades modernas e globalizadas. Além disso, a democracia ocidental não será uma solução de curto prazo para o problema do terrorismo. Os atacantes de 11 de setembro, de Madri, de Amsterdã e de Londres viviam em sociedades modernas e democráticas e não estavam alienados pela falta de democracia nos seus países natais ou de seus ancestrais. Foi precisamente a sociedade moderna e democrática em que viviam, que eles acharam alienante.
Assim, o problema em longo prazo não é o do Ocidente isolar-se do Oriente Médio ou de “consertá-lo” de alguma forma. É muito mais complicado: integrar melhor pessoas que já estão no Ocidente e fazê-lo de uma forma que não prejudique a confiança e a tolerância nas quais se baseiam as sociedades democráticas.
Também é importante reconhecer a complexidade dos antecedentes culturais de onde provém o jihadismo. As teorias simplistas que atribuem o problema do terrorismo à religião ou à cultura não estão apenas erradas. É possível que elas piorem a situação, porque obscurecem as importantes fissuras que existem no mundo do Islam global.
No centro do problema terrorista está um núcleo rígido de fanáticos irrefreáveis, cercados por uma série de círculos concêntricos representando os simpatizantes, os indiferentes, os apolíticos e os simpatizantes do Ocidente em diversos graus. O mundo muçulmano é grande e abrange países como Mali (que em 2005 assumiu a presidência da Comunidade de Democracias), Senegal, Turquia, Indonésia e Malásia, que têm tido algum sucesso com a democracia ou a modernização econômica.
É importante separar as dimensões tecnológica e política da ameaça, porque isso influencia grandemente aquilo que se pode considerar uma resposta razoável a ela e que tipo de risco se está disposto a assumir para realizá-la. Se o combate é contra um número relativamente pequeno de fanáticos ocultos por trás de um grupo maior de simpatizantes, o conflito começa a se parecer com uma guerra anti-insurreição combatida no mundo inteiro. Isso torna inadequada uma resposta exclusivamente militar ao desafio, uma vez que as guerras contra insurreições são profundamente políticas e dependem da conquista, desde o início, dos corações e mentes da maioria da população.
Muitos fatores sobre a natureza da ameaça terrorista ainda são desconhecidos, como o número de jihadistas irredutíveis, as fontes de futuro suprimento de novos recrutas, as localizações dos limites entre os círculos sucessivos de partidários em potencial e a combinação de punições e chamarizes necessários para separar os adeptos em potencial do núcleo interno de irredutíveis. O governo Bush definiu que a resposta adequada seria mais pela punição do que com chamarizes e afirmou a existência de um forte relacionamento entre a nova espécie de jihadistas e os velhos árabes nacionalistas, como Saddam Hussein. Esse julgamento foi declarado antes e depois do início da guerra do Iraque, com base em três argumentos claramente influenciados pelos ataques de 11 de setembro: o fato de o Iraque possuir armas de destruição em massa – armas que não apareceram -; que o Iraque estava ligado à Al-Qaeda – foram levantadas sérias dúvidas quanto a essa suposta ligação -; que o Iraque era uma ditadura tirânica da qual o povo iraquiano merecia ser libertado.
Todavia, existiam outras razões para ir à guerra, menos alarmistas, que o governo Bush poderia ter enfatizado e que o teriam deixado numa melhor posição política. A primeira e mais importante tinha a ver com a insustentabilidade do regime de sanções anterior à guerra e os custos que ele estava incorrendo. A manutenção das zonas de exclusão aérea sobre o Iraque exigia a presença permanente de militares dos EUA na Arábia Saudita.
O Iraque e seus simpatizantes no mundo árabe também tiveram muito sucesso antes da guerra afirmando que as sanções da ONU eram responsáveis pela morte de crianças iraquianas e deveriam ser eliminadas por uma questão moral. No entanto, depois de iniciada a guerra, o escândalo do programa Petróleo por Alimentos revelou que Saddam Hussein e seus parceiros internacionais haviam de fato desviado para si mesmos o dinheiro destinado a ajudar as crianças iraquianas. Antes de iniciada a guerra era impossível convencer qualquer pessoa a esse respeito.
Finalmente, deve ser assinalado que uma das razões pelas quais a guerra preventiva sempre foi considerada problemática, em termos de prudência, é que ela depende da capacidade de um Serviço de Inteligência – qualquer que ele seja - prever o futuro com precisão. Nesse sentido, talvez não constitua surpresa o fato de Otto Von Bismarck, o grande chanceler alemão, ter comparado a guerra preventiva a “cometer suicídio por medo de morrer”.


O texto acima é um resumo das páginas 72 a 89 do livro O Dilema Americano, de Francis Fukuyama, editora Rocco, 2006.
(1) Norman Podhoretz, World War IV: How It Started, Wha tIt Means and Why We Have to Win, Commentary 118, nº 2 (2004):17-54; Charles Krauthammer, In Defense of Democratic Realism, National Interest 77, outono de 2004.
(2) Gilles Kepel, The War for Muslim Minds: Islam and the West, Cambridge Belknap, 2004; Olivier Roy, The Failure of Political Islam, Cambridge, Harvard University Press, 1995. Ver também Olivier Roy, Globalized Islam: TheSearch for a New Ummali, New York, Columbia University Press, 2004.
(3) Ladan Baroumand e Roya Baroumand, Terror, Islam and Democracy, Journal of Democracy 13, nº 2, 2002, 5-20. O fato de o jihadismo ser um sincretismo de crenças ocidentais também é a essência da caracterização que Olivier Roy faz do islamismo.

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