domingo, 10 de junho de 2007

"we the people"

Verdade, democracia e valores: o beijo de Antígona
Casimiro Jesus Lopes de Pina
Resumo: Os grandes pensadores da liberdade (sobretudo os do iluminismo anglo-americano) não eram, de forma alguma, inimigos dos valores tradicionais.
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“Auctoritas, non veritas, facit legem” – Thomas Hobbes

"Hoje, nas modernas democracias, quer-se fazer crer, a todo o custo, que a Verdade não existe. Que tudo é “relativo”. Que tudo se mede, enfim, pelos caprichos e subjectivismos do pacato cidadão.
A democracia seria uma casca semivazia, alicerçada num único e supremo valor: a tolerância.
Devemos “tolerar”, proclamam as sereias do politicamente correcto, qualquer comportamento. Aceitar qualquer moda ou extravagância. Ninguém pode impor padrões ou regras sociais mais amplas.
Hans Kelsen, o criador da “Teoria Pura do Direito”, defendia uma concepção processualista de democracia. Curiosamente, foi o mesmo Kelsen quem, num capítulo iluminante, intitulado “Jesus e a democracia” (in A democracia, Martins Fontes, SP, 1993), nos recordou os limites do relativismo ético e da democracia totalitária.
Era há muito, muito tempo...
Jesus, traído por Judas, é preso e entregue ao sinédrio. Pôncio Pilatos, o representante do poder imperial, é colocado perante um dilema. Hesita, no momento inicial, mergulhado na dúvida (metódica?).
Não sabe o que fazer. A sua consciência interpela-o…
Ora, Pilatos, muito provavelmente, sabia, no seu íntimo, que Jesus Cristo era inocente.
No entanto, passa a bola à multidão. O supremo magistrado, recorrendo à astúcia, endossa a incómoda decisão à multidão, lavando as suas mãos. Isto é: desresponsabilizando-se, como o senhor Lula da Silva no caso do mensalão.
O povo (“we the people”), investido do poder “judicativo”, podia, então, escolher entre Cristo e Barrabás. Acontece o mais incrível: Barrabás é libertado. E Cristo é condenado. “Mas Barrabás era um ladrão!”, exclamou Kelsen, numa das páginas mais profundas e intrigantes da filosofia política.
Moral da história: a maioria não é o critério da Verdade - e pode fazer escolhas erradas.
Cristo foi crucificado por uma maioria sedenta de vingança e anarquia. É por isso que a democracia não se deve resumir ao simples “consentimento da maioria”, critério meramente estatístico. A democracia precisa de uma ética.
A protecção dos direitos fundamentais e a garantia de um julgamento imparcial constituem o núcleo de um sistema político civilizado, sem o qual se resvala para a tirania das massas, que tanto preocupou Ortega Y Gasset. A limitação do poder, pela via das garantias constitucionais, foi o grande contributo da democracia americana, como bem o sublinhou Tocqueville, ao pensamento moderno e iluminista (e à história político-constitucional).
Num momento de sensatez, o Tribunal Constitucional português considerou o princípio da justiça “parâmetro de constitucionalidade”, fugindo, assim, à tentação formalista e positivista, alheia ao dever-ser jurídico (Acórdão n.º 162/95, Diário da República, I Série-A, n.º 106, de 8 de Maio de 1995).
Como escreveu João Paulo II (O Esplendor da Verdade, Rei dos Livros, Lisboa, 1993, pp. 162-163), “O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe uma verdade em sentido transcendente, na obediência à qual o Homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens…se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder…a raiz do totalitarismo moderno, portanto, deve ser reconhecida na negação da transcendente dignidade da pessoa humana”.
São palavras sábias que conferem uma outra legitimidade ao sistema político. De qualquer modo, têm um sabor meio “arcaico” para a filosofia “pós”-moderna, seduzida pelo relativismo ético, o qual domina, com o seu epistémico “desconstrucionismo”, o próprio sistema educativo. [*]
As nossas escolas desistiram, com efeito, de ensinar (e exigir) os valores positivos, sob a capa de um indiferentismo que mina a civilidade e lança a maior confusão nas relações sociais. É pura utopia, e utopia perigosa, imaginar que se pode prescindir das virtudes tradicionais, tais como o respeito, a honra, o bom senso e a honestidade. Sem o fundo moral, o conhecimento estiola-se no sem-sentido e no vazio dissolvente, algo próximo do “conhecimento inútil” analisado por Jean-François Revel.
Os grandes pensadores da liberdade (sobretudo os do iluminismo anglo-americano) não eram, de forma alguma, inimigos dos valores tradicionais. Eles queriam apenas uma sociedade onde o indivíduo não fosse escravo do colectivo, mas jamais propuseram a abolição dos pilares da civilização, que são, justamente, os princípios morais decantados ao longo dos séculos. O grande equívoco do “pós”-modernismo assenta, pois, na não compreensão deste ponto: o caminho mais curto para o autoritarismo não é a insistência nas virtudes cívicas, é a sua ausência, responsável, aliás, pelo aumento da criminalidade e pela degradação da vida pública (falta de uma cultura de serviço público, corrupção, etc.).
A redescoberta do sentido é o grande desafio do nosso tempo. (Sobre algumas pistas para a reconstrução da ordem social, v. Francis Fukuyama, A Grande Ruptura, Quetzal Editores, Lisboa, 2000, pp. 363 ss.). Um papel especial cabe, nesta linha, à religião cristã. O cristianismo está na origem da nossa ordem jurídica e dos direitos humanos, e isso não deve ser esquecido (v. a síntese de Wagdi Sabete-Ghabriel: “O Cristianismo e a origem intelectual dos Direitos do Homem”, in Direitos Humanos – Teorias e Práticas, AA. VV., organizado por Paulo Ferreira da Cunha, Livraria Almedina, Coimbra, 2003, pp. 17-33).
É tão bom recordar, numa época de confusão, os valores que fundaram e dão consistência à nossa civilização!
Na altura da investidura do papa Bento XVI, figura tão contestada pelo establishment mediático, o bispo auxiliar de Lisboa deu uma entrevista muito interessante ao jornal Público (24 de Abril de 2005), clarificando alguns temas do debate ético-cultural. D. Manuel Clemente recordou o papel da Igreja na manutenção da vida pública e intelectual durante a Idade Média, conservando a cultura da antiguidade clássica à luz dos grandes princípios morais e teológicos.
D. Manuel tocou num aspecto decisivo, ao dizer: “há estruturas gerais de humanidade que nos permitem ser Humanidade…se desistirmos de chegar lá estará tudo perdido”.
Sobre o relativismo ético, ele afirmou o seguinte: “O relativo não é moderno, é pós-moderno, é a factura que se está a pagar às grandes desilusões do século XX…”. A meu ver, as “grandes desilusões” seriam, sobretudo, o nazismo e o totalitarismo soviético, formas de governo assentes na negação do transcendente e da dignidade humana.
Mas D. Manuel enganou-se, penso, num ponto: o relativismo não é “pós”-moderno, apesar da aparente sofisticação académica de um Foucault, Bourdieu ou Rorty. O relativismo é uma crença pré-moderna, cuja raiz é o cepticismo que veio da Grécia antiga, donde sobressairam, também, a concepção dos sofistas e o niilismo filosófico.
A modernidade, a partir do século XVI, e sobretudo no século XVIII, é a tentativa de estabelecer a razão, a dignidade humana e a centralidade de uma esfera pública decente. Progressista e não obscurantista, como sucedia na pré-modernidade.
O prefixo “pós” é apenas um engenhoso truque de marketing, para ocultar a faceta jurássica e autoritária."


[*] Ver, a respeito da Escola de Frankfurt, um dos principais centros da contra-cultura, o artigo de Ipojuca Pontes.
O autor é natural de Cabo Verde, é jurista e colunista de vários jornais cabo-verdianos, tais como Terra Nova (o mais antigo ainda em circulação), Liberal e Expresso das Ilhas.

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