domingo, 16 de setembro de 2007

Existência plural

Um Poeta Beirão: Simões Dias
Beatriz Alcântara

Em 1963, aos dezenove anos, publicou, em Coimbra, seu primeiro livro de poesia, Mundo Interior, ao qual seguiu-se, um ano depois, a publicação do poema Sol à Sombra. Ainda no mesmo período de estudos universitários, publicou um livro de contos intitulado Coroa de Amores e, com registro incerto, outro livro de contos, Figuras de Gesso.
Lecionando para sustentar seus estudos e permitir-lhe a independência, o poeta foi cristalizando uma experiência didática, que viria a acompanha-lo pelo resto da vida, mas que não lhe vetava uma existência plural, rica em acontecimentos, amores e desamores, cujos registros podem ser exemplificados com o poema “Na Praia”, quadras de um ingênuo amor:

Formoso pôr de sol! Formosa tela!
É como um resplendor,
Em pé sobre uma rocha a visão bela
Do meu primeiro amor!
Cinge-lhe o sol a fronte alabastrina,
Aureola de santa!
Beija-lhe o rosto a vaga tremulina
Que do mar se levanta!
Dois meses após a formatura acadêmica, Simões Dias casou-se na Sé de Coimbra - a 3 de setembro de 1868 - com Guilhermina Simões da Conceição, jovem de “formosura rara”, numa prestigiada cerimônia, segundo relato dos contemporâneos.

Os estudos universitários concluídos com invulgar brilhantismo, surgiu o convite para integrar o corpo docente da Universidade de Coimbra, mas o poeta resolveu descortinar outros horizontes e concorreu à carreira de ensino público, sendo nomeado para a cidade alentejana de Elvas, em 1969.

A cidade acolheu bem o jovem professor, que já possuía um certo nome literário, e ensejou-lhe a criação e a edição de novas obras.

Mas uma infelicidade esperava o escritor, a morte da esposa, aos 24 anos. com menos de um ano de casamento.

Grande desgosto, expresso no poema “A hera e o olmeiro”:

Perpassa o vendaval com brava sanha
No cume da montanha,
E o ramo de hera que o olmeiro abraça
Arranca e despedaça!
Tu eras, meu amor, qual ramo de hera
Da minha primavera;
Eu era, linda flor, qual triste olmeiro,
O teu amor primeiro!
Mas veio sobre nós a dura sanha
Do vento da montanha,
E tu mimoso arbusto que eu amara,
Tombaste, ó sorte avara!
Agora, em pó desfeita a planta linda,
Por que é que espero ainda?
Que a mesma ventania, quando passe,
Me tombe e despedace!
Da permanência em Elvas resultaram definitivas vertentes na vida literário de Simões Dias.

A proximidade com as terras de Espanha ensejou a publicação de Espanha Moderna, estudos sobre a Literatura espanhola contemporânea, que lhe propiciaram a Comenda de Isabel a Católica, do Governo espanhol, e que, simultaneamente, inauguraram e direcionaram o autor para a escrita de cunho didático.

Em Elvas, no ano de 1870, surgiu a primeira edição das Peninsulares, canções meridionais que consagraram definitivamente o poeta.

Pesaroso com a viuvez, Simões Dias pediu transferência para Lisboa. Curta foi a estada, menos de um ano, de agosto de 1870 a abril de 1871.

Porém, ainda que rápida a passagem, ela ensejou a freqüência e a participação nos saraus literários de António Feliciano de Castilho, tão ao gosto da época.

Desse convívio ficou o registro no poema “Musa Nova”, versos de procedimento quase precioso:

A musa da nossa idade
É um ser extravagante,
Com igual jovialidade
Sorri ao Bocaccio e ao Dante
Ora solta sobre ruínas
O grito das maldições,
Ora do alto das colinas
Faz discurso às multidões.
...........................................
Divina sacerdotisa,
Quando a topo no caminho,
Tapeto-lhe o chão que pisa
De palmas e rosmaninho!
Já distante de Elvas, foi ainda nessa cidade que veio a lume novo livro de poesia, Ruínas, posteriormente incluído em outra edição das Peninsulares.

O poeta retornou à Beira. Fixou residência na cidade de Viseu, para onde foi nomeado professor do Liceu com regência da cadeira de Oratória, Poética e Literatura. Em Viseu, de 1871 a 1886, Dr. José Simões Dias viveu a maior, a mais diversificada e a mais profícua fase da idade adulta.

Em setembro de 1872, contraiu novo matrimônio com Maria Henriqueta de Menezes e Albuquerque de quem veio a ter uma filha, Judith, que lhe proporcionou uma descendência legitimada, o neto, o músico Mário Simões Dias. Os versos, por amor, elevavam-se:

Todo o meu ser se evola em doces êxtases,
Como se fora em ascensão divina
Arrebatado ao céu! Da gota rubra
Do sangue do Calvário sobre a rocha
Escorre a fé e o amor! A caridade
Sorri na cruz a distender os braços,
E a meiga esperança, reluzindo no alto,
Brilha formosa como à tarde um íris!
Em terras de Viseu, Simões Dias firmou-se como escritor e professor, enquanto ampliava e diversificava seus interesses e atuação.

Consolidou-se como um proficiente e atualizado escritor pedagógico, iniciou e afirmou-se na política, como Deputado às Cortes, em várias legislaturas – 1879, 1884, 1887 e 1890, por Mangualde, Pombal e Mértola – tendo evidenciado-se grande orador, erudito e frontal.

Figura eminente do Partido Progressista, proferia discursos polêmicos, defendia, em jornais e em comícios de rua, causas por tal modo inflamadas que, certa vez, foi vítima de uma cena pública de violência física protagonizada por um opositor.

Os registros da época apontam-lhe uma firme, proveitosa e democrática atuação política, devendo-se à sua natural inclinação para o mundo das letras, defesa e propositura da instituição de feriado nacional, no dia do tricentenário de morte de Camões, 10 de junho de 1879.

Ao participar de debates tão acesos, Simões Dias descobriu-se também jornalista, chegando a fundar três periódicos: o jornal Observador em 1878, liberal e patriótico; no ano seguinte, o Distrito de Viseu, voz do Partido Progressista, que ele dirigiu por oito anos; o inovador diário, O Globo, que circulou de 1888 a 1891; além de ter colaborado e dirigido, de 1887 a 88, o jornal progressista Correio da Noite.

Eram novos os tempos e outras as verdades. O poeta Simões Dias cantava,

Quando caiu exangue a velha sociedade,
Alguém que nos guiava os passos mal seguros
Nos disse, olhar em chamas: “Ó filhos d’outra idade,
O largo mundo é vosso, apóstolos futuros!
e na louvação ao progresso e ao nacionalismo, em outras estrofes enalteceu o Marquês de Pombal:

No pedestal da glória,
Que o pátrio amor sustenta,
Perfeitamente assenta
A estatua do marquês,
Pois que ninguém na história,
De pulso tão ousado,
Ergueu mais alto o brado
Do nome português!
......................................
Exangue morre a pátria?
Exausto anda o erário?
O reino, um proletário?
O ensino, uma irrisão?
Pois bem! Do vasto cérebro
Do herói do luso povo
Virá um mundo novo:
A luz, a escola, o pão!

Ao longo do período visiense, várias publicações didáticas de sua lavra surgiram: em 1972, Compêndio de História Pátria e Compêndio de Poética e Estilo, posteriormente denominada Teoria da Composição Literária; em 1875, História da Literatura Portuguesa; em 1881, Elementos de Oratória e Versificação Portuguesa, depois refundida na História da Composição; em 1880 a 1ª edição/Porto e em 1883 a 2ª edição/Coimbra, de A Instrução Secundária e colaborou com o Manual de Leitura e Análise, editado no Porto em 1883.
A Literatura, um pouco relegada, como se pode supor numa existência tão repleta e diversificada, tomou uma feição diferente, o romance.
A afinidade com um escritor constrói-se, via de regra, a partir da identificação que o leitor estabelece com sua obra. Por esse modo lembro-me de terem-se iniciado minhas preferências literárias e, a devoção que nutro por certos escritores como, Luís Vaz de Camões, Marcel Proust, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Clarice Lispector e Josué Montelo.

Todavia, para cada regra formulada, logo surge um fato contrário, e assim, numa contra-regra, aconteceu a ligação que estabeleci com um dos mais ilustres beirões de todos os tempos, o benfeitense Dr. José Simões Dias.

Fala-se que a aldeia da Benfeita, no concelho de Arganil, distrito de Coimbra, tem a forma de um lenço de três pontas. Numa das pontas desse lenço, no pequeno largo da capela de Nossa Senhora da Assunção, ficava a casa de meus bisavós Fonseca, onde, nos tempos em que minha avó Augusta e tia Laura viviam, eu passava boa parte das férias “grandes”.

Tanto quanto lembro das águas frias nos meus pés a chapinharem sobre os seixos na ribeira estival, recordo, e ainda repito, algumas quadras de Simões Dias recitadas durante os serões familiares da meninice. Uma dessas quadras, de sabor popular, é quase proverbial na minha pequena família, na outra banda do Atlântico:

Quem tem filhos, tem cadilhos
Quem não os tem, antes os tivesse
Porque quem tem filhos a vida
não finda, mesmo depois de morrer.
Mas atenção! Há um engano. Como poderia um poeta de tão grande arte como o Dr. José Simões Dias, de competente e sábio domínio literário a ponto de ter compilado os conhecimentos em duas obras valorosas, Compêndio de Poética e Estilo e Teoria da Composição Literária, ter construído uma quadra tão alheia à métrica normativa da redondilha maior?
Compare-se a anterior à quadra original do poeta:

Quem tem filhos tem cadilhos
Diz o rifão, mas é ver
Se alguém há que tendo filhos
Deseje vê-los morrer!

Peninsulares: odes,

A modificação das quadras toca num ponto nevrálgico, raramente abordado na relação autor e fruidor da obra de arte.

Uma obra literária, cinqüenta anos passados da morte do escritor, passa a ser, por lei, de domínio publico, livre de direitos autorais, e portanto, patrimônio popular, desde que ao povo assim lhe apeteça.

Antes desse prazo regulamentar, no entanto, nas quadras em questão, o senso comum interiorano português achou-se por tal modo identificado no sentir com o brilho setissílabo de Simões Dias que essas quadras modificaram-se ao sabor das vontades, numa literatura, digamos, quase oral, percorrendo um sinuoso trajeto de casa para casa, a ecoar de uma aldeia para outra, entoada por cantadores ambulantes, jograis e cegos de feira em feira das entre-beiras até os “algarves”, pois foi no sul peninsular que Estácio da Veiga ouviu o canto popular das trovas de “O Teu Lenço”, poema aqui reproduzido, em parte:

O lenço que tu me deste
Trago-o sempre no meu seio,
Com medo que desconfiem
D’onde este lenço me veio.
As letras que lá bordaste
São feitas do teu cabelo;
Por mais que o veja e reveja,
Nunca me farto de vê-lo.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A cismar neste bordado
Não sei até no que penso;
Os olhos trago-os já gastos
De tanto olhar para o lenço.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quanto mais me ponho a vê-lo,
Mais este amor se renova;
No dia do meu enterro
Quero levá-lo p’ra cova.
Peninsulares: canções, 5ª ed. Comemorativa
I Centenário da Morte de J. Simões Dias, Porto, 1999.

Se alguns versos do autor das Peninsulares - a obra mais renomada – converteram-se quase ao anonimato, talvez o fato se deva a que o poeta - o homem, o cidadão - ascendeu social e culturalmente, mas a sua poesia jamais perdeu a feição, o tom e a sabedoria da gente simples da sua aldeia - Benfeita. Simplicidade essa, tão marcante que, ainda hoje, decorridos mais de cem anos da morte do escritor, acha-se a povoação natal de Simões Dias tão distante da regência capitalista e do seu poder predatório, que sequer possui um comércio estruturado de portas abertas.

Não é difícil reconstruir, pela visão e mente, a terra que moldou a natureza, o imaginário, a emoção e o modo de estar no mundo de Simões Dias, pois a Benfeita preservou uma feição própria, pouco se alterou, avizinhando-se graciosamente do passado.

Na aldeia, as ruas permanecem de uma estreiteza afoita e raro permitem a circulação de um veículo no seu interior. Mesmo a via de circulação pública e o pequeno largo que conduzem à casa onde o poeta nasceu, sequer possuem uma denominação própria. Tudo permaneceria como então, não fossem o acesso que a construção da estrada permitiu, a eletrificação, algumas reduzidas comodidades tecnológicas e a rara presença de crianças.

Na Benfeita contemporânea, o ilustre poeta achar-se-ia próximo ao seu tempo, tempo no qual ela denominava-se Santa Cecília.
Das Peninsulares reproduzimos versos de saudade, evocações de folguedos, rumores de uma infância distante:

NOITE DE LUAR
. . . . . . . . . . . . . . . .
E aquela fresca ribeira
Onde à tarde ao pôr do sol
Vem cantar o rouxinol
Na copa da romãzeira;
E o toque da Ave-Maria,
Lamento de mãe aflita,
Tão doce que nem o imita
Uma rola ao fim do dia;
E os domingos de folgança,
Em que ao pé da ermida se arma,
Em festiva e doida alarma,
Uma fogueira e uma dança;
E aquelas tardes no rio,
Tardes e tardes inteiras,
Escutando as lavadeiras
A cantar ao desafio;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
São invocações recorrentes das quais Simões Dias ficou para sempre refém, não se cansando de louva-las, como neste outro poema:

A VOLTA DO PEREGRINO
A ver-vos torno, ó grutas,
Ó côncavos penedos,
Onde hei depositado
Meus infantis segredos!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Montanhas arrelvadas,
Vergéis do meu país,
Vendo-vos torno aos dias
D’essa idade feliz!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Por isso eu vos saúdo,
Por isso eu vos bendigo,
Lugares que me fostes
Berço, consolo e abrigo!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um não sei quê de vago,
Um tão suave encanto,
Que involuntário acode
A borbulhar meu pranto!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Além campeia a torre
Da solitária igreja,
E ao pé triste cruzeiro
No cemitério alveja!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ai! Quem me dera agora
A cândida ignorância
Dos tempos que sorriram
À minha alegre infância!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Então um cemitério,
A recender a flores,
Era um breve canteiro
Falando-me de amores!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Bendita seja a hora
Em que te torno a ver,
Ó terra abençoada,
Que és parte do meu ser!
Quando te piso e apalpo,
Que sonho e que ilusão!
Penso que vive ainda
Meu pobre coração!

A infância benfeitense e as alegrias pueris, contudo, foram cedo abandonadas. O jovem Simões Dias despertou a atenção do mestre-escola que, reconhecendo-lhe uma inteligência incomum, recomendou aos pais a continuação dos estudos.

Logo, ficaram para trás a aldeia de Santa Cecília – como a Benfeita chamava-se ao tempo - que o vira nascer a 05 de fevereiro de 1944, e os socalcos verdejantes entre os contrafortes da Serra da Estrela.

Uma educação formal e religiosa iniciou-se em Pedrógão Grande (1854-57), continuando no Seminário de Coimbra, onde concluiu o Curso Teológico em 1861, terminando os estudos superiores com a Formatura em 1968.

A vida acadêmica coimbrã fomentou-lhe o gosto pelas letras e ensejou a colaboração em variadas periódicos.

No dizer do seu biógrafo autorizado, Visconde de Sanches de Frias, no Bosquêjo da sua vida e obras, ficou registrado: “...num período de 9 anos, de 1861 a 1870, não houve em Coimbra publicação literária, que não tivesse a sua colaboração.”

Da época de estudos superiores, datam seus primeiros versos, o cantar da idade verde:

Gentis namoradas, tal sou como o vento
Que em brandos suspiros se expraia no ar,
As notas que tiro do alegre instrumento,
São vozes que gemem d’amor, ao luar!
....................................................................
Arcanjos dormentes, ó pálidas moças,
Correi às janelas a ouvir descantar;
As trovas que solto são minhas, são vossas,
Ouvi lindas trovas d’amor, ao luar!
"Canção ao Luar"

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