sábado, 12 de janeiro de 2008

As lágrimas que salgaram as águas da barragem

A aldeia de Vidual de Baixo foi sacrificada em nome do progresso. A enorme barragem obrigou à saída dos seus habitantes. Mais de 60 anos depois há quem não esqueça o dia em que a água começou a subir. A barragem de Santa Luzia fica localizada no concelho da Pampilhosa da Serra. Foi no Casal da Lapa, no café explorado por Virgílio Gaspar, que chegámos à fala com um dos últimos habitantes que se recorda do dia em que a sua aldeia teve que ser inundada, em nome do progresso. Aos 88 anos, a história que ambicionávamos, num contributo para a memória colectiva da região

AS DÉCADAS pesam sobre estes vales, acorrentadas nas sombras que vigiam as aldeias, assombradas pela vingança dos tempos. São as memórias submersas, as ma-nhãs vencidas. É o murmúrio da água que canta o fim, o anúncio da debandada. É o apagar da caminhada, o rasto da última pegada na lama onde se perpetuará o olhar. Estes foram os derradeiros dias de Vidual de Baixo.

O grande empreendimento ergue-se em direcção dos céus nos idos de 40; torre de babel em busca do paraíso do desenvolvimento prometido. A Barragem de Santa Luzia, elevou-se, transformou a paisagem, encheu os olhares, administrou admiração por todos. Lá no fundo ficou uma aldeia, Vidual de Baixo. A demanda pela memória atravessa, neste domingo de Janeiro, o denso nevoeiro matinal; numa tentativa de resgate dos últimos que partiram da aldeia que o progresso sacrificou.

Ao pisar estas estradas, este chão, adensa-se a fronteira entre a palavra e a realidade efectiva. Terras de gentes que ficaram, terras de gentes que resistiram até à fronteira do limite; terras convidadas vezes sem conta para os banquetes dos desatinos do destino. São poucos, demasiado poucos, e cada vez menos para tanto território. As palavras vãs sobre o despovoamento do interior deveriam ser substituídas pelo pisar deste chão, pelo simples olhar em redor. A pena, a piedade sufragada por tão oca palavra usada e desusada segundo as conveniências momentâneas deveria ser alvoroçada, sim, nestes caminhos sem gente. Aqui perde-se a vontade de enunciar palavras gastas sobre a interioridade. A realidade é encantadoramente mais dolorosa do que as palavras amestradas. E a realidade está aqui, dissimulada neste nublado dia. Pronta a quem a queira visitar.

Os cafés de Casal da Lapa, tal como a quase totalidade do país, aderiram à luta contra os fumadores, contra o fumo e seus derivados e tudo o que se assemelhe a uma ténue névoa alimentada a nicotina. Os poucos clientes cruzam o espaço em estrito cumprimento da lei, embora alguns tenham o ameaçador maço à mão. A rua é o caminho mais certo. Ao fundo, a barragem, e junto de nós o tempo que o cigarro fumado ao frio nos empresta para pensar. Em 1938, um decreto-lei veio a traçar o destino de Vidual de Baixo, uma freguesia rural e pobre de pouco mais de 150 habitantes. António Amaro Rosa, investigador da história do concelho de Pampilhosa da Serra escreveu no jornal “Serras da Pampilhosa”, que “apesar da “bondade” do legislador explanada ao longo do documento, o certo é que a prática veio demonstrar que todo o processo de expropriação de terras foi tudo menos consensual. Com efeito, as divergências foram tais, que frustradas as diligências da comissão arbitral constituída expressamente para o efeito e do processo judicial que se lhe seguiu nos tribunais, alguns intervenientes procuraram expor os seus pontos de vista através da publicação de algumas obras sobre esta problemática”. Hoje, as histórias correm ainda sobre esse passado longínquo de um povo que teve que se disseminar pela região e pelo país, para fora do seu espaço e do seu tempo. As paredes das casas abandonadas ainda se vêem, por vezes, quando o leito da barragem o consente. Para lá do vazio remanesce o voo picado da lembrança, a auscultação de um pretérito que se quer fazer ouvir. Houve dias em que o vimos também, onde também pudemos deixar a marca na lama, uma pegada no tempo.

Este passo que nos conduziu a uma pesarosa passagem pelos dias, leva-nos ao encontro de um dos últimos sobreviventes da evacuação de Vidual de Baixo, terra pobre em terra esquecida. O progresso madrugou no século passado nestas bandas. No resplandecente cenário da Barragem de Santa Luzia, cruzamo-nos com António Tavares, nascido em Vidual de Baixo em 1919. Marcamos encontro com o passado, com a espuma dos dias. Num café, num momento de espera, num momento de insistência, encontramos a viva voz da memória que nos levará à terra seca, das cerejeiras, das hortas, das casas modestas que a barragem para si reclamou.

Nuno Francisco - "Jornal do Fundão" online - edição: 10/1/2008

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