“Se um dia disserem que o seu trabalho não é de um profissional, lembre-se: A Arca de Noé foi construída por amadores; profissionais construíram o Titanic…“
sábado, 16 de fevereiro de 2008
"Na serra todos os relógios pararam"
Na serra todos os relógios pararam, mas o mecanismo das horas não se deteve. A espiral do tempo arrastou-nos até ao fim do milénio.
Olhemos para trás antes de começar uma nova era.
O Passado
Do passado restam-nos apenas velhos objectos com as suas histórias cruzadas e algumas recordações numa gaveta qualquer. E no entanto, no recanto puro da memória, guardamos saudade a esses tempos que foram difíceis.
Alguém sabe que lembrança guardarão os nossos filhos destes dias desvairados que lhes damos a viver?
A nossa civilização chegou à sua última encruzilhada: agora, ou consumimos o que resta do planeta ou reciclamos quase todos os nossos hábitos e atitudes.
Olhemos de novo para trás, a colher os últimos ensinamentos, antes de nos aventurarmos para lá da curva da estrada.
O passado não é uma história de encantar. Houve miséria, por vezes fome; e aos filhos da Serra sempre coube, nas alturas da crise, o ingrato papel de espelho onde se reflectiam, ampliadas, as agruras e injustiças do Mundo
Mas a vida simples das gentes serranas encerra uma lição de harmonia, sóbria dignidade e utilização comedida dos recursos, que pode ser o ponto de partida para uma reflexão sobre as características mais perversas da nossa própria Sociedade de Consumo.
Reparemos, por exemplo, no modo como todos os utensílios eram remendados, reaproveitados ou reutilizados em novos contextos. Nada se desperdiçava ou deitava fora; não havia tanto lixo nem se acumulavam objectos supérfluos.
A Arte de Remendar
Cada utensílio era um bem raro, feito com suor do rosto ou comprado à custa de grandes sacrifícios; seria por isso normal que durasse uma vida.
Os sarrões, as gamelas e os funis remendados, a louça quebrada e depois reparada com gatos - estes objectos, depois de passarem de mão em mão, falam-nos agora de um tempo em que poupar era tão normal quanto, hoje em dia, gastar e consumir indiscriminadamente.
A Arte de Improvisar
Por vezes havia que improvisar, com grande dose de imaginação, os utensílios que faltavam ou as ferramentas a que a bolsa não chegava - um serrote, uma escumadeira, um fumigador, um funil, etc.
Assim se cumpria, com bastante mais eficiência do que nos dias de hoje, uma das principais leis do universo.
Objectos com Múltiplas Utilizações
A alenterna de ir regar o milho à noite era a mesma com que se aluminavam as casas; na panela de ferro em que se fazia comida do porco, coziam-se depois as farinheiras; o balde de transportar a vianda do animal também servia para tirar a água do poço; no banco onde se matava o bicho, se mandava sentar o padre pela Páscoa; a cesta onde se acartava esterco servia às vezes de berço a um filho recém-nascido; com a sertã de fritar as filhós faziam-se candeias de quatro torcidas, nos lagares; a gaveta da broa era usada como assento na cozinha; um garfo de ferreiro fazia também as vezes de palito e de arpão para as enguias; com uma bilha de carvoeiro se aquecia a cama no Inverno; numa mala de carpinteiro se guardavam os tarecos para emigrar; os gasómetros das minas também aluminavam as casas dos mineiros; no "cesto de romaria" se enviavam encomendas para Lisboa; a gamela da broa era a mesma da migadura para a sopa ou para as galinhas.
O Futuro
Terras de pão que só dão silvas; levadas atulhadas de cascalho; muros derrubados; portas que dão para casas vazias; telhados que caem para dentro; varandas que apodrecem, debruçadas sobre ruas desertas; pinheiros onde antes havia mato para gado; fogos; eucaliptos depois dos fogos; ribeiras secas; erosão - cresceu um enorme deserto nos escombros da nossa memória colectiva e paira sobre ele a recordação de tempos que foram difíceis.
Mas a Serra é um segredo bem guardado pelas suas gentes. O seu coração ainda bate em todos estes objectos e fotografias que balançam em frente aos nossos olhos. Há neles uma lógica que se esconde e revela, um jogo contraditório de sombras e de luzes; há, já não miséria, mas beleza e harmonia à espera do novo século que se aproxima.
Saberemos nós construir os alicerces desses dias futuros sobre as raízes sãs dos dias passados? As próximas gerações comerão o pão que nós amassarmos.
Dr.Paulo Ramalho, Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário