COMO PARTICIPEI NA COLUNA DE SALGUEIRO MAIA NA MADRUGADA DO 25 DE ABRIL DE 1974
Transcrição de alguns posts de uma série publicada no Absorto em Março/Abril de 2004 com algumas pequenas precisões e um parêntese final.
A espera sem fim
"Nessa espera sem fim da madrugada de 24 de Abril de 1974 a certa altura alguém me acordou com incontida emoção. Tinha passado a canção.
Era mesmo a sério. A noite ia alta. Saímos os três. Eu e o João Mário Anjos metemo-nos no carro do António Dias que, conduzido por ele, caminhou para a 2ª Circular a caminho do Campo Grande. O António Milhomens saiu para a baixa da cidade.
O nosso objectivo era tomar posição dentro do 2º GCAM (2º Grupo de Companhias de Administração Militar) o mais cedo possível. Mas, ao contrário do que aconselhava a prudência, não o fizemos logo. Antes fomos dar uma volta de carro pelas redondezas a ver o que se estaria a passar na EPAM.
Passamos defronte da EPAM (Escola Prática de Administração Militar) e conseguimos ver o Teixeirinha junto ao muro, equipado de arreios, preparado para integrar o grupo que ocuparia a RTP. Não observamos nenhum outro sinal da acção iminente.
Regressamos à 2ª Circular para reforçar a observação do movimento começando a desconfiar que ia ser um novo 16 de Março. Um fracasso. Encetamos, de novo, o caminho do quartel do Campo Grande. Ao entrar no Campo Grande surgiu, inesperadamente, diante de nós, uma coluna militar.
Finalmente sinais de acção
Retenho muito viva na memória a imagem do carro do combate que encabeçava a coluna a irromper diante de nós. Tinha surgido na escuridão da noite uma coluna militar que tomaria a direcção do centro da cidade. Vislumbramos um carro "nívea" da polícia na penumbra que não esboçou qualquer movimento.
O Campo Grande não era como hoje. Havia um desnível e o carro de combate que vinha na nossa direcção deu um salto rápido para tomar contacto de novo com o chão. Foi uma espécie de salto mágico que desde esse momento, com frequência, me assalta a memória. A comoção que sentimos é indescritível. Era um sonho que se tornara realidade. Fomos, certamente, os únicos que assistimos e registamos, ao vivo, esse momento. Esta é a primeira vez que ele é relatado.
Soubemos, mais tarde, que aquela era a coluna, oriunda de Santarém, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia. Naquele momento colocava-se a opção de cumprir o nosso objectivo e entrar no quartel do Campo Grande ou seguir atrás daquela surpresa entusiasmante.
Na peugada da coluna de Salgueiro Maia
Perante o dilema de entrar, de imediato, no Quartel do Campo Grande ou seguir atrás da coluna militar tomamos a opção de perseguir a coluna. Mas antes deixamos o João Mário Anjos no quartel. Eu com o António Dias ao volante do Datsun 1200, matrícula HA-79-46, segui atrás da coluna de Salgueiro Maia.
A caminho da Avenida da República pensei com os meus botões na fraqueza aparente da força militar que havia de ser decisiva no destino do 25 de Abril. Um soldado que era visível num dos carros apresentava um aspecto de uma fragilidade impressionante. Era uma coluna militar pouco convincente, pelo aspecto exterior, ostentando sinais de fraca capacidade militar.
Na Avenida da Liberdade lembro-me de ter visto um polícia tomar a iniciativa de mandar parar um ou outro carro para não perturbar o avanço da coluna. Seriam 4 horas da madrugada e saíam clientes do "Cantinho do Artista" no Parque Mayer.
Éramos, certamente, os únicos perseguidores e acompanhantes exteriores daquela força e queríamos viver os acontecimentos ao vivo.
Rua do Arsenal
Tomada a decisão de ver com os próprios olhos o desenvolvimento da acção militar fomos sempre atrás da coluna atravessando a baixa no sentido do Terreiro do Paço. Chegada à Rua do Arsenal a coluna parou. Os tanques posicionaram-se no terreno.
Havia um vaso de guerra no Tejo e a discussão era se estava a favor ou contra o movimento revoltoso. Decidimos que chegara a hora de abandonar o local pois não era aquela a nossa guerra. Não podíamos ficar mais tempo sacrificando a nossa própria missão.
Ultrapassamos a coluna facilmente e seguimos em frente. Sempre fiquei com a convicção que a vitória da Revolução foi decidida na Rua do Arsenal antes dos acontecimentos do Largo do Carmo.O povo ainda não tinha descido à rua.
Estávamos na fase das puras operações militares, propriamente ditas, sem as quais não seria possível desencadear o verdadeiro processo político que precipitaria a queda do regime. Afinal as forças armadas estavam a prestar um serviço público que poderia redundar num pesadelo para os seus protagonistas.
O renascimento da liberdade
Era a velha questão da liberdade que se jogava naquelas horas. Participei, com os meus dois camaradas, João Mário e António, num daqueles momentos raros da história das nações em que algo de essencial muda.
A mudança do destino da vida de toda uma comunidade e de um povo. Um daqueles momentos raros de fusão em que um regime, que no dia anterior parecia inexpugnável, cai fulminado como se nunca tivesse tido apoiantes e seguidores.
Assistimos e participamos, ao vivo, a uma página ímpar da nossa história, aos últimos minutos de um regime de opressão e ao renascimento de um regime de liberdade. Estamos todos vivos e os nossos nomes são verdadeiros: António Cavalheiro Dias, João Mário Anjos e Eduardo Graça.
De saída daquela situação de acompanhantes anónimos da coluna militar, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, ainda nos cruzamos com a coluna de Cavalaria 7 que vinha ao encontro dos revoltosos. Era comandada pelo Brigadeiro Junqueira dos Reis, meu conterrâneo, que ainda outro dia vi num pequeno café da minha cidade de Faro. Ironia da história: Salgueiro Maia, o vencedor, está morto e Junqueira dos Reis, o vencido, está vivo.
O caminho de regresso ao nosso objectivo passou pela Ajuda onde o pessoal da Polícia Militar (PM) discutia o que fazer na entrada de Monsanto.
Ao longo desta digressão pela cidade sempre pensei que a desproporção de forças era demasiado grande, enorme e arrasadora, e que a coluna revoltosa não seria capaz de resistir a um ataque determinado. Receie que fosse destroçada em poucos minutos.
Salgueiro Maia
Afinal o Capitão Salgueiro Maia era um homem de coragem. No confronto decisivo da Rua do Arsenal foi o sangue frio de Salgueiro Maia que tornou vitoriosa a revolução. A sua impassividade e serenidade face à força inimiga obrigou a que o soldado atirador, sob ordens de um subordinado do brigadeiro, não fosse capaz de premir o gatilho. A serenidade do Capitão Salgueiro Maia sabendo que tinha a sua cabeça na mira do atirador congelou a situação.
Acredito pelo que presenciei que só a conjugação da coragem do Comandante da força revoltosa de Santarém, o embaraço do comandante da força do regime e a recusa do soldado em disparar permitiram o desenlace feliz daquela situação que, no plano militar, era absolutamente desfavorável aos revoltosos.
Assim se decidiu o destino da revolução. Entretanto tínhamos prosseguido o nosso caminho e entramos pacificamente no 2º GCAM.
[Segundo uma transcrição das comunicações entre as forças da situação, referentes às 08h05 da manhã de 25 de Abril, Marcelo Caetano perguntado pelo PR (Américo Tomás) acerca do que se passava, disse que “tinha muita esperança nos Pattons do RC7”. (Os Pattons eram os carros de combate do regimento de Cavalaria 7, integrados na força comandada pelo Brigadeiro Reis e pelo Coronel Romeira contra o Capitão Salgueiro Maia). Todas as comunicações, posteriormente conhecidas, confirmam a importância do confronto entre as forças do regime (RC7) e as forças da Cavalaria de Santarém comandadas por Salgueiro Maia na Rua do Arsenal/Terreiro do Paço, confirmando, plenamente, as nossas impressões escritas em Abril de 2004. Na publicação que citamos, “ A fita do tempo da revolução – a noite que mudou Portugal”, publicada em Setembro de 2004, a certa altura, na hora acima referida, surge a seguinte frase referindo-se ao ministro do exército Luz Cunha e aos acontecimentos em curso naquela zona da cidade: “Considera o Ministro esta acção muito importante no aspecto psicológico.”]
eduardo graça
A espera sem fim
"Nessa espera sem fim da madrugada de 24 de Abril de 1974 a certa altura alguém me acordou com incontida emoção. Tinha passado a canção.
Era mesmo a sério. A noite ia alta. Saímos os três. Eu e o João Mário Anjos metemo-nos no carro do António Dias que, conduzido por ele, caminhou para a 2ª Circular a caminho do Campo Grande. O António Milhomens saiu para a baixa da cidade.
O nosso objectivo era tomar posição dentro do 2º GCAM (2º Grupo de Companhias de Administração Militar) o mais cedo possível. Mas, ao contrário do que aconselhava a prudência, não o fizemos logo. Antes fomos dar uma volta de carro pelas redondezas a ver o que se estaria a passar na EPAM.
Passamos defronte da EPAM (Escola Prática de Administração Militar) e conseguimos ver o Teixeirinha junto ao muro, equipado de arreios, preparado para integrar o grupo que ocuparia a RTP. Não observamos nenhum outro sinal da acção iminente.
Regressamos à 2ª Circular para reforçar a observação do movimento começando a desconfiar que ia ser um novo 16 de Março. Um fracasso. Encetamos, de novo, o caminho do quartel do Campo Grande. Ao entrar no Campo Grande surgiu, inesperadamente, diante de nós, uma coluna militar.
Finalmente sinais de acção
Retenho muito viva na memória a imagem do carro do combate que encabeçava a coluna a irromper diante de nós. Tinha surgido na escuridão da noite uma coluna militar que tomaria a direcção do centro da cidade. Vislumbramos um carro "nívea" da polícia na penumbra que não esboçou qualquer movimento.
O Campo Grande não era como hoje. Havia um desnível e o carro de combate que vinha na nossa direcção deu um salto rápido para tomar contacto de novo com o chão. Foi uma espécie de salto mágico que desde esse momento, com frequência, me assalta a memória. A comoção que sentimos é indescritível. Era um sonho que se tornara realidade. Fomos, certamente, os únicos que assistimos e registamos, ao vivo, esse momento. Esta é a primeira vez que ele é relatado.
Soubemos, mais tarde, que aquela era a coluna, oriunda de Santarém, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia. Naquele momento colocava-se a opção de cumprir o nosso objectivo e entrar no quartel do Campo Grande ou seguir atrás daquela surpresa entusiasmante.
Na peugada da coluna de Salgueiro Maia
Perante o dilema de entrar, de imediato, no Quartel do Campo Grande ou seguir atrás da coluna militar tomamos a opção de perseguir a coluna. Mas antes deixamos o João Mário Anjos no quartel. Eu com o António Dias ao volante do Datsun 1200, matrícula HA-79-46, segui atrás da coluna de Salgueiro Maia.
A caminho da Avenida da República pensei com os meus botões na fraqueza aparente da força militar que havia de ser decisiva no destino do 25 de Abril. Um soldado que era visível num dos carros apresentava um aspecto de uma fragilidade impressionante. Era uma coluna militar pouco convincente, pelo aspecto exterior, ostentando sinais de fraca capacidade militar.
Na Avenida da Liberdade lembro-me de ter visto um polícia tomar a iniciativa de mandar parar um ou outro carro para não perturbar o avanço da coluna. Seriam 4 horas da madrugada e saíam clientes do "Cantinho do Artista" no Parque Mayer.
Éramos, certamente, os únicos perseguidores e acompanhantes exteriores daquela força e queríamos viver os acontecimentos ao vivo.
Rua do Arsenal
Tomada a decisão de ver com os próprios olhos o desenvolvimento da acção militar fomos sempre atrás da coluna atravessando a baixa no sentido do Terreiro do Paço. Chegada à Rua do Arsenal a coluna parou. Os tanques posicionaram-se no terreno.
Havia um vaso de guerra no Tejo e a discussão era se estava a favor ou contra o movimento revoltoso. Decidimos que chegara a hora de abandonar o local pois não era aquela a nossa guerra. Não podíamos ficar mais tempo sacrificando a nossa própria missão.
Ultrapassamos a coluna facilmente e seguimos em frente. Sempre fiquei com a convicção que a vitória da Revolução foi decidida na Rua do Arsenal antes dos acontecimentos do Largo do Carmo.O povo ainda não tinha descido à rua.
Estávamos na fase das puras operações militares, propriamente ditas, sem as quais não seria possível desencadear o verdadeiro processo político que precipitaria a queda do regime. Afinal as forças armadas estavam a prestar um serviço público que poderia redundar num pesadelo para os seus protagonistas.
O renascimento da liberdade
Era a velha questão da liberdade que se jogava naquelas horas. Participei, com os meus dois camaradas, João Mário e António, num daqueles momentos raros da história das nações em que algo de essencial muda.
A mudança do destino da vida de toda uma comunidade e de um povo. Um daqueles momentos raros de fusão em que um regime, que no dia anterior parecia inexpugnável, cai fulminado como se nunca tivesse tido apoiantes e seguidores.
Assistimos e participamos, ao vivo, a uma página ímpar da nossa história, aos últimos minutos de um regime de opressão e ao renascimento de um regime de liberdade. Estamos todos vivos e os nossos nomes são verdadeiros: António Cavalheiro Dias, João Mário Anjos e Eduardo Graça.
De saída daquela situação de acompanhantes anónimos da coluna militar, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, ainda nos cruzamos com a coluna de Cavalaria 7 que vinha ao encontro dos revoltosos. Era comandada pelo Brigadeiro Junqueira dos Reis, meu conterrâneo, que ainda outro dia vi num pequeno café da minha cidade de Faro. Ironia da história: Salgueiro Maia, o vencedor, está morto e Junqueira dos Reis, o vencido, está vivo.
O caminho de regresso ao nosso objectivo passou pela Ajuda onde o pessoal da Polícia Militar (PM) discutia o que fazer na entrada de Monsanto.
Ao longo desta digressão pela cidade sempre pensei que a desproporção de forças era demasiado grande, enorme e arrasadora, e que a coluna revoltosa não seria capaz de resistir a um ataque determinado. Receie que fosse destroçada em poucos minutos.
Salgueiro Maia
Afinal o Capitão Salgueiro Maia era um homem de coragem. No confronto decisivo da Rua do Arsenal foi o sangue frio de Salgueiro Maia que tornou vitoriosa a revolução. A sua impassividade e serenidade face à força inimiga obrigou a que o soldado atirador, sob ordens de um subordinado do brigadeiro, não fosse capaz de premir o gatilho. A serenidade do Capitão Salgueiro Maia sabendo que tinha a sua cabeça na mira do atirador congelou a situação.
Acredito pelo que presenciei que só a conjugação da coragem do Comandante da força revoltosa de Santarém, o embaraço do comandante da força do regime e a recusa do soldado em disparar permitiram o desenlace feliz daquela situação que, no plano militar, era absolutamente desfavorável aos revoltosos.
Assim se decidiu o destino da revolução. Entretanto tínhamos prosseguido o nosso caminho e entramos pacificamente no 2º GCAM.
[Segundo uma transcrição das comunicações entre as forças da situação, referentes às 08h05 da manhã de 25 de Abril, Marcelo Caetano perguntado pelo PR (Américo Tomás) acerca do que se passava, disse que “tinha muita esperança nos Pattons do RC7”. (Os Pattons eram os carros de combate do regimento de Cavalaria 7, integrados na força comandada pelo Brigadeiro Reis e pelo Coronel Romeira contra o Capitão Salgueiro Maia). Todas as comunicações, posteriormente conhecidas, confirmam a importância do confronto entre as forças do regime (RC7) e as forças da Cavalaria de Santarém comandadas por Salgueiro Maia na Rua do Arsenal/Terreiro do Paço, confirmando, plenamente, as nossas impressões escritas em Abril de 2004. Na publicação que citamos, “ A fita do tempo da revolução – a noite que mudou Portugal”, publicada em Setembro de 2004, a certa altura, na hora acima referida, surge a seguinte frase referindo-se ao ministro do exército Luz Cunha e aos acontecimentos em curso naquela zona da cidade: “Considera o Ministro esta acção muito importante no aspecto psicológico.”]
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