quinta-feira, 22 de maio de 2008

"38 anos de guerra"

"38 anos de guerra não produziram apenas uma tragédia em Angola. Produziram milhões de tragédias: 2 milhões de mortos, 1,7 milhão de refugiados, milhares de órfãos, 200 pessoas mortas de fome por dia, 80 mil crianças, velhos, homens e mulheres mutilados pelas milhões de minas semeadas pelo país afora. Em Angola, são milhões de tragédias, cada qual com um nome e uma história de final infeliz.

A tragédia que se chama Margarida João fecha os olhos e vê de novo o obus (artefato explosivo em forma de bala gigante, disparado de longa distância) caindo sobre o prédio onde morava em 1993, na cidade de Huambo, matando 35 vizinhos e amigos. Abre os olhos e vê a mãe, a filha Joelma, de 16 anos, um tio e dois sobrinhos assassinados a sangue frio pela guerrilha da Unita. Dorme e sonha com a fuga em direção a Luanda, 20 dias a pé, bebendo água da chuva, meio morta de fome. Acorda espremida com outras 15 pessoas numa tenda de lona verde puída no campo de deslocados de guerra Comandante Gika, na capital do país, onde mora há seis anos e onde talvez viva até morrer.

Miquirina Jambo, Félix e Maurício são os nomes de três outras tragédias. Em1993, Miquirina, que tinha 23 anos, foi com o primo Félix cortar lenha no mato. Félix, que ainda não tinha sete anos de idade, pisou numa mina. Desesperada, Miquirina correu para buscar ajuda. E pisou em outra mina.

Félix morreu perfurado pelos estilhaços. Miquirina perdeu a perna esquerda, mas sobreviveu para botar no mundo quatro filhos doentes. Um deles, Maurício, de três anos, está agora largado no chão do acampamento de deslocados de Huambo, capital da província de mesmo nome, onde a família vive desde que chegou em dezembro do ano passado, fugindo da guerra civil. Maurício não sabe falar. Um dia, ardeu de febre, quase morreu de diarréia e perdeu também para sempre, como descreve a mãe, "a força de andar". Maurício vê o mundo triste do acampamento com olhar distante, o rosto meio coberto de moscas. De vez em quando, tirando forças ninguém sabe de onde, ergue a mãozinha muito magra e espanta as moscas. Mas elas voltam.

Quando nasceu, Maurício não tinha esperanças de viver mais que 42 anos: é essa a expectativa de vida em Angola, a quinta mais baixa do mundo. Com o passar do tempo, diminuem as chances de envelhecer: doente e desnutrido, Maurício corre o risco de engordar as estatísticas de mortalidade infantil, uma das mais altas do planeta: nada menos que um quarto das crianças morrem antes de completar cinco anos de vida. De sarampo, pólio, meningite, malária, diarréia, fome.

Maurício tem a pele meio devorada pela sarna. Não é o único. Por falta de sabão para lavar o corpo e a única roupa do corpo, segue a sarna a comer a pele de boa parte dos 22 mil deslocados de guerra desse acampamento conhecido como Coalfa porque está instalado nos galpões varados de tiros de fuzil da antiga fábrica homônima. Por ironia do destino _ como se estivesse escrito em algum livro santo que o destino da Angola é morrer em guerra _ a Coalfa fabricava sabão...

Em Kuito, capital da província de Bié, que já foi uma cidade florida e hoje tem mortos da guerra plantados nos jardins e quintais das casas, cada rosto que espia por trás de paredes e muros destruídos pela fuzilaria e pelos obuses conta uma tragédia, pelo menos uma. Mas Manuela Marinho, sozinha, carrega oito: o marido Francisco e os sete filhos (Solange, 16 anos; os gêmeos Maximiano e Helder, 14; Letícia, 11; as gêmeas Ana e Joana, 9; e a caçula Rossana, 7), mortos por um obus quando tomavam café da manhã. As oito tragédias de Manuela estão enterradas numa única cova, neste país de cruzes em vez de flores."
sobe
1a Página

Sem comentários: