domingo, 28 de junho de 2009

Vas

VAS (OU PETRÓLEO)
Pier Paolo Pasolini
APONTAMENTO 55, O CAMPO DA CASILINA
(Carlo, burguês da restritíssima elite intelectual contestatória ou revolucionária italiana, exerce cargo de confiança na estatal do petróleo e milita na esquerda nos anos 1970. Após assistir a uma passeata de jovens neofascistas fardados, passa a sentir seu corpo como o de uma mulher e também a se ver dessa maneira. Para saciar seu apetite sexual, que já era canibal na forma anterior masculina, convoca 20 rapazes, trabalhadores da periferia romana, e a troco de pagamento, leva-os para foderem-no, um após o outro, num campo deserto. Pietro é o vigésimo jovem que o intelectual recebe).

"(...) O rosto de Pietro não tinha a mínima expressão: estava concentrado e hostil como sempre, olhando para baixo. Então Carlo, além de lhe beijar, como que por gratidão começou também a metê-lo na boca, tornando a sentir com uma aplicação concentrada e quase religiosa aquelas formas graves e maciças: a nodosidade da glande coberta pela pele espessa, a delicadeza da parte descoberta com o filete esticado, e o seu cheirinho de esperma - o seco do dia anterior, e o ainda fresco de agora - misturado com o cheiro de óleo e do ferro da oficina. Carlo recomeçou a mover a boca para baixo e para cima, como se estivesse ainda tudo por fazer. Temia ainda que Pietro lhe desse outro empurrão e o afastasse; mas o rapaz bruscamente lhe pôs uma mão na nuca, e depois a outra, entrelaçando os dedos e apertando com força para si a cabeça de Carlo. Com este gesto exteriorizava a sua concordância em recomeçar, e, ainda mais que a concordância, a pretensão. Como que obedecendo, Carlo lançou-se conscienciosamente ao trabalho: exultava, mas desta vez era ele a ocultar seu prazer. Quanto mais a felicidade lhe apertava o coração como uma angústia, mais diligente e firme era o trabalho que Pietro exigia dele.
S'ils n'yament fors que pour l'argent
On ne les ayme que pour l''heure.
(Villon)
Era mais ou menos isto que Carlo pensava enquanto estava inclinado, a contentar o rapaz: se só se deixam amar por dinheiro, a gente só os ama por aquela hora. Mas talvez - pensava, com volúpia, que não eliminava a outra volúpia que sentia intensamente procurando não se distrair - não fosse verdade. Talvez se amem para sempre. Uma hora é um buraco. Onde se acumula um tempo que não tem sucessão. Não amava Pietro só por aquele gigantesco pedaço de carne que tinha na boca, liso e duro, com as suas formas quase criadas por um molde, embora fossem tão impressionantemente elas mesmas, novas, nunca vistas: com aquele seu calor, aquele seu odor, e aquele tanto de lívido, quase abjeto - ou seja, de não inocentemente animalesco - que ressumavam. Ele amava aquele rapaz até pelo que ele não lhe dava nem podia dar-lhe: por exemplo, aquele seu não se deixar gozar por completo, sem outros pensamentos que procuravam a razão do gozo. Aquele seu estar ali só pelo tempo puramente necessário para obter o prazer que aos rapazes parece tão importante e que não podem resistir. Aquele seu funcional ir-se embora e desaparecer para sempre, levando consigo tudo o que tinha dado. Assim que aquele bocado de carne saísse da boca de Carlo, e, ainda inchado e gotejante, fosse reposto obliquamente dentro das cuecas, e depois fechado dentro das calças apertadamente abotoadas, se tornaria aquela coisa intocável e misteriosa que é por natureza, por decisão da sociedade. O reentrar de Pietro, daí a pouco, na sua vida, era o voltar a selar um pacto social. Para onde reentrava Pietro era a pobreza, o mundo do trabalho. Por isso a Carlo agradava, nele, além do seu sexo, nu, potentemente revelado, o cheiro de ferro da oficina que trazia consigo, a absoluta e inocente familaridade das suas roupas, a força expressiva daquele macacão de mecânico, e especialmente aquele estar ali por pouco tempo, aquele estar pronto a desaparecer: porque tudo isto, embora sendo tão óbvio e irrelevante, tão transparente em si mesmo, era afinal símbolo de uma profunda diferença social: o mundo da outra classe, que era quase o mundo de outra vida. Era o que tornava querido Pietro, e todos os outros; e o seu amar por dinheiro, embora esse dinheiro não fosse senão um pretexto, derivava de todo um modo de estar na vida, de toda uma economia. Em que se inscrevia também o não ter outro modo de se aliviar - numa hora análoga àquela, e em geral em toda a sua vida de pobres - do que ir ter com uma puta, pagando-lhe. Era isto mais ou menos que Carlo pensava, tentando distrair-se o menos possível do profundo prazer que lhe dava o apertar na boca o caralho de Pietro, quando Pietro gozou: quase de repente, e com uma abundância que nunca deixaria supor que ele gozara cinco minutos antes. Pietro sentiu-o quase como uma fraqueza e um pouco uma vergonha. De fato, tirou o caralho quase apressadamente da boca de Carlo e deixou-o enxugar impacientemente. No rosto tentava não deixar transparecer nenhum sentimento senão o que derivava da conclusão de qualquer coisa. Não ficou parado nem o tempo necessário para puxar para cima a braguilha das calças. Fez isso correndo apressado para o pequeno grupo dos companheiros. Corria ágil, com o seu macacão, pelos montículos de terra seca e pela penugem alourada da erva, pela grande pradaria banhada quase com violência pela silenciosa enormidade do luar. Pietro evocara a Carlo os seus Penates, os seus pequenos deuses Lares feitos de pó, madeira seca e poucos trastes, um divã ou um catre posto ao acaso na cozinha ou na entrada. Mas juntamente com estes Deuses, quase em sacra procissão por aquela noitada, sentia-se também a presença de Deuses subterrâneos, de Demônios: era claro; aquela noite tão profundamente penetrada pelo odor da erva seca e da erva-doce, tão ligada a uma luz lunar que parecia inesgotável, ali caída do céu para fundar uma noite estival e eterna, era demoníaca: mas não se tratava de modo nenhum de Demônios pertencentes a um Infemo onde se expiam condenações, mas simplesmente pertencentes aos Ínferos, onde acabam todos. Em suma, pobres Deuses, que andavam por ali deixando atrás de si o seu cheiro de cães, astutos e grosseiros, [sinistros e cúmplices], saídos do seu esconderijo de tufo, ou então de lenha devorada pelo sol e pela chuva, tornando fúnebre todo o mundo noturno, e o cosmos. Porém sem luto nem dor: porque era no ser fúnebre que consistia a odorosa, silente, branca e perdidamente calma e feliz, forma da cidade noturna, dos campos, e do céu. Naturalmente os Deuses dos Ínferos, ao andarem por aquela noite sem umidade, seca e cheirosa como um meio-dia, eram atraídos sobretudo por aquele grupo de seus semelhantes que estavam no alto de um montículo do campo: foram evidentemente misturar-se com eles, era claro, como Espíritos ou Gênios protetores, divinos, mas ao mesmo tempo humildes, submetidos e fiéis como cães."
Texto adaptado da edição italiana (Giulio Einaudi ed., 1993) e da tradução portuguesa de "Petróleo" (dez./96, Editorial Notícias, Lisboa).

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