quinta-feira, 2 de julho de 2009

Conversa

Artigo de Miguel Sousa Tavares, Expresso 27 Junho 09

Conversa entre mim e uma amiga(…):

— É sempre assim, esta auto-estrada?

— Assim, como?

— Deserta, magnífica, sem trânsito?

— É, é sempre assim.

— Todos os dias?

— Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.

— Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?

— Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.

— E têm mais auto-estradas destas?

— Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. — respondi, rindo-me.

— E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?

— Porque assim não pagam portagem.

— E porque são quase todos espanhóis?

— Vêm trazer-nos comida.

— Mas vocês não têm agricultura?

— Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.

— Mas para os espanhóis é?

— Pelos vistos...

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:

— Mas porque não investem antes no comboio?

— Investimos, mas não resultou.

— Não resultou, como?

— Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.

— Mas porquê?

— Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pêndula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.

— E gastaram nisso uma fortuna?

— Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...

— Estás a brincar comigo!

— Não, estou a falar a sério!

— E o que fizeram a esses incompetentes?

— Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.

— Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?

— Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km. Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.

— Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?

— Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois,

pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.

— Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?

— Isso mesmo.

— E como entra em Lisboa?

— Por uma nova ponte que vão fazer.

— Uma ponte ferroviária?

— E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.

— Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!

— Pois é.

— E, então?

— Então, nada. São os especialistas que decidiram assim. Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.

— E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta...

— Não, não vai ter.

— Não vai? Então, vai ser uma ruína!

— Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína — aliás, já admitida pelo Governo — porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.

— E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?

— Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!

— E vocês não despedem o Governo?

— Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo...

— Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?

— Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.

— O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?

— A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.

— Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?

— É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:

— E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?

— O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.

— Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?

— É isso mesmo. Dizem que este está saturado.

— Não me pareceu nada...

— Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.

— Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?

— Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.

— E tu acreditas nisso?

— Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?

— Um lago enorme! Extraordinário!

— Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.

— Ena! Deve produzir energia para meio país!

— Praticamente zero.

— A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!

— A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.

— Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar — ou nem isso?

— Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.

— Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?

—Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor. Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:

— Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?

— Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:

— Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!




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