sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

«Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra».

A D. Isabel, minha hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro:
«Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra».
Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa, e espreito por uma fresta da janela.
Amanhecia.
E dum céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos.
Abro a porta da rua.
Um recoveiro com um macho albardado seguro pela arreata, elucida-me:
— «É para ir tirar uma criança à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra...».
Há quanto tempo está em trabalho de parto? Inquiri.
«Trabalho... Trabalho... Há quinze dias que não faz nada. Desde que lhe deram as dores».
Quer você dizer que está há quinze dias com as dores de parir?
«Pois claro! Aquilo berra p'ra lá que é de partir o coração dum seixo».
Eu é que fiquei com o ânimo partido ao receber tal notícia, seca e ríspida como a cara do carvoeiro.
Pode lá ser! Quinze dias em trabalho de parto!
Meto uma bucha à pressa; engulo-a sem vontade; preparo a mala dos ferros; e saio porta fora, mal humorado, rumo à minha primeira grande aventura de médico de aldeia.
O arreeiro, lesto, encostou a ilharga da besta ao primeiro montadoiro que apareceu, e eu escarranchei-me sobre o albardão, deitei uma manta pelas costas para me abrigar da chuva, e ala.
Quanto tempo gastamos para lá chegar? Pergunto ao meu companheiro de infortúnio.
«Três horas bem puxadas», retorquiu o almocreve. «Mas não se acobarde, que o animal é rijo, e eu vou para o que der e vier».
Nesse tempo eu era moço e ágil.
Nada me custava sacudir os rins sobre o dorso duma alimária, num percurso de três léguas, ao frio e à chuva.
Temia, sim, o caso bicudo que teria de resolver, ou não...
Quinze dias em trabalho de parto! Repetia intimamente.
E pelo meu espírito de médico novato, repleto de teoria mas vazio de prática, iam perpassando como num écran de cinema, todos os casos possíveis e imaginários, que os tratados de obstetrícia me haviam revelado. Que será de mim, nesse ermo serrano, sem recursos de espécie alguma, sem ajuda de colegas que possam valer-me?!
Por momentos, assaltava-me o desejo de voltar para trás, de declinar o cargo; de procurar outra profissão...
Mas uma voz interior segredava-me: «avança, aceita a luta, cumpre a tua obrigação».
O chuvisco continuava; e na sua teimosia, encharcara o cobertor que me abrigava, e começava a penetrar no fato.
As mãos entorpeciam-se-me com o frio, e tinha de as meter nos bolsos de quando em quando, largando as rédeas. Entretanto, o macho, velho conhecedor d'estes caminhos ásperos, ia cumprindo com zelo a sua tarefa, desviando-se cautelosamente dos precipícios, e evitando os espinhaços de xisto mais agudos.
O caminho, agora, era a meia encosta. Lá no fundo do vale, a ribeira, crescida, de águas barrentas, rugia entre os fraguedos.
A Serra, no seu silêncio misterioso, envolvia-nos por todos os lados.
A frente, o meu companheiro, sempre loquaz, ia encurtando a lonjura, com uma graçola picaresca ou uma história de lobos.
E eu, absorto no meu presságio de desgraça cada vez me sentia mais temeroso da tragédia que me esperava.
Mais um valeiro, mais outro, mais um monte a galgar, e por fim, o grito jubiloso do recoveiro:
— «Senhor doutor, é já além!».
Ergo os olhos, e descortino ao longe, numa prega da Serra, a aldeiazita parda, de casas iguais, muito aconchegadas umas às outras, como que a protegerem-se mutuamente das inclemências da Natureza.
Dos telhados baixos e cobertos de lousa, emergiam espirais de rumo, primeiro sinal de vida que eu descobria n'este cenário tétrico de montes e abismos.
Mais meia hora com os ossos aos baldões no dorso da cavalgadura, e eis-nos chegados.
Apeei-me mesmo à porta da parturiente, moído e encharcado.
Entro, e deparo com uma cena digna dos pincéis de Rembrandt.
No meio da quadra única do alapado casebre, jazia no chão, coberta com uma manta, a Maria Farrapeira, como morta.
A roda, um friso de mulheres, embiocadas em xailes pretos, em jeito de velar um defunto.
A um canto, a lareira a arder.
No extremo oposto, um catre, armado sobre dois bancos de pinho.
Um postigo estreito, sem vidraça, iluminava a custo aquele ambiente funério.
Afasto o séquito e dobro-me sobre os joelhos para observar a paciente.
Uns gemidos débeis e uma respiração superficial eram os únicos sinais visíveis duma vida prestes a extinguir-se.
Poiso as mãos sobre o ventre.
O útero, cansado de lutar, já não se contrai; deixa palpar os contornos do feto.
Acima da bacia, um globo enorme, denuncia uma cabeça monstruosa.
Ausculto o feto, e, como era de esperar, nem sinais de vida.
Tinha feito o diagnóstico: Um hidrocéfalo morto e a mãe moribunda.
Era preciso fazer alguma coisa. Preparo os ferros e ponho-os a ferver.
Uma velha do grupo, bate-me no ombro, chama-me de parte, e segreda-me ao ouvido:
— «Não vale a pena. Ela está a cumprir alguma hora que lhe falta...».
Não me convence.
Vêm-me à lembrança os versos de Fernando Pessoa:
«Tudo vale a pena se a alma não é pequena».
Eu tinha bem presente a técnica da craniotomia e levava comigo o material necessário.
Mando atravessar a parturiente na cama, e recruto para ajudantes três mulheres que me parecem mais limpas.
Você, carrega para baixo com as duas mãos n'esta saliência do ventre; você, segura esta perna; você esta.
Entendido?!
Tudo ensaiado e a postos, dei início à intervenção.
Com a mão esquerda em coifa, protegendo a ponta do perfurador, levo este até à cabeça do feto.
Com a mão direita empunhando o cabo, carrego e abro a brecha. Repentinamente, uma onda de líquido irrompe do corpo da Farrapeira, jorra para o sobrado, e inunda a casa.
Nisto, a ajudante que estava sobre a cama, salta para o sobrado, aperta as mãos na cabeça, e sai porta fora a gritar:
«Matou-a! Matou-a!».
As outras, imitam-lhe o gesto e seguem-lhe os passos! Olho para trás, e verifico que fiquei só.
Só! Eu e Deus... e a parturiente. Esta, meio aliviada, faz uma inspiração funda, e exclama:
— «Santas mãos!».
Já confiante na vitória, prossigo: Fixo uma pinça no coiro cabeludo do feto, e trago para fora o monstro, de corpo franzino e cabeça descomunal, agora achatada como um odre vazio.
Segue-se uma dequitadura fácil, e pronto: Estava ganha a batalha!
A Farrapeira, aliviada e feliz, soergue a cabeça em direcção à porta da rua, e grita:
— «Maria, anda cá». E repete: «Santas mãos! Santas mãos!».
A Maria não acredita que a irmã esteja viva... Espreita... Entra, pé ante pé... Quer ver para crer, como São Tomé!
Ao grito admirativo de Maria, outras acorrem, e me cercam, aplaudem, e louvam.
Saio do casebre quase em triunfo.
Cá fora, o meu amigo almocreve, abraça-me com lágrimas nos olhos, e clama:
— «Quem vive na Serra, vive na guerra...».
Sim!
Guerra tremenda em que eu acabava de assentar praça como soldado raso.
Guerra contra a ignorância, a miséria e a morte.
Guerra em que eu iria encontrar, pela vida fora, triunfos sem glória e derrotas sem refrigério.


"SERRA! Caminhos de um médico" - Vasco de Campos - Editora Moura Pinto

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