"A difícil subsistência das populações
serranas esteve sempre dependente da relação estreita entre uma
agricultura pobre, de cômbaros e pequenos lameiros, e a criação de gado.
De tal modo tudo estava tão intimamente ligado, que a criação do porco
ou das cabras se cruzava e confundia a todo o momento com as fainas do
milho e do centeio ou com o cultivo da batata, do feijão e das botelhas
(abóboras). O milho era o principal sustento: quando faltava o milho
faltava tudo. A ele se juntava o feijão, a couve, a batata, o azeite, o
vinho, a castanha, o porco, a cabra e pouco mais. O estrume das lojas
era essencial para o sucesso das sementeiras. Por isso, havia que ir ao
mato para a cama das cabras, uma dura tarefa quotidiana que muitas vezes
se realizava antes do sol nascer. Agora, com as serras despovoadas de
gentes e de gado, há mato em excesso, mas antes, para se encontrar uma
boa malha tinham de se percorrer grandes distâncias nos baldios. Um
molho de mato pode ser uma obra de arte quando se sabe enfeixar e depois
apertar bem, passando a corda pelo gancho do ervedeiro. Em Dezembro
começava-se a tirar o esterco das lojas e a transportá-lo para os
bocados - um trabalho pesado, feito à força de braços e às costas, nas
cestas. Por vezes, quando os acessos o permitiam, os carros de bois
davam uma ajuda no transporte. Depois de Fevereiro, as terras começavam a
ser voltadas ao encino, de modo a serem preparadas para a sementeira.
Como os solos eram magros e quase sempre inclinados, a cava exigia uma
técnica especial - começava-se por tirar a terra, abrindo uma vala na
parte mais baixa do terreno e acartando a terra às cestas (nas costas,
claro) para a parte mais alta, onde era espalhada. Compensava-se, deste
modo, o progressivo deslizamento dos solos devido às regas, à chuva e às
próprias cavas. Cavada a terra, o esterco era então espalhado nos regos
com um encino mais pequeno. Em Março semeava-se o milho, muitas vezes
misturado com feijão, em regos pouco fundos. Depois, o milho era
arralado. Com um metro era feito o empalhado com mato, para conservar a
humidade do solo. Estava-se então em Junho - era a altura da primeira
rega. Seguidamente escanava-se (ou tirava-se a bandeira), quando a barba
da espiga estava praticamente seca e desfolhava-se a planta quando a
espiga começava a aloirar. As folhas e as bandeiras, depois de secas,
eram guardadas como alimento de inverno para as cabras, assim se pagando
com boa forragem o bom estrume antes recebido. A rega realizava-se com
regularidade até a espiga estar quase madura. Finalmente, em Setembro,
as espigas já secas eram cortadas do canoco e transportadas para casa.
Aí, ao serão, eram descamisadas (ou escalpeladas e depois debulhadas. As
descamisadas e as degulhas, em que os grãos de milho eram descasulados
(retirados do casulo), eram uma ocasião de entreajuda e convívio: à luz
das candeias de azeite desfolhavam-se as maçarocas e depois os homens
malhavam, com paus curtos ou manguais, o grande monte de espigas - uma,
duas, três vezes, até a maior parte do grão se soltar do casulo.
Sentadas em semi-círculo, as mulheres retiravam dos casulos, com as
mãos, os grãos que ainda restavam. Cantava-se, falava-se da vida deste e
daquele e, quer encontrassem ou não o "milho-rei" os rapazes e
raparigas solteiros arranjavam um pretexto para namoriscarem. Depois,
vieram as debulhadoras manuais, a seguir as debulhadoras mecânicas,
novas qualidades de milho híbrido (já sem "milho-rei") e, por fim, até a
mocidade casadoira começou a debandar para as cidades, à cata de outro
grão para o seu sustento."
Dr. Paulo Ramalho - Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
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