Os Professores
Texto de Valter Hugo Mãe, Jornal de
Letras, 19 Set 2012
Achei por muito tempo que
ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me
imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da
importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se
fossem família ou amores proibidos. Tive uma professora tão bonita
e simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos
entre os meus treze e os quinze anos de idade. A escola, como mundo
completo, podia ser esse lugar perfeito... Ver mais de liberdade
intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a
encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são
quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho
das pedras na porcaria de mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.
Nunca tive exatamente de ensinar ninguém.
Orientei uns cursos
breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão
que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que
efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu
cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida
melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho
meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia,
não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e
atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba
transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar
de novo aquele que os recebe. Os alunos nascem diante dos
professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir
do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em
melhores versões.
Quantas vezes me senti
outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como
se tivesse crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos. Como
se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver
tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém
os discutisse comigo. Houve um dia, numa aula de História do sétimo
ano, em que falámos das estátuas da Roma antiga.
Respondi à professora,
uma gorduchinha toda contente e que me deixava contente também, que
eram os olhos que induziam a sensação de vida às figuras de pedra.
A senhora regozijou. Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me
todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela solução,
mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes
do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a
resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha
que era, na verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela
própria tinha. Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os
dois, felizes. Profundamente felizes. Talvez estas coisas só tenham
uma importância nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade que
quando estive em Florença me doíam os olhos diante das estátuas
que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração
galopava como se estivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor
que começara muito antigamente, se não inteiramente criado por uma
professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado por uma
professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais
preciosa dádiva possível. Dá –me isto agora porque me ando a
convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E
porque me parece que perseguir e tomar os professores como má
gente é destruir a nossa
própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos
encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como
pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice
dos nossos miúdos. É como pedir que abdiquem de melhorar os nossos
miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do
que perder a casa, é pior o que comer apenas sopa todos os dias.
Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os
professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os
nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança
toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem
formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para
se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já
sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista
para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos
de afeto. As escolas não podem ser transformadas em lugares de
guerra. Os professores não podem ser reduzidos a burocratas e não
são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas
ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do
entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e
depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que
enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de
educar, não serve para nada.
Está a suicidar-se.
Odeia e odeia-se.
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