Le Monde - 26/06/2003
O erro de Iouri Bandajvski
Há dois anos, este eminente cientista bielo-russo está vegetando numa prisão de Minsk. As suas pesquisas sobre as conseqüências de Chernobyl contestam as posições oficiais. Será uma coincidência?
Hervé Kempf
Dá para imaginar um grande cientista preso por ter descoberto uma vacina ou por ter isolado um vírus? Pois já faz dois anos que o maior cientista do Belarus está vendo o sol nascer quadrado numa cela da "colônia de regime restrito" da rua Kalvariskaïa, em Minsk, a capital, na companhia de assassinos.
O crime de Iouri Bandajevski, segundo a justiça do presidente autocrata Alexandre Loukachenko, num país limítrofe da Europa onde o KGB ainda existe sob este nome e onde a oposição política é de fato proibida, é ter aceitado propinas de seus estudantes.
Mas tudo leva a crer que o verdadeiro erro deste anatomista-patologista de 46 anos, um pesquisador incansável e adulado por seus alunos, é ter criticado a gestão sanitária das autoridades e, mais ainda, ter mostrado que a radioatividade sempre presente nas regiões vizinhas de Chernobyl vem provocando, apesar de seu nível reduzido, doenças importantes e duradouras nas crianças, desmentindo a verdade oficial segundo a qual a catástrofe não produz mais efeitos e pode ser esquecida.
Bandajevski não é um preso político clássico, um militante da democracia, e sim um preso científico. E nessa cela, não é só um cientista de valor que está trancado, mas a chave de uma hipótese científica novíssima no campo do estudo da radioatividade: a exposição crônica a pequenas doses de radioatividade provoca doenças inesperadas, entre outras cardíacas, nas crianças que foram expostas.
Caso fosse confirmada, esta hipótese multiplicaria ainda o terrível balanço de Chernobyl e a análise geral dos acidentes nucleares, sempre possíveis.
Após ter sustentado a sua tese de doutorado de anatomia patológica em 1987, Iouri Bandajevski é nomeado diretor do Laboratório central de pesquisa científica de Belarus. A sua trajetória é impecável, sendo considerado um dos pesquisadores mais promissores da URSS.
Mas, em abril de 1986, acontece o acidente de Chernobyl, cuja nuvem envenenada deixa o seu maior rastro sobre a pequena república de Belarus. Até 1990, o sistema soviético continua reinando, a informação é controlada, e raros são os que conhecem a dimensão exata da catástrofe. Iouri é um deles. Ele propõe diversos programas de pesquisas para as autoridades.
Em 1990, o ministro da saúde o nomeia reitor do Instituto de medicina de Gomel, com a missão de salvar esse instituto do abandono e de nele promover novos programas de pesquisas. O cargo tem prestígio, mas, na verdade, os candidatos são raros: a cidade de Gomel fica à proximidade das zonas mais contaminadas, e a maioria tenta discretamente deixar essa região onde a radioatividade persiste nos solos, nas águas, nos alimentos.
No começo dos anos 90, Bandajevski ensina, gerencia o instituto, forma os estudantes. Ele faz dele um estabelecimento reputado, numa região duplamente
afetada: assim como toda a União Soviética, pela queda do império, mas também pelo mal invisível de Chernobyl, que enfraquece e esvazia a cidade. Ele ainda encontra tempo para pesquisar, orientando evidentemente os seus estudos para a análise dos efeitos da radioatividade sobre o organismo.
É da sua esposa, Galina, que vem o alarme: ela é cardiologista e trabalha no hospital, onde ela observa com surpresa as anomalias cardíacas das crianças que ela ausculta: ruídos, arritmia, todos sintomas geralmente raros em crianças.
Em 1993, ela empreende um levantamento sistemático dos eletrocardiogramas das crianças de um jardim de infância: 80% deles revelam-se anormais. Ela avisa o marido, e a hipótese nasce de uma ligação entre esses sintomas e o nível de contaminação radioativa.
A hipótese não é nem um pouco ortodoxa: desde Hiroshima e Nagasaki, os especialistas associam a exposição à radioatividade com o câncer. Esta doença seria o principal efeito da radioatividade sobre o organismo vivo. Mas, para Bandajevski, é preciso ir mais longe: enquanto em Hiroshima as vítimas foram expostas a uma exposição maciça porém de curta duração, em Chernobyl as populações são vítimas de condições diferentes: uma exposição reduzida porém prolongada. Os efeitos poderiam então ser diferentes.
Com toda a energia de que é capaz, ele inicia essa pesquisa, testando a hipótese sobre os seus camundongos, interessando-se a isótopos desprezados até então, tais como o césio 137, orientando os seus estudantes sobre aspectos particulares do estudo e mobilizando outros hospitais da região.
Em 1995, a nova teoria é apresentada num livro de síntese publicado em inglês em Gomel: "Existe uma correlação entre a evolução de condições patológicas e as doses acumuladas de radionuclídeos. Ela é mais intensa para os sistemas cardíaco e nervoso. (...) Mesmo pequenas doses de substâncias radioativas, da ordem de 50 a 80 becquerels de césio 137 por quilo, podem causar desordens patológicas no organismo humano". Além disso, essa influência nefasta afeta sobretudo as crianças.
Enquanto multiplica as experiências para confirmar a hipótese, Bandajevski começa a falar publicamente, pois se a hipótese for comprovada, isso significa que é possível evitar inúmeras doenças, isso com a condição de lidar de outro modo com as conseqüências de Chernobyl, controlando melhor a alimentação, buscando meios de evacuar o césio do organismo, cuidando sobretudo das crianças, que são as mais ameaçadas.
Na Belarus do fim dos anos 90, não é bom dizer essas verdades: a tese oficial é a de que as conseqüências de Chernobyl estão sob controle, e que já é possível começar a "reabilitar" as zonas contaminadas.
Acontece que, em 1994, Alexandre Loukachenko ascendeu ao poder. De fato, foi por meio de eleições, mas o novo homem forte do país, um nostálgico do sistema soviético, sufoca aos poucos a democracia que florescera entre 1990 e 1994. Torna-se cada vez mais difícil opor-se ao presidente.
Mas, absorvido no seu trabalho, Bandajevski nem sequer prestou atenção a essa evolução política. Em 1999, um comitê do Parlamento lhe entrega uma missão de avaliação da gestão do pós-Chernobyl pelo ministério da saúde. O relatório que ele entrega às autoridades denuncia a dilapidação da maior parte do orçamento e a ineficiência das iniciativas tomadas. Não contente, Bandajevski escreve para o presidente Loukachenko e participa de um programa na televisão no qual ele explica o seu trabalho científico e as suas conclusões.
O resultado não demora a aparecer. Ele é preso em julho de 1999 e encarcerado por seis meses, sob a alegação de que ele teria aceitado dinheiro de seus alunos para aprová-los. A acusação de corrupção é a arma favorita de Loukachenko para desacreditar os seus opositores. No caso de Bandajevski, ela é inverossímil: "Ele é um intelectual autêntico, um cerebral, um puro", diz um diplomata ocidental em Minsk.
Bandajevski é libertado depois de seis meses e fica esperando pelo seu julgamento em liberdade: "Ele era inconsciente", conta Galina. "Em vez de preparar a sua defesa com os seus advogados, ele passou todo o tempo refazendo as suas experiências, em casa. Às vésperas do processo, ele ainda estava imprimindo o seu novo livro no computador".
Em 18 de junho de 2001, ele é condenado a oito anos de prisão. Nenhuma prova foi encontrada, enquanto a testemunha principal desistiu no meio da audiência. A OSCE (Organização para a segurança e a cooperação na Europa) encontrou oito infrações ao código penal de Belarus cometidas durante o processo. François Jacob, da Academia francesa das ciências, afirma numa carta de apoio que "o verdadeiro motivo de sua condenação se baseia numa crítica formulada num relatório científico".
Iouri Bandajevski está preso até hoje. As pressões contra ele e sua família não pararam. Ele está cansado, magro, perdendo cabelos, mas o seu moral ainda é bom, diz a sua esposa. E ele não cedeu: ele não reconheceu a sua culpabilidade, ele não se comprometeu a desistir de suas pesquisas científicas.
Contudo, embora ele tenha sido adotado por Anistia Internacional e por associações tais como a CRII-Rad (Comissão de pesquisa e de informação independentes sobre radioatividade), Bandajevski não recebeu praticamente nenhum apoio dos cientistas estrangeiros.
Absorvido pela sua luta em defesa de suas idéias em Belarus, Bandajevski não dedicou energia suficiente para publicar os seus resultados nas revistas ocidentais.
Na sua cela da rua Kalvariskaia, ele não pensa apenas no debate científico que foi abafado. Ele pensa também nas crianças do sul de Belarus, as vítimas de Chernobyl, que estão aguardando para ser libertadas do mal que está as roendo, do césio envenenado.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
O erro de Iouri Bandajvski
Há dois anos, este eminente cientista bielo-russo está vegetando numa prisão de Minsk. As suas pesquisas sobre as conseqüências de Chernobyl contestam as posições oficiais. Será uma coincidência?
Hervé Kempf
Dá para imaginar um grande cientista preso por ter descoberto uma vacina ou por ter isolado um vírus? Pois já faz dois anos que o maior cientista do Belarus está vendo o sol nascer quadrado numa cela da "colônia de regime restrito" da rua Kalvariskaïa, em Minsk, a capital, na companhia de assassinos.
O crime de Iouri Bandajevski, segundo a justiça do presidente autocrata Alexandre Loukachenko, num país limítrofe da Europa onde o KGB ainda existe sob este nome e onde a oposição política é de fato proibida, é ter aceitado propinas de seus estudantes.
Mas tudo leva a crer que o verdadeiro erro deste anatomista-patologista de 46 anos, um pesquisador incansável e adulado por seus alunos, é ter criticado a gestão sanitária das autoridades e, mais ainda, ter mostrado que a radioatividade sempre presente nas regiões vizinhas de Chernobyl vem provocando, apesar de seu nível reduzido, doenças importantes e duradouras nas crianças, desmentindo a verdade oficial segundo a qual a catástrofe não produz mais efeitos e pode ser esquecida.
Bandajevski não é um preso político clássico, um militante da democracia, e sim um preso científico. E nessa cela, não é só um cientista de valor que está trancado, mas a chave de uma hipótese científica novíssima no campo do estudo da radioatividade: a exposição crônica a pequenas doses de radioatividade provoca doenças inesperadas, entre outras cardíacas, nas crianças que foram expostas.
Caso fosse confirmada, esta hipótese multiplicaria ainda o terrível balanço de Chernobyl e a análise geral dos acidentes nucleares, sempre possíveis.
Após ter sustentado a sua tese de doutorado de anatomia patológica em 1987, Iouri Bandajevski é nomeado diretor do Laboratório central de pesquisa científica de Belarus. A sua trajetória é impecável, sendo considerado um dos pesquisadores mais promissores da URSS.
Mas, em abril de 1986, acontece o acidente de Chernobyl, cuja nuvem envenenada deixa o seu maior rastro sobre a pequena república de Belarus. Até 1990, o sistema soviético continua reinando, a informação é controlada, e raros são os que conhecem a dimensão exata da catástrofe. Iouri é um deles. Ele propõe diversos programas de pesquisas para as autoridades.
Em 1990, o ministro da saúde o nomeia reitor do Instituto de medicina de Gomel, com a missão de salvar esse instituto do abandono e de nele promover novos programas de pesquisas. O cargo tem prestígio, mas, na verdade, os candidatos são raros: a cidade de Gomel fica à proximidade das zonas mais contaminadas, e a maioria tenta discretamente deixar essa região onde a radioatividade persiste nos solos, nas águas, nos alimentos.
No começo dos anos 90, Bandajevski ensina, gerencia o instituto, forma os estudantes. Ele faz dele um estabelecimento reputado, numa região duplamente
afetada: assim como toda a União Soviética, pela queda do império, mas também pelo mal invisível de Chernobyl, que enfraquece e esvazia a cidade. Ele ainda encontra tempo para pesquisar, orientando evidentemente os seus estudos para a análise dos efeitos da radioatividade sobre o organismo.
É da sua esposa, Galina, que vem o alarme: ela é cardiologista e trabalha no hospital, onde ela observa com surpresa as anomalias cardíacas das crianças que ela ausculta: ruídos, arritmia, todos sintomas geralmente raros em crianças.
Em 1993, ela empreende um levantamento sistemático dos eletrocardiogramas das crianças de um jardim de infância: 80% deles revelam-se anormais. Ela avisa o marido, e a hipótese nasce de uma ligação entre esses sintomas e o nível de contaminação radioativa.
A hipótese não é nem um pouco ortodoxa: desde Hiroshima e Nagasaki, os especialistas associam a exposição à radioatividade com o câncer. Esta doença seria o principal efeito da radioatividade sobre o organismo vivo. Mas, para Bandajevski, é preciso ir mais longe: enquanto em Hiroshima as vítimas foram expostas a uma exposição maciça porém de curta duração, em Chernobyl as populações são vítimas de condições diferentes: uma exposição reduzida porém prolongada. Os efeitos poderiam então ser diferentes.
Com toda a energia de que é capaz, ele inicia essa pesquisa, testando a hipótese sobre os seus camundongos, interessando-se a isótopos desprezados até então, tais como o césio 137, orientando os seus estudantes sobre aspectos particulares do estudo e mobilizando outros hospitais da região.
Em 1995, a nova teoria é apresentada num livro de síntese publicado em inglês em Gomel: "Existe uma correlação entre a evolução de condições patológicas e as doses acumuladas de radionuclídeos. Ela é mais intensa para os sistemas cardíaco e nervoso. (...) Mesmo pequenas doses de substâncias radioativas, da ordem de 50 a 80 becquerels de césio 137 por quilo, podem causar desordens patológicas no organismo humano". Além disso, essa influência nefasta afeta sobretudo as crianças.
Enquanto multiplica as experiências para confirmar a hipótese, Bandajevski começa a falar publicamente, pois se a hipótese for comprovada, isso significa que é possível evitar inúmeras doenças, isso com a condição de lidar de outro modo com as conseqüências de Chernobyl, controlando melhor a alimentação, buscando meios de evacuar o césio do organismo, cuidando sobretudo das crianças, que são as mais ameaçadas.
Na Belarus do fim dos anos 90, não é bom dizer essas verdades: a tese oficial é a de que as conseqüências de Chernobyl estão sob controle, e que já é possível começar a "reabilitar" as zonas contaminadas.
Acontece que, em 1994, Alexandre Loukachenko ascendeu ao poder. De fato, foi por meio de eleições, mas o novo homem forte do país, um nostálgico do sistema soviético, sufoca aos poucos a democracia que florescera entre 1990 e 1994. Torna-se cada vez mais difícil opor-se ao presidente.
Mas, absorvido no seu trabalho, Bandajevski nem sequer prestou atenção a essa evolução política. Em 1999, um comitê do Parlamento lhe entrega uma missão de avaliação da gestão do pós-Chernobyl pelo ministério da saúde. O relatório que ele entrega às autoridades denuncia a dilapidação da maior parte do orçamento e a ineficiência das iniciativas tomadas. Não contente, Bandajevski escreve para o presidente Loukachenko e participa de um programa na televisão no qual ele explica o seu trabalho científico e as suas conclusões.
O resultado não demora a aparecer. Ele é preso em julho de 1999 e encarcerado por seis meses, sob a alegação de que ele teria aceitado dinheiro de seus alunos para aprová-los. A acusação de corrupção é a arma favorita de Loukachenko para desacreditar os seus opositores. No caso de Bandajevski, ela é inverossímil: "Ele é um intelectual autêntico, um cerebral, um puro", diz um diplomata ocidental em Minsk.
Bandajevski é libertado depois de seis meses e fica esperando pelo seu julgamento em liberdade: "Ele era inconsciente", conta Galina. "Em vez de preparar a sua defesa com os seus advogados, ele passou todo o tempo refazendo as suas experiências, em casa. Às vésperas do processo, ele ainda estava imprimindo o seu novo livro no computador".
Em 18 de junho de 2001, ele é condenado a oito anos de prisão. Nenhuma prova foi encontrada, enquanto a testemunha principal desistiu no meio da audiência. A OSCE (Organização para a segurança e a cooperação na Europa) encontrou oito infrações ao código penal de Belarus cometidas durante o processo. François Jacob, da Academia francesa das ciências, afirma numa carta de apoio que "o verdadeiro motivo de sua condenação se baseia numa crítica formulada num relatório científico".
Iouri Bandajevski está preso até hoje. As pressões contra ele e sua família não pararam. Ele está cansado, magro, perdendo cabelos, mas o seu moral ainda é bom, diz a sua esposa. E ele não cedeu: ele não reconheceu a sua culpabilidade, ele não se comprometeu a desistir de suas pesquisas científicas.
Contudo, embora ele tenha sido adotado por Anistia Internacional e por associações tais como a CRII-Rad (Comissão de pesquisa e de informação independentes sobre radioatividade), Bandajevski não recebeu praticamente nenhum apoio dos cientistas estrangeiros.
Absorvido pela sua luta em defesa de suas idéias em Belarus, Bandajevski não dedicou energia suficiente para publicar os seus resultados nas revistas ocidentais.
Na sua cela da rua Kalvariskaia, ele não pensa apenas no debate científico que foi abafado. Ele pensa também nas crianças do sul de Belarus, as vítimas de Chernobyl, que estão aguardando para ser libertadas do mal que está as roendo, do césio envenenado.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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