De Almaceda a São Vicente da Beira são duas horas de curvas e contracurvas. A Lúcia será uma das crianças que farão o percurso todos os dias, transportadas numa camioneta sem cintos de segurança
LÚCIA tem oito anos, feitos na quarta-feira, e no próximo Verão terá percorrido dez mil quilómetros para frequentar a escola, mais do que ir a Pequim. Como é pequenina, não sabe onde fica a China, mas já aprendeu que no seu mundo de curvas no meio da serra não pode beber leite porque fica maldisposta. A amiga Maria, com sete anos, tem mais sorte: «Eu como de manhã e não tenho de tomar o comprimido para o enjoo».
As duas meninas fazem parte do grupo de nove crianças que vivem junto a Almaceda. No mapa, o local é sede de freguesia do concelho de Castelo Branco, mas na realidade é apenas mais uma aldeia do centro montanhoso do país. Tem uma igreja, um centro paroquial - repleto de idosos -, um café, pouco comércio e uma junta de freguesia com dois funcionários. Contava também com uma escola do ensino básico, que a política do Ministério da Educação obrigou a fechar.
Mais uma criança na aldeia e teria evitado perto de duas horas diárias de sucessivas curvas em gancho até à Escola EBI (da primeira classe até ao 9º ano) de São Vicente da Beira. A mudança até começou por ser bem-vinda: «Lá há outras crianças, vão ter mais inglês e ginástica e isso é bom. Eu tenho 45 anos e a minha quarta classe já não dá para ensinar o meu filho, de oito anos», diz António Faustino.
Uma promessa não cumprida pela Câmara de Castelo Branco - que não encontrou um responsável disponível para falar ao EXPRESSO - revoltou a aldeia, que agora luta por manter a escola de Almaceda. Albino Gomes - pai da Maria, dono do café, taxista e tesoureiro da junta de freguesia - garante que «estava prometido um transporte escolar diferenciado, com auxiliares, para evitar que as crianças acordassem de madrugada e chegassem já de noite. Agora, algumas vão levantar-se às seis da manhã».
Carreira sem cintos.
Quando as aulas começarem, as crianças e os jovens das várias aldeias da freguesia vão ser recolhidos por um táxi que as levará até ao centro de Almaceda para apanharem a carreira. «É um transporte comunitário, ou seja, entra quem pagar bilhete e não tem cintos de segurança nem auxiliares», lembra Albino Gomes. Domingos Morgado tem uma neta que frequenta a nova escola há três anos e conta que, «várias vezes, o motorista teve de parar a camioneta e chamar a GNR devido a desacatos com os mais velhos».
O irmão da Lúcia é um desses alunos mais velhos e já avisou a irmã que a comida na cantina é má. Ele e Lúcia são os únicos estudantes em Paiagua - depois de Martim Branco, é a segunda aldeia mais distante - e vão passar 12 horas fora de casa. Diz o pai que ela come mal e que na nova escola vai ser um problema, pois terá de servir-se sozinha. E «vai ter de subir uma parede com 15 ou 20 quilos às costas».
Nos rostos dos pais e de um avô - Manuel Domingos tem os dois netos pequenos a seu cargo enquanto os pais continuam emigrados em França - há tristeza e o desabafo é sempre o mesmo: «É muito fácil tomar decisões num gabinete com ar condicionado em Lisboa. O mal é para quem é pobre», ou não tem influências. A antiga professora das crianças, colocada em Proença, denuncia que «há escolas noutros concelhos com cinco alunos e que vão manter-se». Como exemplos, fala em estabelecimentos perto de Mação e de Idanha. «As crianças não vão ter o mesmo rendimento», alerta a docente.
Também para São Vicente da Beira vai a auxiliar que nos últimos 23 anos trabalhou na pequena escola de Almaceda. Maria do Carmo, desde ontem colocada na nova escola, vive um drama: voltar a guiar após 20 anos. «Para não ir tão cedo, comprei cinco lições para ver se consigo levar o carro. Ando cheia de nervos por causa do caminho». Numa viagem de treino que fez, durante o dia e sem gelo na estrada, as coisas não correram bem: «Estraguei logo os olhos ao carro. A estrada é muito apertada e não tem traços».
Além do percurso, Maria do Carmo tem outra preocupação em mente. Na antiga escola, uma das duas salas de aula era usada como estufa de plantas, que agora tem de deixar para trás. O material escolar já está todo empacotado para ser transferido e o futuro das instalações está por decidir. «Há dois anos gastaram rios de dinheiro a arranjar a escola e agora fecham-na. Das últimas vezes que aqui vim - para regar as plantas - o pátio já servia de garagem».
Vera Lúcia Arreigoso
EXPRESSO Edição Semanal paga
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