sábado, 27 de janeiro de 2007

Carta de uma Professora - 2

«Não é a primeira vez que tenho a oportunidade de ler textos escritos pelo jornalista Miguel Sousa Tavares. Anoto que escreve sobre tudo e mais alguma coisa, mesmo quando depois se verifica que conhece mal os problemas que aborda. É o caso, por exemplo, dos temas relacionados com a educação, com as escolas e com os professores. E pensava eu que o código deontológico dos jornalistas obrigava a realizar um trabalho prévio de pesquisa, a ouvir as partes envolvidas, para depois escrever sobre a temática de forma séria e isenta.O senhor jornalista e a ministra que defende não devem saber o que é ter uma turma de 28 a 30 alunos, estando atenta aos que conversam com os colegas, aos que estão distraídos, ao que se levanta de repente para esmurrar o colega, aos que não passam os apontamentos escritos no quadro, ao que, de repente, resolve sair da sala de aula. Não sabe o trabalho que dá disciplinar uma turma. E o professor tem várias turmas. O senhor jornalista não sabe (embora a ministra deva saber) o enorme trabalho burocrático que recai sobre os professores, a acrescer à planificação e preparação das aulas. O senhor jornalista não sabe (embora devesse saber) o que é ensinar obedecendo a programas baseados em doutrinas pedagógicas pimba, que têm como denominador comum o ódio visceral à História ou à Literatura, às Ciências ou à Filosofia, que substituíram conteúdos por competências, que transformaram a escola em lugar de recreio, tudo certificado por um Ministério em que impera a ignorância e a incompetência. O senhor jornalista falta à verdade quando alude ao «flagelo do absentismo dos professores, sem paralelo em nenhum outro sector de actividade, público ou privado». Tal falsidade já foi desmentida com números e por mais de uma vez. Além do que, em nenhuma outra profissão, um simples atraso de 10 minutos significa uma falta imediata. O senhor jornalista não sabe (embora a ministra tenha obrigação de saber) o que é chegar a uma turma que se não conhece, para substituir uma professora que está a ser operada e ouvir os alunos gritarem contra aquela «filha da puta» que, segundo eles, pouco ou nada veio acrescentar ao trabalho pedagógico que vinha a ser desenvolvido. O senhor jornalista não imagina o que é leccionar turmas em que um aluno tem fome, outro é portador de hepatite, um terceiro chega tarde porque a mãe não o acordou (embora receba o rendimento mínimo nacional para pôr o filho a pé e colocá-lo na escola), um quarto é portador de uma arma branca com que está a ameaçar os colegas. Não imagina (ou não quer imaginar) o que é leccionar quando a miséria cresce nas famílias, pois «em casa em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão». O senhor jornalista não tem sequer a sensibilidade para se por no lugar dos professores e professoras insultados e até agredidos, em resultado de um clima de indisciplina que cresceu com as aulas de substituição, nos moldes em que estão a ser concretizadas. O senhor jornalista não percebe a sensação que se tem em perder tempo, fazendo uma coisa que pedagogicamente não serve para nada, a não ser para fazer crescer a indisciplina, para cansar e dificultar cada vez mais o estudo sério do professor. Quando, no caso da signatária, até podia continuar a ocupar esse tempo com a investigação em áreas e temas que interessam ao país. O senhor jornalista recria um novo conceito de justiça. Não castiga o delinquente, mas faz o justo pagar pelo pecador, neste caso o geral dos professores penalizados pela falta dum colega. Aliás, o senhor jornalista insulta os professores, todos os professores, uma casta corporativa com privilégios que ninguém conhece e que não quer trabalhar, fazendo as tais aulas de substituição. O senhor jornalista insulta, ainda, todos os médicos acusando-os de passar atestados, em regra falsos. E tal como o Ministério, num estranho regresso ao passado, o senhor jornalista passa por cima da lei, neste caso o antigo Estatuto da Carreira Docente, que mandava pagar as aulas de substituição. Aparentemente, o propósito do jornalista Miguel Sousa Tavares não era discutir com seriedade. Era sim (do alto da sua arrogância e prosápia) provocar os professores, os médicos e até os juízes, três castas corporativas. Tudo com o propósito de levar a água ao moinho da política neoliberal do governo, neste caso do Ministério da Educação.
Dalila Cabrita Mateus, professora, doutora em História Moderna e Contemporânea».

O referido texto escrito por MST na íntegra
A tendência habitual dos tribunais, quando chamados a resolver questões laborais, revela um total desconhecimento do que seja a vida das empresas e dos locais de trabalho.

Pouco antes do Natal, foi anunciado que o Sindicato dos Professores tinha vencido duas acções contra o Ministério da Educação em tribunal administrativo, estabelecendo-se jurisprudência no sentido de que as célebres aulas de substituição, tão contestadas pelos professores, davam direito ao pagamento das mesmas como trabalho extraordinário. Se esta jurisprudência se vier a fixar como doutrina definitiva, isso significará que os professores terão conseguido, nos tribunais e por via financeira, derrotar o Ministério. Porque não se imagina que o Ministério disponha das verbas necessárias para pagar as aulas de substituição como trabalho extraordinário - além de que isso subverteria por completo todo o espírito e alcance da medida.
As aulas de substituição, como toda a gente percebeu (e, primeiro que todos, os próprios professores), destinam-se a tentar pôr termo ao flagelo do absentismo dos professores, sem paralelo em nenhum outro sector de actividade, público ou privado. Estabeleceu-se há décadas o princípio de que um simples atestado médico, que toda a gente sabe ser, regra geral, falso, mas que é incontestável e incontestado, basta para que um professor deixe sem aula uma turma de trinta alunos. O que eles fazem, aparentemente sem remorsos nem qualquer espécie de crítica dos seus pares.
Ora, se a consciencialização profissional não funciona neste caso, se o absentismo dos professores não tem, legalmente, qualquer reflexo no salário ou na carreira, só restam duas atitudes: ou nada fazer ou fazer alguma coisa. O primeiro caminho, e o mais cómodo, foi o adoptado por todos os governos até aqui - com os brilhantes resultados que se conhecem a nível da aprendizagem e da preparação dos alunos. O segundo caminho é aquele que tem sido adoptado corajosamente pela actual ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, com a contestação corporativa que se tem visto.
Não podendo actuar por via da penalização salarial (abençoada Constituição!), a ministra lembrou-se de um verdadeiro ovo de Colombo: as aulas de substituição. A função mais aparente deste mecanismo, em que um professor que está na escola e dentro do seu horário mas sem aulas para dar é chamado a substituir outro que faltou - é, obviamente, a de manter os alunos ocupados e minimizar os danos causados pela falta do professor em causa. Os sindicatos têm contestado a utilidade disto, com o argumento de que um professor não está preparado para leccionar fora da sua especialidade, nem lhe cabe “tomar conta dos meninos”, mas apenas ensiná-los. Não vale a pena perder muito tempo com este argumento, também esgrimido em termos perfeitamente idiotas por alguns alunos: um professor que não é capaz de substituir um colega durante uma aula, a quem não ocorre nada de útil para ocupar os alunos nesse tempo, é definitivamente incompetente e não está na escola a fazer nada.
Mas a finalidade mais importante das aulas de substituição, e o seu verdadeiro ovo de Colombo, é que o sistema permite finalmente consciencializar os absentistas habituais de que as suas faltas causam danos e incómodos concretos - e, agora, já não apenas aos alunos, mas também aos colegas. Parece evidente que não passará a ser muito estimado pelos colegas um professor que os obrigue sistematicamente a substituí-lo. Quanto mais um faltar, mais os outros se terão de sacrificar. Alguém consegue contestar a justiça pedagógica e exemplar desta medida?
Falhados os argumentos para tal, perdida a batalha junto da opinião pública constituída pelos pais e pelos alunos que se sentem no direito de ter aulas quando vão à escola, os sindicatos lembraram-se de deitar mão do argumento financeiro e, ao que parece, encontraram um inestimável aliado nos tribunais administrativos.
Estas sentenças são aberrantes, sob diversos pontos de vista: do ponto de vista da razão invocada, do ponto de vista ético (afinal, os professores não são capazes de dar aulas de substituição, mas, se lhes pagarem a dobrar, já são?), e, sobretudo, do ponto de vista cívico - decidindo contra o bem geral, que é o da comunidade de alunos e pais, e a favor de uma minoria sócio-profissional. Aliás, é esta a tendência habitual dos tribunais, quando chamados a resolver questões laborais - revelando um total desconhecimento do que seja a vida das empresas e dos locais de trabalho, onde os trabalhadores não gozam, nem podem gozar, como eles, de um estatuto de total independência e irresponsabilidade.
Imaginarão os senhores juízes autores destas sentenças que existe alguma empresa que possa sobreviver, se quem nela manda não puder encarregar um trabalhador sem nada que fazer de se ocupar de uma tarefa a cargo de um outro que faltou? Ou se só o puder fazer se lhe pagar isso como trabalho extraordinário, apesar dele estar dentro do seu horário de trabalho? Imaginarão os senhores juízes que há algum país do mundo onde este regime vigore?
É habitual, sobretudo entre os empresários, ouvir queixas sistemáticas à inflexibilidade da lei dos despedimentos: segundo eles, não é possível despedir ninguém em Portugal porque a lei o não permite. Ora, eu discordo desta ideia feita: o que a lei não permite é o despedimento sem justa causa. Trata-se, obviamente, de uma posição ideológica, que eu partilho: não confio o suficiente nos empresários portugueses para abdicar deste princípio. Mas, a meu ver, não é por aí que se torna inviável despedir um mau trabalhador, porque a lei fornece motivos suficientes para tal e, desde logo, o princípio geral de “qualquer facto que, pela sua gravidade, torne impossível a subsistência da relação de trabalho”.
O problema não está aí, está algures. Está na forma como os juízes do trabalho interpretam a lei - ou, melhor dizendo, a forma como a maior parte das vezes não chegam sequer a interpretá-la nem a analisar os factos invocados, decidindo logo a favor do trabalhador, com base em questões meramente formais que têm a vantagem acrescida de dispensar os juízes de ter de fazer o julgamento. E, nos casos em que o fazem, os juízes revelam, como já disse, uma notável ignorância e incompreensão do que sejam as relações de trabalho nas empresas e no mundo normal, onde os trabalhadores se têm de bater continuamente para mostrar o seu valor e os patrões têm o direito de exigir o melhor a quem pagam. É fácil abstrair-se disso quando, faça-se o que se fizer, bem ou mal, se tem sempre o ordenado garantido ao fim do mês e a progressão automática na carreira.
É esse sistema que a justiça se prepara para consagrar a favor dos professores, deitando por terra uma das verdadeiras reformas deste Governo. Como, além de mais, se tornou moda contestar a acção governativa através de providências cautelares nos tribunais - o que se traduz numa curiosa usurpação de funções, em que o poder judicial absorve o governativo, como no caso do encerramento das maternidades -, é provável que a justiça venha a conseguir anular, uma por uma, todas as tentativas de reformar o sistema de castas corporativas em que vivemos. Depois, no final, presumo que apaguem a luz e fechem a porta.

Governar contra os tribunais - Miguel Sousa Tavares - Jornal Expresso - Edição 1784

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