sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O Cruzeiro do Ferreiro

No cruzamento do antigo caminho Anceriz-Corgas-Pomares (hoje estrada) existe um cruzeiro, que tem na base ferramentas de ferreiro.
Este local e cruzeiro têm a sua história:
João Victor da Silva Brandão, nasceu a 1 de Março de 1825, no Casal da Senhora e foi baptizado na Igreja de Midões. Casou em 1863 com D.Ana Eugénia de Jesus Correia Nobre.
Envolvido em lutas eleitorais, julgado e condenado em Tábua a 3 de Junho de 1869, por um crime infamante, que foi o assassinato do Padre Portugal. Em 1870 foi desterrado para Angola, onde morreu em Setembro de 1880 .João Nunes ( o Ferreiro da Várzea ) era natural da aldeia do Casal dos Povos da Moura, freguesia de Avô. O seu pai, António Nunes, era ferreiro. Os seus quatro filhos foram ferreiros. O João, filho mais velho, veio a casar em Várzea de Candosa, perto da Percelada, concelho de Tábua. A sua divisa era: "Morrer ou matar João Brandão."



Em Pomares, havia um amigo de João Brandão, que era o Dr. António Pinto de Abreu Ferreira, que vivia onde foi mais tarde a casa do saudoso Aníbal Campos.
Na noite de 4 para 5 de Novembro de 1854, o destacamento de Infantaria 14, estava em Midões e era composto por 30 praças e mais de 200 bandoleiros armados, sob o comando de João Brandão. Atravessaram o rio Alva . As serras do Açor estavam cobertas de homens armados, para matarem o Ferreiro.
No dia 6 de Novembro, desse ano, era a feira de Lourosa, mas o Ferreiro não apareceu. Partiu em direcção ao Casal de São João , Luadas, Ribeira de Parroselos, Mata da Margaraça, Pardieiros e Benfeita, acompanhado pelo irmão Miguel, para depois seguir para a Covilhã e Espanha. Aqui vivia o sapateiro António Quaresma, que era seu conhecido. O Ferreiro, nesta viagem , ainda recebeu uns tiros na Catraia da Fonte de Espinho.
Na noite de 9 de Novembro de 1854, à meia noite, José de Brito e José de Matos entraram no palheiro e mataram o Ferreiro e prenderam o irmão. Depois apareceu João Brandão. Trazia uma bolsa com 29 pintos em prata e uma libra em ouro. Como estava na jurisdição de Arganil, teve receio e pediu ao irmão Miguel para levar o Ferreiro para junto da Cruz de Anceriz, que pertencia ao julgado de Avô. Foram até ao lugar de Adeclarigo ou Declarigo( Anceriz). João Brandão seguiu para Pomares, levando preso o Miguel. O corpo do Ferreiro, depois foi trazido para a Capela de Santo António de Anceriz, onde se fez o exame do cadáver, representando o Ministério Público o regedor de Anceriz, José Maria da Rocha, com o perito Dr. José da Costa Mesquita e o barbeiro José Pinto.
Dia 10 de Novembro de 1854, ao amanhecer. Para proceder a exame do corpo de delito, no cadáver que diz ser do João Nunes, casado ferreiro, natural do lugar da Percelada e morador na Várzea de Candosa, por o terem achado morto com ferimentos no tronco, no sítio de Adeclarigo( ou Declarigo).na freguesia de Anceriz.
O João Brandão é condenado e o Povo da Beira, quando ele foi desterrado para Moçâmedes, Angola, a 9 de Outubro de 1870, cantava:" Já lá vais para o degredo,
Adeus, ó João Brandão!
A morte daquele padre
Foi a tua perdição! "Nota: Estas informações foram tiradas do livro JOÃO BRANDÃO, de autoria de J.M. Dias Ferrão, Bacharel formado pela Universidade de Coimbra - 1928.Em memória à morte do Ferreiro, mais tarde mandaram fazer no local um cruzeiro, que chegou aos nossos dias. Baseado neste acontecimento nasceu uma lenda em Anceriz : " A cabeça do Ferreiro ", que em breve transcreveremos.


O CRUZEIRO( Entre Pomares e Anceriz)

Subíamos descansadamente o valle: era à tarde.O sol havia-se escondido por entre umas nuvens densas; e no ar pairava uma tristeza indiscriptível. As aves, saltitando de ramo em ramo, apenas faziam, ouvir a espaços, dolentes e lugubres pios, como se chorassem a morte d´algum ente querido. Em baixo, ao fundo, a ribeira engrossada pelas chuvas dos dias antecedentes, despenhava-se raivosa e espumante por entre fraguedos intermináveis, como que pretendendo fugir aquelles bosques de trágicas recordações, para ir abraçar num amplexo de carinho, o Alva, que mansamente beijava os pés à pátria do cantor de Viriato.


Ao longe descortinavam-se atravez d´umas nuvens esfarrapadas, as ondulações esbranquiçadas dos Hermínios, cuja alvura se afigurava, ao meu taciturno espírito, um enorme lençol amortalhando um gigante. Como tudo era triste! A própria natureza vestia-se naquelle dia de crepes., talvez para commemorar o aniversário d´alguma das horripilantes tragédias a que o solo da Beira tem servido de theatro.
Enquanto subíamos, vergados sob o peso da melancolia provocada por tão grande tristeza, um dos meus companheiros de passeio narrava-me uma série ilimitada d´acontecimentos, tristes como o aspecto d´aquelle dia, e horríveis como o hirsuto cume do Caramulo, que lá ao longe erguia para os céos os seus penhascos lamilliformes e frios, semelhando as espadas nuas d´um esquadrão infernal...
- "Finalmente, me disse elle, vamos chegar ao logar onde até hoje, se praticou o mais deshumano e tetrico de todos esses crimes".
- " Alguma mãe indefesa, morta na presença dos filhos que abraçados aos andrajos da desgraçada suplicavam, banhados em lágrimas, aos scelerados algozes que concedessem a vida aquella que os acompanhava, interroguei eu; ou algum mendigo que atravessando, alta noite, estes solitários caminhos, sem guarida, só, por serras inhospitas, fosse surprehendido pelo bacamarte traiçoeiro do salteador?!"
Não. Mais do que isso, me disse secamente o meu cicerone, cahindo numa abstracção profunda, numa angústia indiscriptível, como se lhe pezasse sobre o seu bom coração uma mole immensa.
Respeitei com profundo silêncio a dôr do meu amigo, um dos poucos que, num solo banhado pelo sangue d´innocentes victimas, ainda se condoiam das desventuras alheias.
Por fim o meu companheiro interrompeu o religioso silêncio que havíamos guardado, fazendo-me parar, e dizendo:
- "Foi acolá, sobre o tronco nodoso e carcomido d´aquelle secular castanheiro..."
A voz embargou-se-lhe na garganta e não poude continuar tão trágica narração. Ficou por momentos naquella posição, que tinha qualquer coisa de terrível. Com os olhos coruscantes, o braço estendido num movimento de repulsão, parecia lançar sobre a humanidade, que impavida e serena tinha assistido a tão grande crime, um anathema horrível e eterno.
- "Foi acolá, continuou elle, que uma horda de vis e cobardes assassinos crivaram com dezenas de balas o corpo d'um desgraçado a quem haviam dado caça. Mataram-n´o na aldeia a que um immortal escriptor chamou de SANTA CECÍLIA e de lá o conduziram para aqui, afim de lhe fazerem solemnes exequias. Como um alvo, foi collocado sobre o tronco do fatal castanheiro o corpo massacrado e frio d´aquelle infeliz, e à porfia - como é triste contal-o - começaram d´alvejar aquelle pedaço disforme de carne humana., As balas partiam velozes e certeiras das largas bocas dos bacamartes, e o estampido sonoro cohoava pelas quebradas dos valles d´um modo solemne e lugubre, como que tendo qualquer coisa de...divino. Parecia que a própria natureza se revoltava contra tamanho attentado!!!..."
Algumas horas depois as aves aterradas sahiam cautelosamente dos seus reconditos esconderijos, e o valle ficava deserto. Pendendo do tronco do velho e enorme castanheiro, os membros desconjunctados e o corpo crivado de balas, ficava a triste victima de tão cruéis algozes. Nesse mesmo dia alguns aldeões caridosos lhe deram sepultura; e ali em baixo, em Pomares, existe um pobre velho, que ao chegar junto do corpo para o sepultar, ainda lhe tirou, com uma curta estaca, uma bala que estava à flôr do corpo.
Mais tarde, dizem que alguem vinha abraçar-se ao tronco do velho castanheiro e que, como o noivo que permanece horas abraçado ao cadaver d´aquella que ia fazer a sua felicidade, ali ficava horas esquecidas, mergulhado em ternas recordações.
Como é triste! Como é vergonhoso serem beirões os auctores de tão deshumana tragédia!!!
Triste e pensativo, fiquei como que interrogando o regato, que entaçava os calhaus amarellos e polidos nun abraço de namorado, acerca da verdade de toda esta triste história.
Respondeu-me a monotonia e frieza do cruzeiro, que a dois passos se erguia. Sem as lellezas que o cinzel do artista imprime, elle ali estava, só, triste, attestando o passado.
Era formado por duas toscas pedras de granito, já musgosas, mas em pé, como que de mãos levantadas, pedindo à Providência um balsamo para a alma d´aquelle infeliz.
J. Cardoso

NOTA:
Este recorte foi tirado da "Comarca de Arganil" da edição de 5 de Abril de 1906.
Ficamos, assim a saber que ANSERIZ era chamada "SANTA CECÍLIA" por um escritor, cujo nome ignoramos. Provavelmente era pelo facto desta freguesia ter muitos e excelentes músicos, pois, Santa Cecília é a Padroeira da Músicos.
Segunda o testemunho deste artigo, o Ferreiro da Várzea, teria sido morto na Declarigo, em território de Anseriz e aqui sepultado, o que contradiz a versão do artigo anterior, cujo livro donde foi tirado foi escrito muito mais tarde. Segundo a nossa interpretação, este último testemunho parece-nos mais digno, pois parece ser um testemunho de pessoa que assistiu ao assassinato do Ferreiro.

Comentário ao "Cruzeiro de Anseriz":
No dia 6 de Maio de 2003, recebemos a seguinte mensagem electrónica do Senhor Ramiro Dias Antunes, referente à morte do Ferreiro da Várzea:
" Na Nota Final do artigo "O Cruzeiro" é afirmado:" ficamos a saber que Anseriz foi chamada Santa Cecília por um escritor, cujo nome ignoramos. "
Não sei se o escritor era SIMÕES DIAS, no entanto, seja quem for, ele estava a referir-se à povoação da BENFEITA, onde o referido FERREIRO foi morto e que tem por orago Santa Cecília."
Resposta: Caro amigo, bem-haja pelo seu comentário. Estamos de acordo com a sua interpretação, já que o Ferreiro foi morto na Freguesia da Benfeita e nessa mesma noite foi levado para a Cruz de Pomares-Anseriz. Quanto ao escritor de que se fala no artigo, creio também tratar-se do nosso ilustre professor, deputado, jornalista, escritor e poeta JOSÉ SIMÕES DIAS, natural da Benfeita e que veio a falecer em Lisboa a 3 de Março de 1899, com 55 anos. Apesar da sua curta vida, teve um percurso literário muito rico e variado.

Manuel Fernandes

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