"- Então o Tio Ambrósio, este ano, não vai passar uns dias de férias até às praias do sul? Cá por cima as temperaturas não têm estado nada convidativas para uns mergulhos retemperadores. Até nisto os tempos mudaram...
- Mudaram os tempos e mudaram as vontades, Carlos! Antigamente, por estas alturas, eu quase não era capaz de resistir a um convite, sobretudo do meu afilhado Jacinto, para ir por aí fora, quase sem destino, de aldeia em aldeia, em busca dos costumes das nossas gentes. Era aquilo a que eu chamava encher a alma de portugalidade.
- Eu preferia uns dias descansado, a torrar as costas numa das nossas belas praias, e a regalar-me com um petisco, a meio da tarde, na companhia do meu cunhado Acácio, enquanto a Joana e a irmã Ermelinda passavam em revista, numa daquelas conversas intermináveis, todos os acontecimentos sociais do Cabeço nos últimos tempos.
- Aí tens um dos motivos porque eu costumo dizer que não somos todos iguais. Vocês divertem-se e descansam, em amena cavaqueira, em frente dum copo de cerveja, enquanto as mulheres usam a tesoura social, cortando na vida alheia. Pela minha parte, prefiro sempre um passeio a uma alta montanha, de onde se possa apreciar um panorama que nos encha a alma de coloridos novos, de onde se possa alargar o olhar até ao infinito. Eu não sei, por exemplo, se tu algum dia te deste ao trabalho de subir ao cimo do Colcurinho, de onde se avistam terras de todo o planalto beirão, e uma infinidade de pequenas aldeias semeadas pelas encostas dos montes. É um quadro bonito de se ver!
- Onde eu ainda gostava de voltar era ao Penedo da Torre ou ao Picoto de Cebola. O Tio Ambrósio já lá foi?
- Quando era mais novo e as pernas me deixavam, Carlos! Agora limito-me a visitar os locais onde chega o automóvel. Que eu saiba, ainda não há estrada para o Picoto.
- Só a butes, Tio Ambrósio! O que há é um carreiro, nalguns lados já pouco conhecido por falta de utilizadores. Agora já não há carvoeiros e os pastores já pouco frequentam aquelas paragens. E para o Penedo da Torre ainda é mais difícil. Trata-se dum passeio só acessível a rapaziada de vinte anos e com boa preparação física. Que o diga o meu afilhado Leonardo, que ainda o ano passado me enviou uma bela fotografia com o panorama que dali se pode apreciar, com montes a perderem-se de vista até ao azul do infinito...
- Isso quase pode considerar-se um desporto radical, que já não é bem próprio para homens que precisam de um cajado para auxiliarem as pernas. No entanto, como te disse, há muitos outros lugares onde se pode chegar com maior facilidade, e donde podemos desfrutar de deslumbrantes paisagens, cheias de colorido e de encanto Aqui bem perto tens o alto do Trevim, na serra da Lousã. Ou então a Cruz Alta, na serra Buçaco, ou mesmo a Senhora do Círculo, nos arredores de Condeixa. Vale a pena um passeio a qualquer desses sítios, para respirar um pouco de ar puro e alongar os olhos pela distância, desde o interior das Beiras até ao mar...
- Assim numa escapadela, na companhia do Sanguessuga e do Acácio, todos acompanhados das respectivas famílias, é bem possível que, num domingo destes, ponhamos os pés ao caminho. A Joana maila Ermelinda arranjam uma merenda farta, com pastéis de bacalhau, rissóis de camarão e um arroz à valenciana, e vamos dar ao dente para uma sombra refrescante num desses locais aprazíveis. O problema é o regresso, pois apenas a Ermelinda, entre as mulheres, pode trazer o automóvel.
- Agora, com estas novas leis sobre a ingestão de álcool, os condutores têm que tomar as devidas cautelas. Bebe-se menos, Carlos!
- Que remédio, Tio Ambrósio! Nós temo-nos por cidadãos conscientes! É verdade que, de quando em vez, nos nossos convívios, um ou outro elemento encharca a vela. Mas, em regra, todos os do nosso grupo sabem ocupar o seu lugar.
- Nem outra coisa seria de esperar de pessoas com sólida formação moral. Por isso, façam o favor de aproveitar os domingos para, depois da participação na missa, darem uma volta com as vossas famílias. Mas não se limitem à merenda melhorada. Tenham sempre o objectivo da valorização pessoal. Muitos de nós somos incultos por burrice própria, pois não sabemos aproveitar as ocasiões que se nos oferecem para adquirirmos mais conhecimentos. Uma boa parte dos cabecenses, por exemplo, nunca entraram num museu.
- Isso é verdade, Tio Ambrósio! Mas olhe que as entradas nesses lugares custam sempre mais de quinhentos mil réis por pessoa. Para urna família de cinco ou seis elementos é pesado. A não ser que se troque a merenda por uma visita guiada...
- Tens razão, Carlos! Eu, por vezes, até me esqueço que muitas das nossas famílias vivem com orçamentos apertados...
- E, por isso, resta-nos o gosto da merenda e do convívio com os amigos. Barriga composta e alegria! Contentamo-nos com pouco, não acha?"
O Amigo do Povo
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