quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Era sábado de Outubro, 18, 2003

Sábado, Outubro 18, 2003
Rua Oliveira Matos
João Maria de Oliveira Matos era de S. Pedro de Alva. De origem humilde foi para Coimbra, muito novo ainda, a fim de ganhar a vida como empregado comercial. Inteligente, sensato e trabalhador, a pouco e pouco, foi-se impondo na vida até chegar a ser convidado, por determinado partido, para candidato a deputado pelo Círculo Eleitoral de Arganil, função que chegaria efectivamente a exercer. Fez muito pelo concelho. Nesta vila, por exemplo, foi ele que, mercê de aturadas negociações com alguns proprietários conseguiu dar a esta rua, que hoje tem o seu nome, (Aliás, após processo deveras polémico, que não dignificou a política: a Câmara, de uma determinada côr, atribuira esta rua (porque considerada rua principal da terra) o nome de Simões Dias (antes, portanto, da Praça ostentar este nome). Entretanto há eleições, que são ganhas por outra côr. E a nova Câmara não perde tempo: ignora aquela decisão e dá à rua o nome de Oliveira Matos...) o ar condigno de rua principal da terra.

Ora, quem entra na rua Oliveira Matos, vindo da Praça, encontra, logo à esquerda, as actuais instalações de A Comarca de Arganil, um jornal que ostenta a bonita particularidade de estar prestes a fazer cem anos (Isto em 1996, poquanto nesta altura (2001) já os fez.). E a observação que este facto imediatamente nos sugere é a estreita relação que neste período forçosamente existiu entre o desenvolvimento da vila e este jornal. Na verdade, por um lado, nada de importante se deve ter passado em Arganil, durante o século XX, que não ficasse registado nas colunas de "A Comarca"; por outro lado, é inegável que uma boa parte do desenvolvimento que a vila experimentou no mesmo período se ficou a dever à influência directa deste periódico.

Se nos lembrarmos a seguir que o Jornal de Arganil nasceu na década de 60, como semanário, (sendo "A Comarca", desde há anos, trissemanário(*) temos de reconhecer que Arganil constitui uma espécie de santuário da imprensa regionalista portuguesa. Esta realidade, de evidente significado social, tem ainda uma apreciável componente económica.

"A Comarca" e o "Jornal" são, como se compreende, duas peças valiosíssimas do património cultural arganilense.Ora, ainda em estreita ligação com a imprensa regional, depara-se-nos, um pouco mais à frente, também do lado esquerdo, o Memorial de João Castanheira Nunes, que foi director de "A Comarca" durante vários anos. O seu perfil fisionómico é recordado aí num medalhão do escultor Vasco Berardo. João Castanheira (1921-1986) foi um arganilense que, por intermédio do seu jornal, pôs toda a enorme capacidade de acção que possuia ao serviço do desenvolvimento da sua terra, que muito amava. O Grupo Desportivo Argus, o edifício do Teatro Alves Coelho, a corporação de Bombeiros Argus, o edifício da sede e quartel respectivos, são algumas das realidades arganilenses a que João Castanheira deixou o seu nome ligado de forma indelével.

Continuando, temos, à direita, em correspondência com o n.º 24, a casa em que Veiga Simões nasceu, passou a infância e parte da juventude. Em 1928, estava então no auge da carreira política, o povo de Arganil prestou-lhe uma expressiva homenagem, por ocasião duma sua vinda a esta terra. Na Fonte de Amandos, uma multidão recebeu-o entusiasticamente: ergueram-no aos ombros e assim o trouxeram até aqui. De uma das janelas desta casa proferiu então o discurso do seu agradecimento. À noite, os amigos ofereceram-lhe um lauto banquete. Tempo depois, porém, um tanto inesperadamente, abandonava a política activa, para se dedicar à vida diplomática. Foi a sua última aparição pública em Arganil.

A seguir, do lado esquerdo, fazendo esquina para a rua Bernardo José Simões, aparece-nos o edifício da antiga Pensão Canário, que havia de dar origem à actual Residencial Canário, no n.º 13. Como nota curiosa, lembrarei, a propósito, que este nome vem do simples facto do fundador da Pensão, Valentim Duarte Fernandes, na cerimónia do seu casamento, ter usado uma gravata amarela, facto que causou estranheza a alguns mirones. Alguém se lembrou então de fazer humor e diz: "parece um canarinho amarelo". Pois foi o bastante para o noivo ficar com a alcunha de "Canário" no resto da vida...
Segue-se a rua Bernardo José Simões, que foi pessoa importante de Arganil.

Bernardo José Simões (falecido em 1893) era natural do concelho de Poiares, mas veio para esta vila ainda novo, aqui estabeleceu com oficina de serralharia que viria a ter grande reputação, aqui casou e aqui ficou para sempre. Considerava de resto Arganil a sua verdadeira terra. Mercê da sua inteligência, competência, sentido de realização prática, esteve ligado à direcção da maioria dos melhoramentos levados a cabo em Arganil no seu tempo: construção do edifício do Hospital, construção da estrada do Mont'Alto, obras de restauro da Capela da Misericórdia, obras da igreja matriz. Chegou a ser recebedor da comarca judicial. Era avô paterno de Veiga Simões.

A seguir entra-se numa zona da rua em que a antiga Empresa Automobilista Arganilense teve, durante anos, o seu "terminal" (como hoje se diria), nos nºs 21 e 23, em correspondência com uma loja hoje ocupada pela Farmácia Moderna: era o "escritório da Empresa". Daqui resultava que este sítio, às horas de chegada e partida dos carros, ganhava uma animação especial; isto era visível, sobretudo, à noite, por volta das oito, quando chegava a camioneta de Coimbra (que prosseguia viagem até Pomares). Pelas ruas da vila, que se preparava para jantar, começava então a ouvir-se o "rapaz dos jornais".

Mais à frente, do lado direito, no rés-do-chão do n.º 36, existiu, na década de novecentos e trinta, o "bar do Lafões", ou seja, de João Jorge Ribeiro, que foi talvez o boémio mais famoso que Arganil jamais teve. Quando desistiu dos estudos que tentara, sem êxito, em Coimbra, João Lafões resolveu estabelecer-se na própria terra, com negócio de mercearia e bar (anexo): era a Havanesa-Bar. Aí, no bar, passaram a marcar encontro todas as noites os representantes dum grupo boémio arganilense, quase todos ex-estudantes de Coimbra, grupo que o próprio "barman" acabava sempre por integrar de forma muito participada... Foram noites memoráveis de estúrdia que ali aconteceram. Só que o negócio, como se compreenderá, não tardaria a saldar-se por um desastre completo...(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)


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Sexta-feira, Outubro 17, 2003
Tempos negros da ditadura e do CCCS
Sem defesa: alguém dizia que você era comunista e jogava a bomba...
Carlos Pimentel Mendes (*)

O período da ditadura militar no Brasil teve na verdade várias fases, alternando períodos mais ou menos violentos. Em 1980, segundo ano de governo do general João Figueiredo - que iniciaria mais adiante a transição política para o regime democrático -, uma facção militar optava pela distensão política, enquanto a linha dura tentava manter posições rígidas no controle militar do Brasil, há muito reforçadas pelo Ato Institucional nº 5. Como sempre em tais casos, a impossibilidade do controle pleno dos subordinados fazia com que o "guarda da esquina" mandasse na prática mais que o presidente. Em nome da ditadura, muitos desmandos foram cometidos e - muitas vezes - qualquer autoridade local posava de general da República, no estilo "você sabe com quem está falando?".


Em Santos, grupos de extrema direita organizaram o Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), que se arrogou o direito de decidir que publicações poderiam ser ou não vendidas nas bancas de jornais. As ameaças chegaram a ser acompanhadas por bombas e incêndios noturnos em bancas de jornais da região, cujos donos não acataram a decisão do tal CCCS.
Para tal comando, qualquer publicação não pertencente a empresários afinados com o regime político direitista - e portanto todas as publicações alternativas, mantidas por sindicatos e pelas cooperativas de jornalistas - deveria ser impedida de circular, da mesma forma que - no estilo defendido pela organização radical Tradição, Família e Propriedade (TFP) - nenhuma publicação de conteúdo sensual/erótico poderia ser comercializada.

Em 4/8/1980, este jornalista publicava no jornal A Tribuna de Santos (página 4):



Grupos de direita fazem ameaças
As ameaças de grupos direitistas contra a venda de jornais alternativos chegou a Santos. Proprietários de livrarias e de firmas distribuidoras de jornais receberam carta assinada pelo Comando de Caça aos Comunistas de Santos - CCCS -, exigindo que os jornais considerados alternativos não sejam mais vendidos ao público, a partir de hoje. Mas, a ação desencadeada em Santos tem uma particularidade que a difere dos casos registrados em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte: as ameaças incluem as chamadas revistas eróticas (Ele e Ela; Homem; Play-Boy; Privé e outras). Assim, os grupos de direita passam também a atacar as multinacionais, pois a maioria dessas revistas pertence a grupos estrangeiros.

Como não poderia deixar de ser, os proprietários de livrarias e de firmas distribuidoras preferem manter-se no anonimato, "para que a situação não fique ainda mais difícil", como comentaram ontem. Hoje, eles pretendem reunir-se e discutir os problemas que poderão ser ocasionados com as ameaças, pois várias bancas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte foram atacadas por esses grupos. A primeira providência tomada pelos livreiros e distribuidores foi não vender os jornais ao público, ou ainda manter seus estoques dentro das lojas, em lugares de difícil acesso.

Em relação às chamadas revistas eróticas, os livreiros e jornaleiros ainda não tomaram qualquer posição. Segundo a opinião de alguns deles, o Comando de Caça aos Comunistas estaria tentando ganhar o apoio de entidades de servir, "pois em alguns casos, essas entidades reclamaram do erotismo que as revistas apresentam e que estava sendo exposto nas bancas". Outro detalhe da carta, é que o grupo afirma que os livreiros e jornaleiros estão sendo classificados de "inocentes úteis, utilizados pelos vermelhos". A carta deixa claro que o grupo tem raízes regionais, pois afirma que os jornais não devem ser distribuídos "às cidades da Baixada Santista".

A íntegra da carta:

"O Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), unido e coeso aos nobres ideais da Falange Pátria Nova e das Brigadas Moralistas, já identificou o senhor e a sua empresa em nosso index como inocentes úteis dos vermelhos e dos imorais. O CCCS adverte ao senhor, com a sua responsabilidade de proprietário de empresa distribuidora e/ou vendedora de periódicos, que, talvez sem saber, vem colaborando para o aumento da propaganda comunista e da literatura erótico-pornográfica em nosso país, distribuindo ou vendendo à população desta cidade (que um dia ensinou à Pátria a Liberdade e a Caridade), revistas obcenas (sic) e jornais marxistas-leninistas.

"Outras entidades patrióticas, semelhantes à nossa, estão também enviando um alerta semelhante a este, advertindo as pessoas para o clima de subversão política e de afronta à ordem moral da família brasileira. Algumas o fazem incorretamente, pois apenas advertem aos jornaleiros de bancas, simples revendedores economicamente mais fracos, quando os grandes responsáveis, na realidade, são os editores e os grandes distribuidores/vendedores, como o senhor e a sua empresa.

"Assim, para o bem da nossa cidade, do nosso querido Brasil e do seu próprio futuro, exigimos que a sua empresa pare imediatamente de distribuir e/ou vender em Santos e nos municípios da Baixada Santista as seguintes publicações:

"Jornais - Preto no Branco (Cooperativa dos Jornalistas de Santos), Hora do Povo, em Tempo, Pasquim, Movimento, Voz da Unidade, Voz Operária, Repórter, Luta Operária, Convergência Socialista, Lampião, Jornal do Gay; Revistas - Ele e Ela, Play-Boy, Lui, Status, Homem, Close, Privé, Rose, Personal, Confissões, Eros, Fiesta, Exclusive e demais revistas que tratem de assuntos eróticos e sexuais.

Esperamos contar com a sua patriótica colaboração. Não advertiremos mais. Caso contrário tomaremos atitudes drásticas. Comando CCCS".
(*) Carlos Pimentel Mendes é editor do jornal eletrônico Novo Milênio


# posted by carlos : 17.10.03
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Praça Simões Dias
Estamos pois na Praça Simões Dias, designação que visa perpectuar a memória de um dos filhos mais ilustres da região de Arganil.

José Simões Dias (1844-1899) era da Benfeita; foi poeta e escritor de projecção nacional; professor de liceu e autor de obras didácticas que conheceram uma aceitação invulgar; parlamentar de intensa operosidade. Foi íntimo de Teófilo Braga. Era um homem de cultura. Grande amigo da sua terra, que cantou em versos que não esquecem mais.

O aspecto actual (Este "actual" refere-se a 1996, altura em que o Primeiro Passeio teve lugar. Hoje, porém, no ano de 2001, o aspecto da Praça é outro, bastante diferente. Com efeito, o local foi entretanto objecto de obras importantes que visaram fazer da Praça um espaço, em grande parte, pedonal - o que foi positivo - , mas obras que em contrapartida lhe terão introduzido uma nota de modernidade estética, de efeito discutível.) da Praça resultou do arranjo urbanístico que se seguiu à construção dos Paços do Concelho novos, nos anos quarenta do século XX, edifício cuja localização foi aliás objecto de viva e demorada discussão: havia quem o quisesse no Paço Grande. Venceram os que defendiam a edificação neste sítio. Com o novo imóvel nasceram as duas ruas que iriam ser denominadas: António Pedro Fernandes - um devotado "Presidente da Câmara" que muito trabalhou pelo progresso do seu concelho - era de Folques -, a ele se devendo, inclusive, o empreendimento do novo edifício, e engenheiro Duarte Pacheco, o ministro das Obras Públicas dessa época.
Nos anos novecentos e trinta ainda a Praça Simões Dias era dominada pelo ar austero da fachada do velho Tribunal marcada pela nota dramática das grades das cadeias comarcãs à vista de toda a gente. O poeta Teixeira de Pascoaes passou um dia por aqui, uns anos antes, e não fez referências muito lisonjeiras ao aspecto geral que a Praça então tinha; eis a impressão que esta lhe causou:

(...) "Arganil apareceu-nos, enfim. A rua principal é íngreme, e desemboca num largo, com um banco público velhinho, à sombra dum chorão raquítico, sem água onde molhar a trança verde...? Quase amarela de sede, entre zumbidos negros de moscas, pousando, em longos fios dolorosos, na poeira suja e pisada...
"Perto do automóvel, que estacou, passa um carro gemente, de grandes bois escuros, magros - caricaturas espantosas da fome e do trabalho!

"Pessoas, a uma esquina, conversam aborrecidas, fumam, envoltas numa nuvem de tédio - um tédio que se condensa em máscara humana... E, num velho edifício, grades de ferro nas janelas e faces lívidas que espreitam.

"Bois arrastando a sua dor, presos da cadeia, vultos queimando cigarros, uma rua suja e estragada, zumbidos de insectos, mau cheiro e um banco municipal, à sombra mendiga duma árvore, que tem remendos na casca.

"É a vila de província decadente, estagnada, numa fermentação de aborrecimento asfixiante, ao sol doentio de Agosto". (...)

Esta visita deu-se por volta de 1915; Teixeira de Pascoaes vinha da "estrada da Beira".

Ontem, como hoje, é na "Praça" que a vida social de Arganil pulsa mais intensamente.

No segundo quartel do século XX, todos os dias, a horas certas, se encontravam em frente do velho Tribunal, a fim de trocarem ideias ao mesmo tempo que davam o seu passeio, atravessando a Praça paralelamente à fachada daquele edifício, nos dois sentidos, alguns pequenos grupos de amigos, que constituiam outras tantas tertúlias. Estou a lembrar-me de um desses grupos que ficou célebre pela fidelidade com que cumpria o ritual, grupo formado pelos professor Lopes da Costa, reitor Manuel Alves Ribeiro e Abel Perdigão, a que por vezes se juntavam outros, como o dr. Baltazar de Carvalho Alberto, veterinário municipal, e, em tempo de férias escolares, José da Fonseca Travassos (que era director do Colégio de S. Pedro, de Coimbra) e, mais tarde, o professor Castro Nunes, que viria a afirmar-se como arqueólogo, justamente em Arganil, com as investigações que empreendeu na Lomba do Canho, como é sabido. Gente culta, muito ligada à Igreja, com concepções de vida de sinal conservador. Por sua vez, à noite, depois do jantar, era frequente verem-se dois cidadãos, um comerciante outro industrial, entretidos com serenas considerações decerto à cerca do mundo dos negócios: Albano Pires e Mariano Lopes Morgado. Ainda à noite, mais tarde, era a vez do dr. Fernando Vale e do seu amigo padre Adelino (Dias Nogueira) darem finalmente largas ao gosto de comentarem os acontecimentos da política, persumia-se.
Aqui havia o célebre "banco da pimenteira" - árvore (a que Pascoaes chamou chorão) - à sombra da qual se prestava culto à má língua. Por outro lado, aqui existia - e existe - a "Farmácia Galvão", nos n.ºs 6 e 7, onde se celebrava a "Tertúlia da Farmácia" - a mais importante e mais famosa tertúlia que Arganil conheceu, formada por um grupo de pessoas ilustradas da vila que tinham gosto em se encontrar todos as tardes para, de forma civilizada, trocar impressões sobre os problemas da vida - grupo de que só devem restar vivos o dr. Fernando Vale e o embaixador Albano Nogueira.

Esta tertúlia ainda nos anos trinta existia.

Na Praça, por essa altura, havia, de tempos a tempos, comédias, modesto espectáculo de rua realizado por pequenos grupos de comediantes que andavam de terra em terra, à procura duns magros tostões atirados das janelas para um chapéu que se estendia. Aqui aconteciam também, na época própria, manifestações carnavalescas, aliás de gosto em geral duvidoso. E porque Arganil é comarca judicial há mais de duzentos anos, e ao princípio, uma vasta comarca, importantes pleitos aqui foram julgados, em relação a alguns dos quais as leituras das sentenças deram origem a manifestações de júbilo que começavam logo aqui. Foi o que por exemplo aconteceu após o julgamento de João Brandão (acusado de haver morto o célebre "Ferreiro da Várzea", na Benfeita) assim que os seus partidários souberam que o famoso guerrilheiro ia sair em liberdade.
Vem a propósito recordar duas personalidades que passaram por Arganil com alguma demora e decerto conheceram bem este sítio. Refiro-me a Manuel Fernandes Tomás, que aqui foi Juíz-de-Fora nos começos de oitocentos (e, mais tarde, iria ser figura cimeira da política nacional, como é sabido) e a José Maria Bravo Serra, mais perto de nós, que aqui foi Juíz de Direito e viria a afirmar-se elemento prestigiado da magistratura portuguesa. Foi este último quem, surpreendido com o nível cultural que veio encontrar na sociedade mais ilustrada da Arganil dessa época (segundo quartel do século XX). havia de dizer, mais tarde, que, quando aqui chegara, tivera a impressão de se encontrar numa academia.

A Praça Simões Dias chamava-se anteriormente Praça do Comércio, pois aqui se concentravam os principais estabelecimentos comerciais da terra. Nos já referidos anos novecentos e trinta, por exemplo, aqui tinham porta aberta, com efeito: o farmaceutico Francisco Torres Dias Galvão, proprietário da "Farmácia Galvão", já referida; José Baptista de Carvalho, uma das primeiras lojas relativamente importantes que surgiram em Arganil; Jorge Miguel Moreira, com oficina de sapateiro; Francisco Castanheira de Carvalho, com a "Gráfica Moderna", que era também papelaria e livraria; José Maria da Cruz Almeida, com a "Loja do Zé Maria", dedicada ao comércio de panos, outros artigos, um laboratório fotográfico anexo, e, no verão, cervejaria em esplanada; (mais tarde) Susana Cruz, a "Susana", com estabelecimento de vinhos e petiscos; Guilherme Ferreira Rodrigues, que já recordámos, como cidadão e enfermeiro, com a "barbearia do Guilherme", ao fundo da Praça; (do outro lado do Tribunal) a Angelina de Carvalho, com a "loja da Angelina", dos sequilhos e do bolo-doce; o "Chiado", ou seja uma das "vinte e quatro filiais" dos conhecidos Grandes Armazéns do Chiado, de Lisboa, circunstância que se deve ao facto dos proprietários (família Nunes dos Santos) serem naturais do Barril (onde também havia um "Chiado"); o António "da Póvoa", com loja de panos; e , finalmente, António Fernandes Júnior, com a "loja do Mont'Alto, onde se vendia quase um pouco de tudo, nesse tempo talvez o mais importante estabelecimento comercial de Arganil (hoje continuado pelos Armazéns Mont'Alto).No espaço fronteiro aos "Correios" apresenta-se-nos hoje o Largo Conselheiro José Dias Ferreira, outro ilustre arganilense de Aldeia Nova (Pombeiro), o qual, começando por ser estudante em Arganil (como já aludimos), iria ser figura relevante da política nacional, tendo chegado inclusive a Presidente de Ministério.

Deste largo parte a actual Rua José Castanheira Nunes, que vai ligar à Rua Eugénio Moreira - duas figuras históricas na vida de "A Comarca" -, já no Fundo de Vila. Era a essa rua, que começava mesmo na Praça, que antigamente se chamava Rua dos Figueirais. Durante muitos anos deve ter sido artéria importante da vila. Assim se compreende que, a certa altura, lhe tenha sido dado o nome do Conselheiro José Dias Ferreira. Todavia, com a construção dos "Correios" e do largo que surgiu em frente criaram-se condições que permitiram as alterações toponímicas acabadas de referir.

É no largo do Conselheiro José Dias Ferreira, diga-se a propósito, que se encontra, por conseguinte, o actual "edifício dos Correios", um dos exemplares mais conseguidos do património arquitectónico de Arganil.(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)


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Quinta-feira, Outubro 16, 2003
Discurso de Posse

UNIVERSALIDADE E LITERATURA
DISCURSO DE POSSE NA CADEIRA 16
DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS

Ano do 1º Centenário
Maria Beatriz Rosário de Alcântara Fortaleza, 30.11.1994

>Corre o ano do centenário desta Casa, Academia Cearense de Letras, e por tal acontecimento, Senhores Acadêmicos, a honra que me conferis ao me elegerdes um de vós desperta-me sentimentos de associação inusitada: humildade; orgulho e temor.

A humildade procede de quem acha-se, ad semper, a aluna incipiente de valorosos mestres que terão presença constante neste Sodalício, ainda que encantados, na mineiridade das palavras imagéticas de Guimarães Rosa, tais como Milton Dias, Rebouças Macambira e Moreira Campos, ou na manifesta presidência desta sessão, o Príncipe dos Poetas Cearenses, Artur Eduardo Benevides. Orgulho-me de ter sido eleita acadêmica pelo mérito e constância da minha palavra escrita ao longo de duas décadas. Iniciei meu percurso literário em junho de 1973 ao publicar um pequeno ensaio crítico, La Revolte Positive de Simone de Beauvoir onde buscando apoio em Mémoires d’une Jeune Fille Rangée e Le Deuxième Sexe, duas obras da escritora francesa companheira de Sartre, observei aspectos da condição feminina de uma mulher que se havia determinado a possuir um lugar próprio no universo da Literatura.

A esta estréia ensaística seguiram-se várias outras publicações que evoluíram desde as experiências na Poesia Marginal com Boletim de Poesia, um regresso ao ensaio com Fernando Pessoa e o Momento Futurista de Álvaro de Campos e Academia Brasílica dos Esquecidos, depois o ingresso na ficção curta com Daquém e Dalém-Mar, afora vários outros trabalhos publicados em antologias, revistas, jornais e suplementos literários.

Quanto ao temor, ele advém-me da certeza de que sou ainda pequena, no engenho e na arte, para estar entre tantos doutos; no entanto, comprometo-me a partir deste momento e com a vossa sábia ajuda, cumprir um destino acadêmico que, somando-se aos vossos, possa vir a contribuir para a continuidade e o engrandecimento desta tão prestigiada Casa que hoje me acolhe e perfilha.

Senhoras e senhores, devo-lhes confessar que nesta noite minha alma emigrante está posta em floração aos olhos de todos. Nasci no Brasil, muito pequena cruzei o mar e fui-me encontrar no aconchego dos avós paternos. Adquiri lusa nacionalidade, aprendi a leitura e a escrita de Portugal. O fado quis que meu pensar, minha emoção e meu agir se moldassem sob severos pórticos de cantaria lavrada, rios caudalosos a correrem sôfregos para o mar, outonos dourados, invernos sombreados de chuva, conversas sussurradas pelos mais velhos e atrevidamente espreitadas atrás de pesados reposteiros, senhoras eternamente viúvas do preto, os uivos distantes de alguma matilha de lobos acossada pelo frio e fome, os cantares e os folguedos das colheitas.

Falo-vos, senhores acadêmicos e amigos presentes, de uma mulher dalém-mar, peninsular, beirã, de uma Beira para tantos distante ou mesmo desconhecida, mas que se orgulha de ter sido o berço da nacionalidade lusitana com Viriato, pastor dos Hermínios. Beira de Arganil, Benfeita e Coimbra, monumentos construídos na minha alma entre pedras, pinheiros e povoados, lendas, sinos de campanário, sorrisos e sermões dominicais, gente simples e gente erudita, rostos que não se apagam, fontes a surgirem mansas nas curvas da serrania, rios e ribeiras correndo por entre xistos limosos, incêndios estivais, lágrimas , refúgio ao frio na mesa do braseiro, histórias, valentias e fidalguices da família contadas para espaçar a tarde que teima em fazer-se noite, amigos sem tempo nem amor a ser medido.
Eis o substrato de quem nem imaginava vir a tornar-se escritora, pois que não era aos olhos dos que a cercavam, senão que uma garota doentiça e pálida, resposta na ponta da língua, desastrada no convívio e com uma obstinada mania de ler.

Pela mente imaginosa e as palavras encantatórias dos irmãos Grimm, Jakob e Wilhelm aprendi a amar o que lia, pois que era através daqueles contos tão singelos de Kinder-und Hausmärchen que meu ser fantasioso achava guarida.

Nos livros da Condessa de Segür, acreditei-me como uma possível heroína sobretudo em Os Desastres de Sofia, já que não havia como incluir-me entre As Meninas Exemplares, embora encontrasse em minhas longas folgas escolar elementos que se assemelhassem aos do livro As Férias.

Viajei por toda a França acompanhando, em regozijo ou no sofrimento, o pequeno órfão Remy e os cãezinhos amestrados da trupe de Monsieur Vitalis, de Hector Malot.

Como esquecer as histórias que pareciam sair de uma cestinha mágica onde Sherazade as encontrava cada noite para entreter o rei Chariar e assim escapar à morte?

E o que não cresci e diminuí de tamanho com o gigante Gargântua e seu filho, o príncipe Pantagruel, criados pela inventividade literária de Rabelais?

A última leitura infanto-juvenil contudo, foi diferente. Encontrei-me aturdida, enquanto encantada, com o universo onde se moviam Alice no País das Maravilhas e os mais alucinados personagens da minha infância, o Chapeleiro Louco, a Lagarta, a Lebre de Março, a Rainha de Copas e o Gato Cheshire tudo a reger-se pelo espelho distorcido da genialidade de Lewis Carroll, ou melhor o pseudônimo sob o qual se escondia o senhor Charles Lutwidge Dodgson. Alice introduziu-me, sem que eu mesma o soubesse, no absurdo, no mundo dos símbolos.

O amor fez-se tempo e, pelas palavras de Júlio Dinis em A Morgadinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor, chorei os primeiros desencontros entre amados. Na ocasião, também não escapei de Charlotte Brontë com sua Jane Eyre.

Menina moça, às escondidas, apossei-me a par e passo de alguns romances de Eça de Queiroz, todos eles cuidadosamente encarrapitados no alto de uma estante de meu tio Ângelo, o único ainda solteiro e morando em casa dos meus avós. Infelizmente, a mania que adquiri à época de utilizar o mesmo vocabulário dos livros denunciou-me, quando, imitando o personagem Carlos referindo-se a João da Ega saí-me com a expressão - Ah, um Mephistopheles de Celorico - o que valeu o reconhecimento - Com que então andas a ler Os Maias ! - e, uma boa reprimenda valeu-me a ousadia.

Com os livros, descobri também que a humildade não se prende tão só ao modo de se ater como pessoa. Ela é imprescindível no campo do saber e par a par com a determinação de não parar, nunca, de estudar e ler tudo, sem preconceitos, até o último sopro. Como ganhei a experiência do ser pouco? Vejamos, eu tinha por certo uns quatorze anos quando, sob a orientação de Mrs. Murphy, li A Tale of Two Cities de Dickens e alguns extratos de King Lear de Shakespeare, no original. Pensando ter, com estas leituras, adquirido acesso à Literatura, comprei na Livraria Sá da Costa, a dos intelectuais no Chiado, um livro que vi ser solicitado por uma senhora ainda jovem a quem trataram de senhora dona doutora. O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, foi o livro. Tudo revelou-se impenetrável da primeira à última página. Como saber qual o caminho de Harry, um labirinto ou o caos? Por que Hesse terminava a última linha com o grito - Mozart espera por mim ?

Muitas lágrimas de vergonha correram-me escondidas numa alma que pensava possuir alguma cultura e que, no entanto, revelava-se tão sem graça quanto o corpo adolescente.

Só muito mais tarde, quando foi-me dado ler O Apanhador no Campo de Centeio de Jerome David Salinger é que reconheci que o herói de Hesse, tal como Holden, de Salinger, peregrinava, rebelde e frustrado, na alienação dos tempos modernos.

Afastando-me do regaço familiar por dois anos para estudos internos em La Neuveville, saí do domínio de Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e Camões - Já a vista, pouco e pouco, se desterra / Daqueles pátrios montes, que ficavam; / Ficava o caro Tejo e a fresca serra / De Sintra, e nela os olhos se alongavam. / Ficava-nos também na amada terra / O coração, que as mágoas lá deixavam. / E já depois que toda se escondeu, / Não vimos mais, enfim, que mar e céu. (Canto Quinto de Os Lusíadas), como também distanciava-me de Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Cesário Verde, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Aquilino Ribeiro e José Régio - Forças da terra e anjos do céu!, valei-me, / Que eu sou medida, e vi a Vida imensa! / Peso que sou, roubai-me ao peso!, erguei-me / Sobre a matéria própria minha, densa! / Eu ouvi-te, meu Deus! e continuei-me / Em confusões, em dúvida, em descrença.../ Mas para além do que é em mim limite, / Não há um só poro meu que te não grite!, autores que me ocorrem nesta menção.

Iniciei-me na Literatura de língua francesa. Mlle. Sullivant conduziu-me através obras e autores de que já ouvira falar vez por outra, mas que só então me era dado apreciar. Aprendi a reconhecer o encanto rítmico da poesia, como em Ronsard, - Minhonne, allons voir si la rose / Qui ce matin avait déclose / Sa robe de pourpre au soleil, / A point perdu cette vesprée, / Les plis de sa robe pourprée, / Et son teint au vôtre pareil. Tomei conhecimento da antagonia clássica - paixão, versus, razão - com os heróis do teatro de Corneille e Racine, enquanto Molière levava-me à compreensão não só das unidades teatrais como ainda à percepção e ao reconhecimento de que a genialidade tal qual a condição humana transcendem o tempo.

A leitura de Voltaire, Montesquieu, Diderot e Rousseau introduziu-me no pensamento filosófico, seja, racionalismo - versus - sensibilidade pré-romântica.

Os escritores do Romantismo, quando eu os entendi claramente, ne m’attiraient plus tellement, senão por um poema de Alfred de Vigny, La Mort du Loup, que se coadunava com a minha alma no esforçar-se para romper com a emoção fácil, - Seul le silence est grand; tout le reste est faiblesse. /...Gémir, pleurer, prier, est également lâche. / Fais énergiquement ta longue et lourde tâche / Dans la voie où le sort a voulu t’appeler, / Puis, après, comme moi, souffre et meurs sans parler.

Quando os estudos me levaram a George Sand, Balzac, Stendhal e Zola, por conseguinte ao romance, apercebi-me de que havia como que uma sombra dentro de mim mesma, inquietante, a prender-me o olhar atento em tudo e a todos à minha volta. Comecei a rabiscar, num caderninho fechado à chave, o mais que me era dado observar. Chamei a estas anotações secretas de O Livro dos Outros. Impiedosa, como só alguns adolescentes sabem ser, anotei tanto ridículo observado, tanta mentira depois desmentida, tanta verdade pela metade, que, um dia, tomada pela impressão de que as anotações para o romance haviam sido violadas e, temendo a ira dos muitos que por ali viriam-se desnudos, lancei tudo às chamas da fornalha que aquecia a nossa casa naquele inverno. Contudo, antes que surgissem as primeiras folhas primaveris, um chá permitido na sala dos professores deu-me ocasião de presenciar uma discussão sobre a verossimilhança preconizada por Aristóteles, ... não é ofício de poeta narrar o que realmente acontece; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, verossímil e necessariamente (Poética) e por estes sábios ensinamentos dei graças ao frio e à fornalha que tão oportunamente ofereceram um fim ao que pretendi, de forma tão errônea, escrever como se romance fosse.

Retornando a Portugal, às sete colinas lisboetas, às avenidas pombalinas, à modernidade do Arieiro e ao término dos estudos regulares, resolvi cursar o Instituto Superior de Línguas e Administração.

Já estava no fim do segundo ano quando surgiu-me o imediatismo de voltar a cruzar os mares e retornar à terra-berço.

Adaptar-me ao Brasil foi processo de tal modo sedutor que tornou-se impossível, para mim àquela época, voltar a Portugal para sempre. Duas Pátrias, um enigma? Não, tenho consciência, qual Fernando Pessoa, de que minha Pátria é a língua portuguesa.

No exame de equiparação de estudos no Liceu do Ceará, tomei conhecimento, de algum modo, da civilização brasileira que, até então, era guardada em mim como cenário tropical fantasioso. Logo depois, trabalhando como pesquisadora, tradutora e intérprete para Ralfh De la Cava, tomei conhecimento, dentre outros aspectos da cultura nordestina, do cangaço. Posteriormente, durante o Curso de Letras na Universidade Federal do Ceará, coube-me a leitura, entre tantas mais que iniciaram meu processo de aculturação à civilização brasileira, do livro O Cabeleira de Franklin Távora.

Hoje, Senhoras e Senhores, quando tomo posse da cadeira 16 na Academia Cearense de Letras, tenho como dever acadêmico ressaltar a importância de seu Patrono, João Franklin da Silveira Távora, um dos pioneiros do ciclo nordestino na Literatura Brasileira.

Controvertidas e, por vezes, depreciativas têm-se mostrado as opiniões críticas sobre o posicionamento de Franklin Távora ao que se convencionou chamar de Literatura do Norte. Antes, porém, gostaria de registrar dois aspectos que considero oportuno, diante o julgamento crítico que foi alvo este escritor cearense citado em quase todos os compêndios literários do Brasil, com freqüência, de modo depreciativo, conforme será dado observar pelas citações que arrolei para estas páginas.

A primeira opinião que desejo expressar prende-se ao fato de que um acontecimento literário necessita de um certo distanciamento temporal do fenômeno original. Alguns estudiosos estabelecem cinqüenta anos, para que se possa fazer um juízo crítico com isenção.

Depois, há que frisar-se o fato da crítica literária, exercida pelos contemporâneos de Franklin Távora, julgar, com muito rigor, os dotes literários emergentes, enquanto era possuidora de uma grande repercussão, quer em jornais, panfletos ou opúsculos. Assim pois, depassar uma crítica adversa, era tarefa de Sísifo para um jovem nortista que, não possuindo uma obra ficcional de expressão, posicionara-se contra José de Alencar e subida audácia, propunha-se a pensar numa supremacia e purismo literário nordestinos, com a questão de uma Literatura do Norte.

José Veríssimo, na 5ª série da publicação Estudos de Literatura Brasileira, inicia seu estudo crítico dedicado a Franklin Távora afirmando que, Franklin Távora é uma das mais queridas e saudosas recordações da minha vida literária mas, ao longo do ensaio de seis páginas, explicita seu posicionamento: Franklin Távora parece ter conservado sempre os seus preconceitos provincianos, nos quais de regra se misturam, procurando aliás esconder-se, uma admiração ou gosto exagerado da nossa Capital e a desconfiança do matuto.

Eu não saberia dizer se não foi deste sentimento, feito de duas impressões desencontradas, que se gerou na mente de Távora a sua idéia da Literatura do Norte...Na concepção de Franklin Távora,...a preponderância que na primeira colonização e organização do Brasil teve o norte, as lutas e guerras que, nos Séculos XVI e XVII, sustentou,... a preponderância aí do elemento indígena...a diferença em que Franklin Távora assentou o seu conceito do fracionamento da literatura brasileira em setentrional e meridional, além daquelas razões de ordem histórica e social, há a razão geográfica,...Norte e Sul são distintos....Não quero negar que entre o Norte e o Sul, isto é, entre a gente do Norte e a do Sul, haja diferenças notáveis... Mas diferenças idênticas existem, verificam-nas todos os viajantes, assentam-nas nos seus romances todos os romancistas, nos mais unos dos velhos países europeus, como a França, apesar de quinze vezes menor que o Brasil, de quatorze séculos de trabalho de unificação e da extrema facilidade intercurso dos seus habitantes,...Quem...pensa em dividir a Literatura Francesa consoante o diferente viver, costume ou paisagem que ela representa?

Consultando Nelson Werneck Sodré em sua História da Literatura Brasileira, registrei algumas considerações acerca do determinismo literário de Franklin Távora em busca de uma Literatura Regional do Norte, que segundo o romancista, seria mais nacional porquanto distante das influências externas da colonização que ainda se processava no sul do Brasil. Escreve Sodré: A ilusão do ficcionista cearense esteve em julgar a possibilidade de conferir caráter nacional a uma literatura por um ato de vontade, alheio a todas as condições do meio e do tempo.

Faltando-lhe os dotes pessoais para uma tarefa tão ampla, embora não lhe faltasse capacidade para narrar, como ficou expresso em muitas de suas páginas e particularmente naquelas de Um Casamento de Arrabalde, errou os caminhos e, procurando veracidade na cor local, desviou-se para as tramas históricas que constituíam justamente o antídoto para as suas intenções. Nelas se perdeu, e de tal sorte que considerava o que havia de melhor como ruim, e punha esperanças na falsidade de suas personagens e de seus quadros.

No entanto, é a Wilson Martins, no volume IV da História da Inteligência Brasileira que deve-se uma das mais severas críticas, quando alude à novela Sacrifício de Franklin Távora, publicada em capítulos na famosa Revista Brasileira. A simples evocação do nosso patrono da cadeira nº 16 às Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett nas primeiras passagens de Sacrifício suscitou de Wilson Martins esta observação: Infelizmente, não se pode imaginar nada mais oposto ao estilo da prosa garrettiana que o de Franklin Távora. Em Sacrifício, particularmente, o diálogo é falso e empedrado, fazendo corpo com um texto escrito no estilo da descrição jornalística, repleto de tiradas pomposas. É uma novela romântica em que se percebe a contaminação de Paulo e Virgínia; fria e retórica, tem os defeitos do velho folhetim, já então anacrônico, sem apresentar-lhe as qualidades de interesse e movimento.

Por outro lado, no volume referente à Era Modernista da coletânea A Literatura no Brasil, sob a direção do conceituado pesquisador Afrânio Coutinho, a corrente literária defendida e encetada por Franklin Távora é tida como um legado ficcional que ao desdobrar-se, aperfeiçoando-se, originou a vertente regional no romance brasileiro, cerne do ciclo nordestino modernista: ... ao romper-se a aurora modernista, em 1922, o romance brasileiro já havia fixado a sua fisionomia estética e temática. O modernismo, nisto como em tudo o mais, não foi um começo absoluto. É a continuação das tradições que se haviam formado através dos séculos de evolução literária. É claro que renovou, nas formas e nas técnicas. Mas a sua contribuição tornou-se mais válida precisamente porque já encontrou o caminho aberto pôr experiências anteriores. Do contrário não teria tido o ímpeto e a capacidade realizadora. E, mais adiante, no mesmo volume de A Literatura no Brasil, o escritor cearense continua a ser mencionado: Franklin Távora, nos limites entre Romantismo e Naturalismo, foi o primeiro a usar o tema da seca e da saga do jagunço em O Cabeleira (1876). Além disso, foi quem lançou a idéia da Literatura do Norte (prefácio de O Cabeleira), primeiro portanto a levantar a bandeira do regionalismo e das regiões literárias com suas características próprias.

Silvio Romero, também faz registro do nosso Patrono no tomo quinto da História da Literatura Brasileira, dedicando palavras elogiosas à contribuição que Franklin Távora emprestou ao cenário literário no Brasil: Alta é a importância que toca a Franklin Távora, pois que lhe cabe um posto notável entre os mais distintos romancistas do Brasil até aos dias de hoje.

Ele deve figurar como o chefe do naturalismo tradicionalista e campesino na novelística brasileira; naturalismo, porque seus tipos e cenas são estudados do natural, das observações diretas do escritor e não meros filhos da imaginativa; tradicionalista, porque o romancista deu quase sempre preferência aos assuntos do passado, nomeadamente do século XVIII, que estudou com carinho; campesino, porque escolhia seus atores entre as gentes da roça, do mato, do campo.

José Veríssimo, no texto adverso que mencionei anteriormente e cuja crítica destinava-se a assinalar a republicação em 1977 dos romances O Cabeleira, O Matuto e Lourenço , pela Livraria Garnier, contudo tece elogios ao referir-se à obra ficcional de Franklin Távora, senão observe-se como a análise introdutória foi concluída: Se a sua teoria apenas contém uma parte mínima e muito relativa de verdade, os três livros com que a exemplificou, são das mais exatas e mais belas representações em nossa literatura do velho Brasil, do Brasil tradicional, daquele que, sem embargo da bruteza da terra e da gente, e não obstante todas as razões acima, me parece, à minha alma apesar de tudo ainda romântica, enamorada do passado, o mais interessante, o mais pitoresco, o mais encantador.

Quando em 1984 o Acadêmico Otacílio Colares foi designado para realizar uma apresentação crítica à reedição de Os Índios do Jaguaribe: história do século XVII, assim reportou-se a Franklin Távora num trecho que achei oportuno transcrever: É preciso porém, por ser de justiça, sobretudo com vistas aos futuros interessados em nosso evolver literário, que antes de dizer-se (ou ser dado como tal) criador de uma ficção peculiar, que mestre Tristão de Ataíde enquadrou como de pruridos sertanistas, foi Távora, com seu Os Índios do Jaguaribe, um escritor jovem, que se inclinara, antes, para o indianismo e que, logo compreendendo o falso caminho que trilhava, desviar-se-ia para a corrente roceira com Um Casamento no Arrabalde e os três romances históricos, onde, segundo o grande crítico, há páginas de sabor local, com que pretendeu criar, como Adolfo Caminha, uma Literatura do Norte - O Cabeleira, O Matuto e Lourenço.

Voltemo-nos agora, tão somente, ao patrono da cadeira 16 da Academia Cearense de Letras, João Franklin da Silveira Távora. Sua origem situa-se no maciço de Baturité, precisamente em Montemor-o-Novo, tendo permanecido no Ceará até que para seguir o curso de Direito, transferiu-se para o Estado de Pernambuco onde passou a residir. Por volta dos trinta e dois anos mudou-se para o Rio de Janeiro, ali permanecendo até que um aneurisma o levasse à morte em 1888.

O que teria escrito este cearense que viesse a despertar tão grande número de críticas pejorativas, ocasionando que tantas palavras fossem vertidas nos mais diversos livros de crítica literária no Brasil ? O prefácio de Franklin Távora em O Cabeleira traz uma longa carta a um amigo. Após comentários não pertinentes ao que o autor defende como Literatura do Norte, ao final da sexta página, assim escreve : Venhamos ao assunto desta carta. Em O Cabeleira ofereço-te um tímido ensaio do romance histórico, segundo eu entendo este gênero da literatura....As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra.

A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.

A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão.

Mais adiante, seguindo-se a comentários sobre romances e romancistas do Norte e do Sul, com uma velada crítica a José de Alencar, Franklin Távora retoma sua proposta: ...têm os escritores do Norte que verdadeiramente estimam seu torrão o dever de levantar ainda com luta e esforços os nobres foros dessa grande região, exumar seus tipos legendários, fazer conhecidos seus costumes, suas lendas, sua poesia, máscula, nova, vívida e louçã, tão ignorada no próprio templo onde se sagram as reputações, assim literárias, como políticas, que se enviam às províncias.

Não vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que não aninho em meu coração brasileiro. Proclamo uma verdade irrecusável. Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política.

Enfim não posso dizer tudo... Depois de haveres lido O Cabeleira, melhor me poderás entender a respeito da criação da literatura setentrional.

A verdade é que a obra literária de Franklin Távora poder-se-ia dividir em duas partes. À primeira, que estaria compreendida entre os anos de 1861 e 1867, pertenceriam as obras de cunho nitidamente romântico: A Trindade Maldita, Um Mistério de Família, Os Índios do Jaguaribe e A casa de Palha.

A segunda fase, correspondente à proposta de uma Literatura do Norte, iniciar-se-ia com Um Casamento no Arrabalde em 1969, seguindo-se de Três Lágrimas, Cartas a Cincinato, O Cabeleira, O Matuto, Lendas e Tradições do Norte, Sacrifício e Lourenço, contudo, os romances mais identificados com a proposta de Távora, seriam : O Cabeleira (1876); O Matuto (1878) e Lourenço (1881).

A leitura destes três romances conduz à constatação de que o Autor ao construir-lhes a narrativa enveredou por um enfoque mais histórico do que levava a supor a proposta regionalista dos costumes e usos do Norte, tomando como ponto de apoio o prefácio de O Cabeleira e a Literatura do Norte.

O muito ilustre acadêmico, Doutor Newton Teófilo Gonçalves, a quem tenho a grande e talvez não merecedora honra de suceder no assento à cadeira 16 deste Sodalício, em seu esmerado discurso de posse - A Literatura pela Literatura é vazia, como a ciência desumanizada é funesta - escreveu a respeito de nosso Patrono: Sinceramente, nunca me animei a estudar as raízes de um escritor se com ele não me afino, nem pela linguagem, nem pelos temas, nem pela chateza provinciana, que somente uma forma de extraordinária beleza poderia compensar.

Não me foi dado privar de uma simples conversa que fosse, do intelectual, do médico, enfim, dessa pessoa tão envolta pela sabedoria que era Dr. Newton .

Nascido em Fortaleza no ano de 1917, Newton Teófilo Gonçalves fez seus estudos secundários no Liceu do Ceará de onde seguiu para a Faculdade de Medicina da Bahia, vindo a diplomar-se em 1939.

No Rio de Janeiro, seguiu alguns cursos de especialização como Clínica Cirúrgica, Anatomia Patológica e Anatomia Patológica da Tuberculose. Em Fortaleza especializou-se em Didática do Ensino Médico, além de um curso na Universidade de Michigan, U.S.A., sobre Administração Universitária.

Enumerar todas as funções exercidas por Dr. Newton seria tarefa que não ensejaria ressaltar sua cultura, a universalidade do seu pensamento, o aguçado espírito crítico, além da sensibilidade de um homem de mente tão elevada que enriquecia todos quanto dele aproximavam ou conviveram.

Pela união e determinismo de um grupo de jovens médicos na década de 40, Walter Cantídio, Jurandir Picanço, Waldemar Alcântara, José Carlos Ribeiro e Newton Gonçalves, a Faculdade de Medicina do Ceará foi fundada em 1948.

Entre os cargos mais elevados que ele veio a ocupar, ressalte-se: professor Titular do Departamento de Cirurgia da U.F.C.; Médico Ministério da Marinha; Diretor da Faculdade de Medicina do Ceará; Presidente do Centro Médico Cearense; 1º Presidente do Conselho Regional de Medicina do Ceará; 1º Presidente da Secção Cearense do Colégio Internacional de Cirurgia e Coordenador dos Centros de Cultura da U.F.C.

Portador de várias condecorações, Newton Gonçalves recebeu Medalha da Abolição, Medalha Barca Pelon, Medalha do Mérito Naval concedida pelo Governo da Espanha e Grã-Cruz do Mérito pela República Federal da Alemanha.

Ao possuir um bom domínio da língua alemã, traduziu duas obras médicas Embolia Gordurosa e Hérnia de Hiato, do professor G. BOTTGER.

O acadêmico da cadeira 26, médico Lúcio Gonçalo de Alcântara, ao proferir o discurso de saudação e acolhida à Academia Cearense de Letras de seu antigo mestre, salientou: A produção cultural de Newton Gonçalves é abundante e de boa qualidade; embora dispersa, pois o autor até então está por condensá-la em livro. Penso que em breve deverá fazê-lo, para que não se perca em páginas de publicações efêmeras tanta coisa de fino gosto, digna de ser preservada, lida e consultada.

A posse de meu antecessor ocorreu a 19 de novembro de 1979, e quinze anos decorridos, a sugestão do discípulo não chegou a concretizar-se, conquanto o Magnífico Reitor do Ceará, acadêmico Antônio Martins Filho, fundador de quase todas as universidades sediadas em nosso Estado, esteja a trabalhar com afinco no projeto deste livro condensante.

Páginas esparsas foram procuradas, copiadas e fraternalmente cedidas a mim por Marly Vasconcelos, Regina Fiúza e Murilo Martins, sem as quais não haveria como cumprir o preceito de louvor ao acadêmico que antecedeu pelo que se estreia. Estou certa de que muitas e esmeradas palavras nos foram legadas por Dr. Newton. Por isso, desculpo-me se tão pouco lhes houver a falar neste elogio póstumo a um dos mais cultos homens que o Ceará gerou, neste século que se finda.

De Instantâneos, transcrevo a quinta passagem: Eu não sabia a razão de minha tristeza, em dia de festa! / Dispensei os analistas seguindo uma advertência de Marañon: o que a natureza levou para o subconsciente, de lá não se deve retirar... / Mas, como a literatura é a mostra da vida, foi em As Farpas de Ramalho Ortigão que encontrei a chave do mistério. / Diz ele: No meu pobre coração quantos lutos sobrepostos, quantas saudades acumuladas! / E o poeta Barros Pinho remata o poema A Noite de Natal, com estes versos: / Os mortos são radicais / Só sabem viver com os vivos. / Por isso é que sinto tanta saudade nos dias de festa!

Na verdade, nosso homenageado era um humanista que raro olvidava a formação médica, ainda que numa simples passagem, como neste exemplo extraído do discurso de agradecimento pronunciado quando da outorga de Sócio Honorário na solenidade comemorativa do 81º aniversário da Academia Cearense de Letras : É que estamos na época dos obsoletismos programados; do supérfluo tomando o lugar do essencial; época em que se transplantam corações negros para corpos brancos; mas não se consegue implantar a cordialidade das raças.

No opúsculo Molière publicado a partir de palestra proferida na Associação Cultural Franco-Brasileira do Ceará em setembro de 1973, o conferencista inicia sua fala pela afirmação de que nada erudito dele se esperasse porque tão somente comentaria impressões de leitura, e em alusão direta a Molière, acrescenta que ... sou a partir de agora, mais uma de suas personagens, ridícula como todas, representando o papel de literato à força, mas tal não poderia ocorrer pois que seu juízo crítico revelava o intelectual arguto, senão observem-se as passagens cotejadas, aqui e ali ao longo de sua preleção: ...O teatro moleriano é predominantemente ação...o acento tônico da obra de Molière está nos tipos que levou à cena, nos seus hábitos e costumes, fraquezas e virtudes que possuíam, expondo-os sem artifícios, sem apelo ao caricatural, só para mostrar o quadro da sociedade em que viveu, da sociedade na qual sobrevivemos... soube divertir o Rei e satisfazer ao Povo, sem trair a sua arte, sem distorcer a comédia que a humanidade representa para si mesma. Molière resistiu ao mais severo e imparcial dos juizes: o gosto do público através dos tempos.

Na impossibilidade de comentar convosco tudo quanto Dr. Newton escreveu e que foi-me dado coletar, registro aqui alguns títulos publicados, por via de regra, em periódicos: Vigarices; Ciência Desumanizada; Fé na Ciência; O dever dos intelectuais; Confraternização da classe médica; Um Médico Vê o Homem ; Ainda as crianças; Mea Culpa; Lamentações de um autodidata; O discurso que não foi perfeito; Queremos a Universidade do Ceará; A Medicina Moderna, afogada em Ciência e Tecnologia, perde humanidade e esquece o doente; Esperança; Hospital fecha... e o Diretor não sai...; Como é, sai ou não sai o Diretor?; Uma biblioteca pública para Fortaleza; Buracos, buracos e mais buraco; Ânsia por ter um líder; Londres; A falência do curso secundário; A função do professor; A cultura geral do médico; Dois equívocos; Campanha da Boa Vontade; Uma mensagem esquecida; Mais de 52.000 mulheres e Conversa fiada.

Recolhi, também, algumas aulas e conferências médicas, mesmo quanto não houvesse o menor propósito de comentá-las, apenas consignar por escrito parte da obra de cunho científico : Clínica Propedêutica Cirúrgica; A Cirurgia Pediátrica; Apontamentos para a História da Cirurgia Pediátrica no Ceará e Ascaridíase Biliar.

Guardei, por considerá-las de muito sábia observação, um bom número de citações extraídas de Ciência e Literatura, aula inaugural do Curso de Aperfeiçoamento em Análise e Interpretação Literária, promovido pelo Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, e, por tão valorosas as considerações tecidas por Dr. Newton Gonçalves, encerrarei com elas a louvação que por mim lhe é devida. Observe-se a lição: ... as ciências e as humanidades devem andar de braços dados, para proporcionarem ao homem-indivíduo a cultura total imprescindível à sua missão civilizadora....Literatura e Ciência, ambas se comunicam pela linguagem. A diferença está em que a literatura purifica a linguagem para revelar os estados íntimos do espírito,... A ciência usa uma linguagem de finalidade e de utilidade, expurgada de imagens, perseguindo a precisão dos conceitos...Entre o feitio científico e o dom da expressão artística por meio da palavra não há incompatibilidade: um se prende à necessidade lógica e externa ao espírito que pesquisa e descobre; o outro seria o jogo livre da imaginação...Não há receitas para criação literária...A criação literária transcende a verdade científica e a beleza da forma é, não raro, todo o seu conteúdo... Cientistas e literatos, embora por caminhos e métodos diferentes, ambos procuram interpretar o homem e o seu universo.

Senhores Acadêmicos: chegou o momento do presente, do presente que só passa a ser verdade para mim, nesta sessão acadêmica, quando agradecer a Deus e aos seres de boa vontade que estiveram à volta de mim, em qualquer época da vida e que aqui estão personificados em cada partícula do meu sentir. Haveria acaso o presente, uma noite tão solene onde encontro-me no centro do olhar de tantos eruditos, se tantos não houvessem me guiado, ensinado, questionado, moldado o caráter, orientado os estudos, apontado os erros, ouvido e conversado nos momentos de dúvida, sugerido alternativas nas crises e apontado o novo?

Não, Senhoras e Senhores, muito pouco seria eu sem os outros que, por vezes, sem mesmo se haverem apercebido, contribuíram para esta honraria de passar a integrar a respeitável Academia Cearense de Letras, ocupando a cadeira de número 16.

Todavia, alguns são partícipes em escala tão maior do presente agradecido, nesta minha introdução no círculo dos imortais, do lugar de honra que a partir de agora ocuparei que, por tal modo, a conquista talvez lhes seja mais devida que a mim.

Vejo-me a argila que meus Avós, meu Pai, meus Tios, meus Irmãos e Primos, meus Sogros, sobretudo meus Filhos Daniela e Leonardo, meus Mestres e meus Alunos, todos integrados no mesmo processo, esculpiram-me dando a feição e o feitio com que aqui me acho em vossa presença. Adorados meus, como vos sou grata !

Para sempre, minha gratidão ao Acadêmico da cadeira 26 deste Sodalício, Lúcio Gonçalo de Alcântara, um médico e homem público do qual tantos do seu Estado natal se orgulham e que, por muitos anos, tem sido o meu marido. Lúcio foi meu leitor desde os primeiros e tímidos escritos e, por neles achar algum mérito, não apenas passou a incentivar-me como a cobrar, sempre o melhor, enquanto estabelecia um círculo de isolamento protetor em minha volta para que sua vida pública interferisse o quanto menos com os propósitos literários e por tal modo, as idéias que viessem-me a surgir encontrassem oportunidade de transformarem-se em palavras, em alumbramento sobre o papel branco.

Nosso caminhar não foi suave, mas ao estimular-me, Lúcio e eu progredimos juntos, cobramo-nos posicionamentos, fortalecemo-nos quando a desilusão invadia o outro e hoje aqui estamos, mais uma vez unidos sem rivalizar. Que Deus o proteja Lúcio, ainda porque antes da imortalidade que neste momento tanto me eleva no universo da cultura, já havíamos juntos ganho a imortalidade humana pela existência de Daniela e Leonardo, nosso sangue pulsando além de nós.

Aparentar-se pelo bem-querer, afinidade e devoção é centelha existencial divina. Marly Vasconcelos é a irmã-poetisa que sempre possuiu o dom de revelar-me o melhor que há em tudo que escrevo. Ah, como quisera estar à altura da minha gratidão para saber manifestar com mestria a emoção genuína de que fui tomada por sua erudita saudação, tão bela e generosa, no momento em que sou acolhida pela vossa nobreza, senhoras e senhores acadêmicos.

Que os anjos brancos garrettianos perenizem a graça de suas asas brancas, doce e suave Marly, Marly Vasconcelos, Marly poetisa maior, Marly acadêmica, Marly amica mia e non della ventura (adaptação das palavras de Beatriz a Virgílio ao referir-se a Dante em Inferno).

O desejo de ver-me grande e sábia como eles o são, deu ocasião a que alguns acadêmicos sugerissem a ousadia de candidatar-me a uma cadeira vaga nesta centenária Casa. O meu mestre, poeta dos maiores do nosso tempo e, grande amigo, Artur Eduardo Benevides chamou a si a idéia primeira, que ao encontrar o respaldo do tão ilustre Cláudio Martins, da respeitada e erudita Noemi Elisa Aderaldo, da lírica Marly Vasconcelos, do romancista João Clímaco Bezerra, tomou a forma de um convite formulado pelo amigo de notável ilustração Dimas Macêdo, para que me inscrevesse, concorrendo à vaga aberta para a cadeira de número 16 da Academia Cearense de Letras. Bem haja a vossa benquerença, amigos!

Lembro nesta cerimônia de tanta pompa voltada para mim, os três amigos que ganhei de uma só vez e que me correm nas veias, Cláudio, Glícia e Morais, pois que por amá-los tanto não há como deles jamais não vir a depender porquanto nos formamos no universo da verdade, do silêncio e da dor.

Il est de la reconnaissance comme la foi aux engagements, il est de l’amitié comme le respect à nous-même. À chacune de ces personnes, si différemment posicionnées chez moi, Mlle. Sulivant, Bernard Loubié, Lena Ommundsen Pessoa et les Enfants Terribles, je remercie le voisinage de culture, d’espoir, de croyance et d’amitié que vous avez eu auprès de moi. Dieu merci !
Senhores Acadêmicos, a vós que haveis sufragado meu valor literário e o ser intelectual que sou, agradeço o reconhecimento, o estímulo e a honraria que atribuíram-me ao quererem que seja uma de vós. O que generosamente haveis feito por mim, agradecimentos não tenho como transmiti-los, senão que pelo prazer de juntos virmos a usufruir, por longo tempo, os sonhos e os encantos que a Literatura nos concede.

A todos presentes a esta sessão, amigos que convidei pensando em cada um, sabendo que meu regozijo por receber tal honraria seria vosso também, agradeço a Deus o benefício de haver-vos colocado ao meu alcance para que, usufruindo de vossa amizade, entenda e possa sentir o quanto é prazerosa a empatia, o quanto é doce um olhar marejado em nossa intenção e o quanto é magnificente ter lealdade na alma.

Muito, muito obrigada !


# posted by carlos : 16.10.03
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ISTAMBUL
tem mais vida que dez cidades da Europa juntas. Parte dessa “vida” vem da pobreza, parte vem da história, e parte vem do futuro da Turquia. Não sei que parte vencerá, mas que há uma força imensa nestas ruas de multidões, de gritos, de demografia a pleno vapor, de caos, há.
Posted 23:24 by JPP / 15.10.03
ABRUPTO


# posted by carlos : 16.10.03
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Começar de novo
...porcaria de Tempo: tens tudo concentrado num chip: contactos, emoções, afectos, mensagens...
sou, agora, um barco sem bússola: e se rebenta uma tempestade...?...
asas do desejo

# posted by carlos : 16.10.03
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Rua Veiga Simões
Alberto da Veiga Simões, nasceu em Arganil, em 1888, falecendo, numa clínica, em França, onde então residia, em 1954; passou uma boa parte da existência fora do País, que a tanto era obrigado pela carreira diplomática que escolheu, depois de um período de intenso envolvimento na vida política nacional.

Nesta rua, começaremos por lembrar que no primeiro andar do primeiro prédio que se nos depara à esquerda nasceu, em 1911, Albano Nogueira, o qual, ainda estudante de Direito, em Coimbra, já se distinguia como homem de Letras, muito ligado ao "Grupo da Presença". Não obstante ter enveredado cedo pela vida diplomática - tendo chegado a embaixador -, nunca poria completamente de parte a actividade literária, domínio em que grangeou estatuto de crítico consagrado.

O actual aspecto da casa (propriedade do embaixador e seus sobrinhos) é resultado das sucessivas transformações que sofreu o antigo solar duma família de apelido Pimentel, solar que, (segundo Regina Anacleto) ainda existia no último quartel do século XIX. Foi adquirido por um antepassado dos actuais proprietários, que iniciou o processo dessas transformações, as quais acabariam por descaracterizar o aspecto do velho edifício.

Logo a seguir, ainda do lado esquerdo, temos o começo da antiga Rua do Cotovelo, hoje Rua de A Comarca de Arganil, na qual este conhecido periódico teve as primeiras instalações.

A historiadora Regina Anacleto nasceu no prédio que vem depois. Do outro lado, surge-nos, com o n.º 19, a casa onde viveu Guilherme Ferreira Rodrigues, que fez parte, como enfermeiro, da equipa chefiada pelo dr. Fernando Vale, que já referimos atrás. A população da vila ainda hoje recorda, com saudade, o homem bom e o enfermeiro competente e deligente que Guilherme Ferreira Rodrigues foi.

No extremo da rua, n.º1 e 3, fazendo esquina com a Rua Jornal de Arganil, podemos ver o edifício onde este outro semanário arganilense teve as suas primeiras instalações.
(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)



# posted by carlos : 16.10.03
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Quarta-feira, Outubro 15, 2003
Fabulosa antipatia!
Conta o pesquisador Francisco De Marchi, em Curiosas notícias da Santos de 1894, (publicada no jornal A Tribuna de Santos em 26/7/1985) que no ano de 1894 - em que foi fundada a Tribuna do Povo, antecessora daquele jornal - registraram-se episódios de alta relevância na cidade, que recém-saía de uma grande epidemia de febre amarela, que matara 4.510 pessoas nos três anos anteriores, o equivalente a 15% da população da cidade, então inferior a 30 mil pessoas. Entre os fatos curiosos, relata o pesquisador:


Antipatia providencial
Salvador Xeres foi um comerciante esperto, espécie de Midas, doido por transformar tudo em ouro. Anotem como resolveu tornar rendosa a antipatia que lhe votara um desafeto, expressa por declaração inserida em Secção Especial, de O Diário de Santos:

"João Zemonich entendeu de amolar minha paciência publicando um protesto que não tem valor algum. Pela minha parte retribuo ao sr. Zemonich com o seguinte contra-protesto: Em primeiro lugar vou requerer indenização por perdas e danos que avalio em 1:000$000 (mil contos de réis); em 2º, pelo abalo de meu crédito de negociante, velho e conceituado nesta Praça, dois mil contos; em 3º, vou propor ação criminal pelas injúrias contra mim assacadas, pedindo também à autoridade a deportação de Zemonich, como elemento perturbador do comércio pacífico de Santos; em 4º lugar, vou mandar rezar três missas para que Deus ilumine a Zemonich, restituindo-lhe a antiga simpatia pela minha pessoa, bem entendido, depois de ter ganho todas as demandas que pretendo propor etc.".

Observe-se que a "pedida" de Zeres ia alto, até os cornos da Lua! Para simples ilustração do que ele iria exigir, é suficiente referirmos que a receita do Município - orçada para 1895 - não superava a casa dos mil e quatrocentos contos de réis!











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Largo conselheiro Neves e Sousa
O Conselheiro António das Neves Oliveira e Sousa, que nasceu em 1844 e cujo o nome foi escolhido para designar oficialmente um dos sítios mais aprazíveis e mais populares de Arganil - o Largo da Fonte de Amandos -, era natural de Coja, tendo sido magistrado de prestígio, social e político, circunstância que o forçou a interromper a carreira profissional, em consequência de ter sido nomeado (por duas vezes) governador civil do distrito de Coimbra e ainda reitor da Universidade. Encontramo-nos, por conseguinte, na Fonte de Amandos, apreciado logradouro público arganilense, sobretudo na estação calmosa, pela acolhedora sombra que proporcionam as suas árvores, quase seculares.

Aqui podemos ver, em frente e à nossa esquerda, o célebre "Coreto da Música", construído em 1912, a cuja história já nos referimos. Ademais do interesse prático da função a que se destina, nas suas linhas simples e elegantes, constitui uma bela peça arquitectónica que ajuda a dar carácter a este local da vila.

No meio do recinto podemos ver o busto de uma das personalidades mais ricas e mais amigas de Arganil: o dr. Alberto da Veiga Simões, que foi advogado, político de nomeada, comentador político, escritor, professor liceal, ministro, diplomata de carreira e historiador de méritos reconhecidos. O busto é um trabalho de um afamado escultor português - Aureliano Lima -, que passou uma parte da sua vida em Arganil. No pedestal do monumento figura um pensamento de Miguel Torga acerca de Veiga Simões que nos diz, de forma realmente lapidar, as condições tormentosas em que este viveu parte da existência, vítima do ódio político:
"Um dos mais ilustres filhos de Arganil que os esbirros dum déspota perseguiram até à cova".

Se bem que já fique fora do "Centro Histórico", atendendo a que estamos próximo, não deixaremos de fazer uma breve referência ao Teatro Alves Coelho cujo edifício, inaugurado em 1954, encerra alguns motivos de interesse: o projecto é do arquitecto Mário de Oliveira; a fachada ostenta um interessante friso em relevo, alusivo à Dança, à Música e ao Teatro, da autoria de Aureliano Lima; e o interior está enriquecido com pinturas de Guilherme Filipe - que era natural do Fajão - e com estas palavras de Miguel Torga, que sintetizam de forma muito bela as condições em que o imóvel nasceu:

"Erguido por teimosos e cabeçudos beirões, da mesma maneira e com o mesmo espírito com que antigamente se construíram as catedrais: cada um trazendo a sua pedra". A Fonte de Amandos está nesta altura (2001) a ser objecto de profunda alteração.
(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)



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Terça-feira, Outubro 14, 2003
Jardim do hospital
Entretanto façamos uma pequena incursão no chamado Jardim do Hospital, agradável recanto de lazer, aqui ao lado, cujo acesso é feito por esta rua. Nasceu do aproveitamento do antigo jardim privativo do solar da Condessa (de que atrás falamos) que a Santa Casa, sua proprietária, franqueou à fruição futura dos moradores da vila, e dos seus visitantes, provavelmente aquando da inauguração oficial do Hospital, em 1886. Posteriormente, em 1924, o Jardim iria beneficiar de importantes melhorias, ao gosto de um conhecido paisagista do Porto, Jacinto de Matos, a fim de receber condignamente o busto da Condessa das Canas - obra do escultor conimbricense João Machado - que podemos ver ao centro. A inauguração deste busto coroou as cerimónias de uma grande manifestação pública que a Santa Casa promoveu, nesse ano, em honra da memória da grande benemérita de Arganil. O Jardim do Hospital é um recinto com excelentes condições para a realização de festejos ao ar livre - o que, de resto várias vezes tem acontecido ao longo da sua existência.

Sempre em domínios do antigo legado da Condessa, podemos ver daqui, na continuação do Jardim, o Parque Infantil Eng. António Silvestre Almeida Leitão. O Eng. António Leitão era um estimável arganilense, muito ligado a Vila Cova do Alva (pois era filho do dr. José Antunes Leitão, que fora "subdelegado de saúde" nesta vila e dali era natural). Faleceu em 1958, muito novo ainda, vítima de desastre de automóvel em que seguia com sua mãe, em condições particularmente trágicas para esta: assistiu à morte do filho por afogamento num açude do Ceira, onde o carro fora cair após se ter despistado, - sem lhe poder acudir! Querendo perpetuar a memória do filho, subsidiou a construção deste parque - a que a Santa Casa deu o nome do malogrado arganilense.

Ao Parque Infantil segue-se a Mata do Hospital - um parque de lazer que constitui uma verdadeira preciosidade do património cultural de Arganil.
(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)



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Segunda-feira, Outubro 13, 2003
Museu Etnográfico de Arganil
"Conhece as minhas origens, sabe que durante
muitos anos não precisei de calçadeira, pela
simples razão de que não tinha calçado."
Tempos Difíceis / Charles Dickens

"Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrívelmente profundo, é suave, devastador."
Herberto Helder / Poesia Toda

A criação do Museu Etnográfico de Arganil obedeceu a um objectivo principal: salvar do esquecimento e do pó, para benefício das gerações futuras, as raízes culturais desta região, os hábitos e os objectos que formam a memória colectiva dos povos da Beira Serra e, em especial, da Serra do Açor. Só assim, afirmando nos tempos que hão-de vir uma identidade que já vem de longe, um passado com tradições de que todos nos orgulhamos, será possível construir um futuro com memória e, simultaneamente, reforçar a nossa diferença e especificidade neste Mundo em acelerada globalização.

Inaugurado a 6 de Julho de 1997, depois de um exaustivo trabalho de campo que levou à recolha de cerca de 90% das peças do seu actual espólio, o Museu Etnográfico de Arganil só foi possível devido à colaboração estreita e empenhada das populações serranas. Ele constitui por isso uma justa homenagem às gentes simples que, desde tempos imemoriais, habitam as pequenas aldeias perdidas na Serra do Açor. A reconstituição dos seus hábitos e tradições, da sua cultura serrana, da sua vida dura, difícil, por vezes miserável, revela-nos homens e mulheres de grande honestidade e dignidade, pessoas de carácter sóbrio e comportamento austero, habituadas a sobreviver a tempos de muita escassez.

A vida despojada destes povos, em estreita relação com a natureza, traduzia-se em objectos que, sendo normalmente simples e rústicos, não deixavam de possuir intensa harmonia (ainda que durante longo tempo oculta pela pobreza endémica).

As últimas décadas foram de rápida desagregação social, económica e ecológica--actualmente a serra agoniza. No entanto, estamos às portas de um novo século e o futuro repousa nas nossas mãos. Talvez à serra esteja reservado, nestes tempos difíceis de mudança e de crise de identidade, um novo papel: fazer-nos olhar o passado para melhor reflectirmos sobre o futuro.

Ao completar um ano e meio de abertura ao público, o Museu Etnográfico de Arganil, encerra também, com a edição deste livro, um ciclo da sua existência--concluído o processo de instalação, há agora que proceder à consolidação do trabalho efectuado, ampliando o seu já exíguo espaço e direccionando a sua actividade para novos pólos de intervenção etnográfica. Entretanto, aqui fica, nestas páginas, o registo escrito e fotográfico de uma exposição; e com ele a memória dilacerada de um século de enormes mudanças na Serra do Açor.

De referir que os textos apresentados remetem sempre para situações passadas, mesmo quando se referem a práticas que se mantêm quase inalteradas ou a objectos que continuam a ser utilizados no momento presente. Tal opção permite sublinhar a contigência e inconsistência do funcionamento isolado das partes (a apanha da azeitona, por exemplo) num contexto de acelerada mudança global.

Janeiro de 1999


I - AS ALDEIAS

II - O CICLO DA SUBSISTÊNCIA - AGRICULTURA E CRIAÇÃO DE GADO

III - VIDA FAMILIAR

IV - SOBREVIVÊNCIA ECONÓMICA: ARTES E PROFISSÕES TRADICIONAIS

V - A AGONIA DA SERRA

VI - E AGORA?.












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Spilbergen atacou Santos em 1615
Conta Netscsher, o historiador dos holandeses no Brasil, que "Joris Van Spilbergen foi enviado em 1614 pela Companhia das Índias Ocidentais, para procurar, pelo Estreito de Magalhães, uma passagem mais curta para as Molucas, e a sua expedição compunha-se de seis navios: o Groote Maan, o Jager, e o Meeuw, pela Câmara de Amsterdam; o Eolus, pela Zeelândia, e o Morgenster, por armadores de Rotterdam e que, chegada ao Brasil, ancorou junto à Ilha Grande, e, depois, perto de Santos ou São Vicente, a fim de refrescar, pois a equipagem ia enfraquecida e enferma".


Conta ele que os portugueses deste lugares receberam os holandeses de maneira hostil, de modo que tentando o almirante relações de comércio, dadas aquelas circunstâncias, faz-se a vela de novo, para deixar aquelas inóspitas paragens; mas, antes de partir tomara uma caravela portuguesa carregada de prata, de relíquias, de cruzes e de bulas de indulgência.
"Propusera o almirante aos portugueses trocar os tripulantes e a carga do navio apresado por alguns holandeses retidos no Rio de Janeiro; mas fora em vão; eles (moradores) recusaram, dando assim uma demonstração viva do seu ódio aos holandeses, ódio tão profundo, que lhes impusera tal sacrifício de seu próprio interesse".

Isto é o que conta Netscher, mas a verdade anda bem longe de quanto ele afirmou, procurando atenuar culpas históricas dos homens de sua pátria. O histórico dessa passagem marítima acha-se feito, segundo Taunay, por um precioso, embora tosco, documento iconográfico: uma estampa de Miroie Oest et West Indical, publicada em 1621 por Jan Janez, editor de Amsterdam, cujo título vem a ser: Le portrait de Capo de St. Vincent en Brésil.

Nela se vêem as cinco naus holandesas bloqueando a barra de Santos, ao passo que a Gaivota vigia o porto de São Vicente. Assinala-se no canal o ponto extremo a que chegou o Caçador, a certa distância de uma fortaleza grande, cujo fogo os escaleres de reconhecimento não ousaram enfrentar.

As duas povoações (vilas) de Sanctus e St. Vincent têm portas, estacada, igrejas, edifícios altos, sendo a segunda maior do que a primeira. Notam-se em diferentes pontos do litoral numerosas tropas de índios e brancos armados, à espera do desembarque dos batavos.

Vêem-se ainda o incêndio do Engenho (de Jerônimo Leitão), da igreja de "S. Marie de Nague" (sic) - "Santa Maria das Naus" ou "Nossa Senhora das Naus" - e de um depósito de açúcar (trapiche do Engenho de Jerônimo Leitão), vários indivíduos em torno de uma espécie de caldeirão, uma cena de desembarque, outra de marcha em formatura, um índio balançando-se numa rede suspensa de duas palmeiras e sobre uma fogueira, e dois índios nus: "A fim de que se saiba como se vestem os brasileiros, homens e mulheres"...

Continua Taunay, de quem extraímos estas linhas: "A viagem de Spilbergen foi uma das mais felizes nos fastos navais holandeses", e em julho do mesmo ano, já nas águas do Pacífico, defrontou ele a esquadra real espanhola daqueles mares, cujo almirante era Pedro Alvarez de Pulgar e cujo general era Don Rodrigo de Mendoza, com oito grandes galeões de guerra e 2.000 homens de guarnição, derrotando-a mercê de sua grande capacidade de estrategista naval.

Por notícias documentais de Amador Bueno da Ribeira, sabe-se que, por ocasião do aparecimento de Spilbergen na costa santista, desceu ele com um corpo de paulistas e de índios, armados à sua custa, e de outros paulistas eminentes, em socorro da vila, salvando-a após rudes combates na faixa praieira auxiliado pela Fortaleza da Barra Grande ou "de Santo Amaro", e pela artilharia pesada postada na praia do Embaré, seguida a tática militar aconselhada naquelas circunstâncias.

Era Capitão-mor da Capitania, então, Paulo da Rocha Siqueira, residente em Santos, e ele com os principais da terra e mais o socorro trazido por Amador Bueno e Lourenço Castanho Taques conseguiram, ao cabo de algum tempo, a expulsão dos numerosos e aguerridos soldados e marinheiros do almirante holandês.

A narrativa desta jornada, afirma Taunay, deve-se ao escrivão da capitânia, João Cornelissen de Mayz, que a escreveu em latim, no ano de 1617, tendo-se dela extraído, imediatamente, várias edições, holandesas, francesas, inglesas e alemãs, e traz para a história de São Paulo o conhecimento do episódio interessante que procuramos esboçar. É pena que nada possamos aduzir ao relato de Mayz, porque, como já afirmou Taunay, "atas seiscentistas das Câmaras de Santos e São Vicente, é coisa que, desde séculos, não existem vestígios, e, infelizmente, na série das Atas da Câmara de São Paulo, exata e deploravelmente, verifica-se, no ano de 1615, a longa lacuna do semestre que compreende a época da estada de Joris Van Spilbergen e sua esquadra na barra de Santos.

Talvez em Portugal, no Arquivo Colonial e em outros Arquivos, exista documentação mais ampla a este e a outros respeitos, capaz de complementar e restaurar a nossa história. Mas... convencer os nossos homens públicos da necessidade dessa pesquisa, eis uma coisa difícil... Ora a História!

Foi em conseqüência desta invasão e do inestimável socorro trazido a Santos, na premência da ameaça de invasão holandesa, que Amador Bueno da Ribeira tornou-se logo depois Capitão-mor de São Vicente, com residência em Santos, a pedido de todo o povo, mas sem aceitar nenhuma remuneração, conforme sua exigência, como condição para aceitar o honroso encargo, podendo-se inscrever essa arribada dos holandeses, verificada nos primeiros dias de fevereiro de 1615, como uma das páginas agitadas dos primeiros tempos da cidade de hoje.

(*) Extraído da História de Santos, 2ª edição, Santos/SP, 1986.


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Rua d. Constança da Silveira
D. Maria Constança de Abranches Costa da Silveira (que era natural de Torrozelo) foi senhora de uma das maiores "casas" de Arganil. Faleceu, viúva, em 1902, nesta casa que aqui vemos (mais tarde conhecida por "casa do João Mota" e hoje a funcionar como residência de estudantes). A sua vida foi marcada por dois factos que lhe puseram à prova as grandes virtudes que tinha na alma: a perda trágica, no intervalo de dois dias, das duas filhas que tinha, e a prática da caridade que exerceu sempre de forma superior. Foi uma das mortes mais choradas de Arganil.
(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)


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Domingo, Outubro 12, 2003
Rua Condessa das canas
Estamos no Cimo de Vila, no ponto de ligação da Rua Professor José Lourenço Nogueira - que foi um notável mestre-escola de Arganil da segunda metade do século XIX - com a rua Condessa das Canas, esta dedicada à memória de D. Maria Isabel de Melo Freire de Bulhões, última representante de uma das linhagens mais fidalgas de Arganil.

A morte de D. Maria Isabel, em 1879, sem deixar descendência, significou um golpe decisivo no pouco que restava da velha aristocracia local. Quando o povo da sua terra soube que a Condessa havia deixado quase todos os seus bens à Santa Casa de Misericórdia - assistiu-se, por assim dizer, ao milagre maravilhoso de a ver renascer para sempre no coração agradecido dos conterrâneos... E a partir daí, os arganilenses começaram a olhar a Misericórdia como uma espécie de símbolo institucional da Condessa; dediquemos-lhe então algumas palavras, se bem que forçosamente breves.

No historial desta instituição é conveniente distinguir duas fases: antes e depois do falecimento de D. Maria Isabel. Na primeira, que durou cerca de duzentos anos (de 1674 a 1879), deve ter tido uma existência extremamente difícil, por escassez de meios, circunscrevendo-se a sua acção social, provavelmente e a bem dizer, à pia função de enterrar os mortos pobres; na segunda, porém, uma vez cumprido o "testamento", a Misericórdia iria desenvolver uma acção notabilíssima, que chegou aos nossos dias. Na verdade, ao longo de muitos anos, o povo de Arganil pôde usufruir dum invejável serviço de assistência hospitalar, em edifício próprio e com pessoal técnico privativo - prestado pelo Hospital Condessa das Canas, cujas instalações aqui vemos, no sítio onde outrora se erguia o solar da testadora -, sem prejuízo do fornecimento diário duma refeição aos pobres mais necessitados da vila, e de, a partir de certa data, manter um Asilo para idosos em funcionamento. Há anos, porém, como sabemos, o Hospital foi integrado no Serviço Nacional de Saúde. Entretanto a Misericórdia, para mais dispondo de novas e avultadas dádivas que foi recebendo, entre outras realizações, construiu e pôs a funcionar, em 1988, o Lar de Terceira Idade e Centro de Dia Comendador Cruz Pereira - um benemérito da terra -, e em 92, o complexo Desportivo José Miguel Coimbra - um jovem que perdeu a vida na flor da mocidade, deixando a vila mergulhada em grande consternação -, com piscinas e recinto para jogos diversos, cujas instalações de ambos podem ser vistas daqui (mas que ficam já fora do "centro histórico").

Aludi há pouco à boa qualidade da assistência médica que o Hospital da Misericórdia proporcionou aos moradores do concelho de Arganil ao longo de quase um século. É claro que tal nunca seria possível sem uma grande dedicação do pessoal médico e auxiliar do Hospital. E quem poderia simbolizar melhor essa dedicação que o dr. Fernando Valle (nasceu em 1900), que durante anos ali foi director? Natural é pois que os amigos deste quisessem, há anos, em 1989, perpectuar a memória da sua passagem por Arganil - mandando erigir, à entrada do "pavilhão" do hospital, o busto que temos em frente. É obra do escultor Celestino Alves André que se preocupou, sobretudo, em reproduzir os traços fisionómicos do homenageado; porém, estamos em dizer, que este melhor identificado está nas palavras que descrevem um faceta do seu carácter, e, em boa hora, foram inscritas no respectivo pedestal: são de Miguel Torga, que se refere ao amigo nestes termos:

"Nenhuma prepotência o vergou e desviou do recto caminho cívico da tolerância, da justiça e da liberdade".

Mas Miguel Torga - o médico Adolfo Rocha, como sabemos - deixou o nome ligado ao Hospital de Arganil ainda por outra forma, e em consequência do Hospital lhe ter aberto generosamente as portas em período difícil da sua carreira profissional. O otorrino jamais esqueceria este gesto, e quis recordá-lo, quando deu, por finda essa carreira, oferecendo à Misericórdia o equipamento cirúrgico do seu consultório do Largo da Portagem, em Coimbra. Atitude a que a Santa Casa soube corresponder - reconheçamo-lo -, montando com o material oferecido um pequeno museu no átrio do velho edifício do Hospital, e enriquecendo, por esta forma, com uma "peço" de valor inestimável, o património cultural da vila. É com o maior empenhamento que lhes sugiro uma visita - ainda que forçosamente breve ao "museu" para recordarmos essa ligação a Arganil do grande vulto da cultura portuguesa que Miguel Torga foi.

Ainda na Rua Condessa das Canas temos a Capela da Misericórdia, nome por que é conhecido o templo que vemos, à direita. A circunstância de ficar junto às antigas instalações do solar da Condessa pode levar a supor que terá começado por ser capela do dito solar; mas não: a sua existência deve estar ligada à fundação da Santa Casa, tendo nascido logo como Capela da Misericórdia. Só que, nessa altura, não devia passar dum pequeno templo, o qual, em 1777, iria ser objecto de reconstrução, que lhe terá dado o aspecto que hoje tem.

Na história desta capela há a nota curiosa de haver sido utilizada como instalação logística pelas forças de Welington, aquando das Invasões Francesas.

No quarteirão seguinte depara-se-nos, com o n.º15, o edifício da "Casa do Povo", o qual, aliás, começou por ser construido pela Santa Casa para asilo de velhos indigentes. Nos anos novecentos e trinta, com o edifício ainda por acabar, os "estudantes" da vila (que nesse tempo andavam quase todos em Coimbra), quando vinham passar férias à terra, organizavam bailes que chegaram a atingir certo brilho local: era no "salão do primeiro andar" que esses bailes se faziam. A entrada era então pela actual Rua Armando Nogueira de Carvalho - um arganilense que contribuiu com importantes donativos para a efectivação de vários melhoramentos da vila. Mas a Santa Casa, revendo as contas, decidiu que lhe convinha mais ceder o edifício a quem eventualmente estivesse interessado no seu aproveitamento - o que viria a acontecer à Casa do Povo -, e instalar o asilo numa parte dos baixos de Hospital, como realmente aconteceu.
(Roteiro Cultural do Centro Histórico de Arganil)


# posted by carlos : 12.10.03
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