CARA-A-CARA
Votar pelo"sim"
CONFESSO ter dificuldade em falar sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e sobre os caminhos de futuro melhor que desejamos abrir votando ”sim” no referendo de 11 de Fevereiro. Sem muito esforço consigo ver no pequeno burgo albicastrense dos anos de 1950 referências apenas esboçadas que revelam um ambiente irrespirável, carregado de obscuridades, medos e combinações sussurradas. Um ambiente social que expurga quem tenta orientar-se sob o peso de uma tremenda aflição. Um ambiente de sombras e estranhezas, o pior que pode acontecer a uma infância. Alguns leitores terão, como eu, ainda bem vivas na memória, as feridas de um tempo escuro que não permite, sequer, designar e que está em causa.A adolescência entra pelos anos de 1960 e os sinais começam a estruturar-se. Há conhecimento de situações dramáticas, de perseguições, da inflexibilidade dos juízos de quem julga sem se julgar a si próprio. Poucos anos depois, nas lutas estudantis, pensamos, na nossa ignorância, que é mais um problema para ser resolvido com a queda da ditadura. Enfim, em 1984, é aprovada uma lei que vai abrir algumas portas, quando há risco de vida ou de lesão grave da grávida, mal-formação do feto e violação da mulher. O problema, pensava, saía da opacidade e começava a ser equacionado fora das grades dos axiomas indetermináveis sobre quando é que é vida. Em qualquer dos casos de risco de vida ou risco de lesão grave da grávida, mal-formação do feto e violação da mulher, é de vida que se fala no sentido assumido pelos defensores do “não”. E é um sinal de grande incoerência do “não”. A partir de 1984, tudo indicava que a evolução natural seria para a consideração de outras situações dramáticas que poderiam originar a IVG e, sobretudo, à verificação de que o problema não deixa de existir só porque é remetido para a clandestinidade e para a penalização. Na verdade, com lei de teor semelhante à de 1984, a sociedade espanhola aplica-a com sentido de realidade e compreensão da complexidade das situações que determinam a IVG e assume a liberdade de a aplicar com consciência da liberdade. Espanha passará a resolver muitos dos problemas das portuguesas que no país vizinho podem socorrer-se, como, já antes, muito menos o faziam noutros países. Todos sabemos que, em muitos casos, demasiados casos, o peso desaba sobre a esfera de decisão solitária da mulher. No caso em que não há casal, seja na menoridade da mulher, seja noutras situações e são tantas e muitas vezes tão complexas, que ninguém pode pensar que as pode resumir. É a gravidez na menoridade, a gravidez resultante de relações incestuosas, a gravidez na doença, a gravidez num quadro de insustentabilidade familiar ou de ausência de horizontes familiares, a gravidez em idade avançada, a gravidez sem condições, a gravidez do acaso, a gravidez sem amor. São numerosíssimas as situações surgidas da complexidade dos caminhos cruzados da vida. Se a formulação da questão se pudesse fazer entre uma opção pela vida e outra contra a vida, a equação do problema seria facilmente enunciável dos pontos de vista científico, social e moral. A IVG por violação seria contra a vida. A IVG por mal-formação do feto seria contra a vida. A opção entre a vida do feto e o risco de morte ou de lesão grave da mãe não teria sentido pois também seria contra a vida. Esta incoerência é antiga e tem evoluído com a evolução social. As verdades absolutas foram deixando de ser absolutas até deixarem de ser verdades e serem substituídas por formas de viver mais consentâneas com a complexidade do mundo e da vida. Teremos de melhorar em muitos aspectos, do planeamento familiar à prevenção da saúde, para chegarmos aonde é necessário que cheguemos: à gravidez desejada; portanto, à ínfima expressão do recurso à IVG. Teremos de trabalhar muito para o conseguir e creio que o “sim” abrirá a primeira porta para que as políticas sejam mais activas no apoio nos cuidados de saúde, de planeamento familiar e aumento da natalidade. Mas, o “não” aceita que tudo continue como está. Quer que fechemos os olhos. Quer que a IVG continue clandestina, como se não existisse, mas penalizada pela lei quando o acaso judiciário assim o determinar e, acima de tudo, não a quer em estabelecimento de saúde. A evolução da consciência social sobre o assunto é tão marcada que os defensores do “não” já aceitam penalizar sem penalizar, pois foram perdendo o direito moral de instituir uma pena. Isto é, são já raros os casos em que quem diz “não” assume a coerência de aplicar a tramitação legal decorrente do que diz defender. Em suma, quer que a não-despenalização resolva o que nunca resolveu nem resolverá. Mas, o pior está na condenação à ausência de condições clínicas ou ao recurso ao estrangeiro para resolução de um problema que é nosso. As incoerências são insustentáveis.A campanha do “não” é do pior da política que se faz no nosso país. É a demagogia, o terrorismo nas palavras e nas imagens, a distorção da realidade, a visão a preto e branco de um mundo que é matizado, cheio de dores e indecisões, de becos e prisões. E é também um mundo necessitado de verdade, liberdade, conhecimento, maturidade. Terei de ignorar demasiadas imagens e palavras que poluem o ambiente desta campanha. O entendimento que temos hoje é completamente diferente do da longuíssima escuridão medieval cujos contextos vivi na infância e na adolescência. A concepção que temos hoje da maternidade não é a que tínhamos quando pensávamos que era o Sol que girava à volta da Terra. Responder “sim” não é um incentivo à prática da IVG. Prevejo e desejo que seja o início de um caminho mais sólido para que o recurso à IVG seja reduzido à mais ínfima expressão.
Manuel Costa Alves - Meteorologista
Jornal do Fundão - 01 de Fevereiro de 2007 - edição on-line paga pp 11
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