“Se um dia disserem que o seu trabalho não é de um profissional, lembre-se: A Arca de Noé foi construída por amadores; profissionais construíram o Titanic…“
domingo, 30 de abril de 2006
sou mais um português à procura de coisa melhor
...Como as “Gentes que distantes a sonhar na ponte do salário / ardem em chamas” (Lemos: 1985), Fernando Lemos, no período em que realizou as fotografias da Exposição da Casa Jalco, partiu da simplicidade e do sonho - este, imaginação e desejo - para compensar as faltas materiais de então. Assim, em “Saudades”:
Eu sonho dormir com o poder do gesto
aproveitando esta hipótese pequeníssima
de me quebrar em memórias tuas
mais que o conhecimento que tenho da saudade (Lemos: 1985)
Certamente, “o poder do gesto”, Fernando Lemos o tem em seu imaginário estético, seja literário, seja plástico. Segundo Jorge de Sena, “seria um simplismo ver [na] recorrência” da palavra gesto nos textos de Fernando Lemos a “denúncia de quanto são escritos por um homem que, pintor e desenhista, não pode deixar de ter o ‘gesto’ como essencial função”, pois “pintar ou desenhar não pressupõe mais gestos do que escrever.” (Sena: 1985). Todavia, em português, a palavra gesto é bissêmica: seu significado mais comum é “movimento do corpo, especialmente da cabeça e dos braços, ou para exprimir idéias ou para realçar a expressão”, e de fato é redutor perceber, na presença do significante gesto na poesia de Fernando Lemos, apenas a interferência da atividade de pintor, que tem nos “gestos” um registro patente. O outro significado da palavra gesto é restrito, no século XX, a um pequeno número de especialistas, mas corrente, por exemplo, na poesia de Camões: “semblante” (Ferreira: 1972) ou, aproximadamente, “rosto”. Desta forma, o objeto do “sonho” será o “gesto” em “Saudades”, e “gesto” será, possivelmente, “semblante” no poema “Outra apresentação em forma de conversa (do catálogo de uma Exposição)”:
Há em todas as coisas expectativas
O gesto traz sempre no rosto
o seu significado (Lemos: 1985)
Apenas um gesto (movimento) pressupõe a fotografia, mas a repetição deste gesto pelo “fotógrafo-poeta” Fernando Lemos registrou a “expectativa” de inúmeros gestos (semblantes), em retratos que adquiriram autonomia estética através do que “neles era achado essencial”. Muitos destes, como já foi dito, tiveram parte na exposição de 1952, em cujo catálogo António Pedro apresentava o então jovem surrealista, nos seguintes termos:
Quanto a querer dizer coisas que não têm nada que ver com a pintura, o Fernando Lemos é felizmente daquela espécie de gente que é capacíssima de as coisas dizer quando não está a pintar. Pintando, com a máquina fotográfica ou com os pincéis, age como quem ama devagar: descobrindo aos milímetros e enternecendo-se a cada descoberta - desmultiplicando o enlevo do pormenor até ao esquecimento de tudo. (Pedro: 1994)
NOTA
Além de muitas referências à imagem de um modo geral, explícitas ou implícitas nos versos de Fernando Lemos, sua poesia reunida em 1985 é encerrada por uma seção sugestivamente intitulada “Poemagens”. “Desígnio”, que a antecede imediatamente, é uma série de sete poemas, seis deles acompanhados por desenhos, em que a relação entre o objeto plástico e o literário é patente e definitiva (Lemos: 1994). Todavia, este trabalho focaliza exclusivamente a produção fotográfica e poética do primeiro movimento da trajetória de Fernando Lemos: as fotografias realizadas entre 1949 e 1952 e os poemas incluídos até a segunda edição de Teclado Universal, de 1963.
Mauricio Matos (Brasil, 1973). Jornalista, poeta e ensaísta. Tem textos publicados no Brasil e em Portugal sobre poetas de língua portuguesa, tais como Fernando Lemos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Camões, Jorge de Sena, etc. Como editor, exerceu o cargo de Assistente Editorial na Fundação Nacional de Arte - FUNARTE, entre 2000 e 2001.
Agulha
Eu sonho dormir com o poder do gesto
aproveitando esta hipótese pequeníssima
de me quebrar em memórias tuas
mais que o conhecimento que tenho da saudade (Lemos: 1985)
Certamente, “o poder do gesto”, Fernando Lemos o tem em seu imaginário estético, seja literário, seja plástico. Segundo Jorge de Sena, “seria um simplismo ver [na] recorrência” da palavra gesto nos textos de Fernando Lemos a “denúncia de quanto são escritos por um homem que, pintor e desenhista, não pode deixar de ter o ‘gesto’ como essencial função”, pois “pintar ou desenhar não pressupõe mais gestos do que escrever.” (Sena: 1985). Todavia, em português, a palavra gesto é bissêmica: seu significado mais comum é “movimento do corpo, especialmente da cabeça e dos braços, ou para exprimir idéias ou para realçar a expressão”, e de fato é redutor perceber, na presença do significante gesto na poesia de Fernando Lemos, apenas a interferência da atividade de pintor, que tem nos “gestos” um registro patente. O outro significado da palavra gesto é restrito, no século XX, a um pequeno número de especialistas, mas corrente, por exemplo, na poesia de Camões: “semblante” (Ferreira: 1972) ou, aproximadamente, “rosto”. Desta forma, o objeto do “sonho” será o “gesto” em “Saudades”, e “gesto” será, possivelmente, “semblante” no poema “Outra apresentação em forma de conversa (do catálogo de uma Exposição)”:
Há em todas as coisas expectativas
O gesto traz sempre no rosto
o seu significado (Lemos: 1985)
Apenas um gesto (movimento) pressupõe a fotografia, mas a repetição deste gesto pelo “fotógrafo-poeta” Fernando Lemos registrou a “expectativa” de inúmeros gestos (semblantes), em retratos que adquiriram autonomia estética através do que “neles era achado essencial”. Muitos destes, como já foi dito, tiveram parte na exposição de 1952, em cujo catálogo António Pedro apresentava o então jovem surrealista, nos seguintes termos:
Quanto a querer dizer coisas que não têm nada que ver com a pintura, o Fernando Lemos é felizmente daquela espécie de gente que é capacíssima de as coisas dizer quando não está a pintar. Pintando, com a máquina fotográfica ou com os pincéis, age como quem ama devagar: descobrindo aos milímetros e enternecendo-se a cada descoberta - desmultiplicando o enlevo do pormenor até ao esquecimento de tudo. (Pedro: 1994)
NOTA
Além de muitas referências à imagem de um modo geral, explícitas ou implícitas nos versos de Fernando Lemos, sua poesia reunida em 1985 é encerrada por uma seção sugestivamente intitulada “Poemagens”. “Desígnio”, que a antecede imediatamente, é uma série de sete poemas, seis deles acompanhados por desenhos, em que a relação entre o objeto plástico e o literário é patente e definitiva (Lemos: 1994). Todavia, este trabalho focaliza exclusivamente a produção fotográfica e poética do primeiro movimento da trajetória de Fernando Lemos: as fotografias realizadas entre 1949 e 1952 e os poemas incluídos até a segunda edição de Teclado Universal, de 1963.
Mauricio Matos (Brasil, 1973). Jornalista, poeta e ensaísta. Tem textos publicados no Brasil e em Portugal sobre poetas de língua portuguesa, tais como Fernando Lemos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Camões, Jorge de Sena, etc. Como editor, exerceu o cargo de Assistente Editorial na Fundação Nacional de Arte - FUNARTE, entre 2000 e 2001.
Agulha
sábado, 29 de abril de 2006
Norman Foster
"Não nos propomos a marcar recordes, mas queremos criar uma orgânica estrutura arquitetônica", disse Luzhkov ao aprovar este projeto e recusar outro, de um arranha-céu de um quilômetro de altura, segundo a agência "Interfax".
Não Posso Adiar O Coração
Os actores Paulo Moura Lopes, Gina Santos, João Meireles, Américo Silva, Carla Galvão, Glicínia Quartin, Sylvie Rocha, Teresa Sobral, José Airosa, Isabel Muñoz Cardoso, Rui Rebelo, Jorge Silva Melo , Joana Bárcia , Miguel Borges, Pedro Carraca, António Simão, António Filipe leram poesias de Armando da Silva Carvalho, Ruy Belo, Manuel da Fonseca, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Carlos de Oliveira, Mário Cesariny, Gastão Cruz, Sophia de Mello Breyner, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Velho da Costa, Natália Correia, Jorge de Sena, Luíza Neto Jorge, Luís Miguel Nava, Eugénio de Andrade, Mário Dionísio e António Ramos Rosa, numa selecção organizada por Manuel Gusmão.
O coral Phydellius interpretou canções de Lopes Graça (a partir de poesias de Soares de Passos, José Gomes Ferreira e Raul de Carvalho), tradicionais e de E. Carrapatoso. E o ensemble Amadeus música de Vivaldi, Mozart e José Afonso.
O recital realizou-se na Sala do Senado, no dia 29 de Abril de 2004
A saga de José
José Cortes, que é natural de Janeiro de Cima, Fundão, é um padre que fez da sua missão um compromisso solidário e comprometido com o seu tempo. Missionário do Verbo Divino, foi para o Brasil onde a sua vida é uma saga notável de coragem em defesa de comunidades locais e contra os poderosos interesses económicos...
QUANDO escutamos a palavra Amazónia, vem-nos logo à imaginação o mundo exuberante de água e mata virgem, povoado de toda a espécie de animais terrestres e aquáticos, além de um sem fim de horizontes encantados, mães de água, curupira, matinta-perera...
ESTA multinacional alicia agricultores do sul e centro oeste com grandes somas de dinheiro para investimento. Ela financia estes agricultores que se deslocam com toda uma infra-estrutura financiada por esta multinacional, que tem um único objectivo: destruir. O processo é o seguinte:
sexta-feira, 28 de abril de 2006
"Portual não estava à venda"
António Oliveira Salazar rejeitou uma proposta dos Estados Unidos para a independência das ex-colónias portuguesas a troco de mil milhões de dólares (782 milhões de euros), porque "Portugal não estava à venda", revela um ex-responsável norte-americano no seu livro "Engaging Africa: Washington and the Fall of Portugal's Colonial Empire".
Segundo o secretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos durante a administração Clinton, Witney Schneider, o ex-presidente do Conselho rejeitou a proposta americana em 1963, durante um encontro com um enviado da Casa Branca.
O livro detalha minuciosamente, com base em documentos oficiais e entrevistas com personalidades norte-americanas e portuguesas, as relações dos Estados Unidos com Portugal e com os movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas, em particular Angola e Moçambique, desde o início dos anos 60 até à independência de Angola, em 1975.
De acordo com o autor, em 1962, o assistente do director adjunto de planeamento da CIA, Paul Sakwa, elaborou um plano denominado "Commonwealth Plan", que visava convencer as autoridades portuguesas a aceitar o que a CIA considerava ser a inevitabilidade da independência das colónias portuguesas.
O plano previa que Portugal concedesse a auto-determinação a Angola e Moçambique após um período de transição de oito anos. Enquanto isso, seria organizado um referendo nas duas colónias para se determinar que tipo de relacionamento seria mantido entre os dois territórios e Portugal após a independência.
Durante esse período, os dirigentes nacionalistas angolano Holden Roberto e moçambicano Eduardo Mondlane receberiam "o estatuto de consultores assalariados" e seriam preparados para a liderança dos novos países.
"Para ajudar Salazar a engolir a pílula amarga da descolonização, Sakwa propôs [ainda em 1962] que a NATO oferecesse a Portugal 500 milhões de dólares [391 milhões de euros] para modernizar a sua economia", escreve Schneider.
Um ano depois a proposta daquele funcionário da CIA foi ampliada pelo diplomata Chester Bowles, que duplicou a ajuda a oferecer a Portugal, propondo que os Estados Unidos concedessem mais 500 milhões de dólares durante um período de cinco anos, ou seja um total de mil milhões de dólares durante o período de transição.
Documentos oficiais mostram que Bowles argumentou que seria "um bom negócio diplomático" se os esforços norte-americanos conseguissem resolver "o feio dilema" de Portugal a um custo de cem milhões de dólares (78 milhões de euros) por ano.
O plano dos Estados Unidos esbarrou, contudo, na inflexibilidade de Salazar.
"Portugal não está a venda", foi a resposta do ditador português quando a proposta lhe foi apresentada, em Agosto de 1963 - ainda durante a administração Kennedy - pelo secretário de Estado adjunto norte-americano, George Ball.
Franco Nogueira considerou a proposta americana uma "idiotice
O autor diz ainda que o então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Franco Nogueira, considerou a proposta americana uma "idiotice", porque revelava que Washington acreditava poder determinar ou garantir acontecimentos a longo prazo.
Segundo Nogueira, o plano dos Estados Unidos seria o primeiro passo para a inevitabilidade do caos nas colónias portuguesas em África.
Um dos aspectos mais curiosos do livro é a exactidão com que a CIA e vários diplomatas norte-americanos fazem, com muitos anos de antecedência e em documentos oficiais, a previsão da derrota militar portuguesa em África e o derrube da ditadura.
"A derrota militar portuguesa é uma conclusão inevitável se se permitir que a revolta em Angola ganhe volume e continuidade", adverte o documento da CIA que acompanhava a proposta inicial elaborada por Paul Sakwa, pouco depois do começo da guerra em Angola.
Sakwa questiona-se mesmo se os Estados Unidos poderiam permitir que Portugal "cometesse suicídio, arrastando os seus amigos na mesma via".
O então embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, Burke Elbrick, considerado em Washington como um simpatizante das autoridades portuguesas, enviou um telegrama às autoridades norte-americanas em 1963 em que dizia que Portugal estava "debaixo da espada de Dâmocles", pois não era "nem suficientemente grande nem suficientemente rico" para fazer frente a uma guerra de guerrilha em três frentes.
As guerras em África poderiam significar "o fim do império lusitano" e do regime de Salazar, escreveu ainda o diplomata, advertindo que o fim do regime poderia resultar na subida ao poder de um Governo "consideravelmente mais esquerdista ou neutral".
Em 1964 - dez anos antes da revolução do 25 de Abril -, a CIA advertiu que as guerras em África levariam ao aumento do descontentamento interno e que esse "aumento do descontentamento poderá convencer os militares da necessidade de substituírem Salazar".
Nesse mesmo ano, o Conselho de Segurança Nacional advertiu o Presidente Lyndon B. Johnson - que sucedeu a John F. Kennedy - de que as perspectivas de Portugal em África eram péssimas.
"Já não se trata de uma questão de saber se Angola se tornará independente ou não, pois a única questão é saber quando e como, tal como aconteceu na Argélia. Do mesmo modo, é uma certeza que quanto mais a luta durar, mais violenta, racista e infiltrada pelos comunistas se tornará, mais grave será a crise final a que os Estados Unidos terão de fazer face e mais caótica, radical e anti-ocidental será uma Angola independente", diz o documento.
Durante os anos 60, e face a estes avisos, muitos funcionários norte-americanos deram conta em documentos do seu desespero face à inflexibilidade do Governo de Salazar em mudar a política colonial.
Paul Sakwa, o funcionário da CIA que elaborou o "Commonwealth Plan", desesperado com a inflexibilidade de Salazar, terá chegado, ironicamente, a manifestar dúvidas de que o ditador português pudesse aceitar o plano americano "sem o benefício de uma lobotomia".
Para o secretário de Estado adjunto de então, George Ball, Salazar elaborava a política externa de Portugal "como se o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães fossem os seus conselheiros mais próximos".
Segundo o secretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos durante a administração Clinton, Witney Schneider, o ex-presidente do Conselho rejeitou a proposta americana em 1963, durante um encontro com um enviado da Casa Branca.
O livro detalha minuciosamente, com base em documentos oficiais e entrevistas com personalidades norte-americanas e portuguesas, as relações dos Estados Unidos com Portugal e com os movimentos independentistas das ex-colónias portuguesas, em particular Angola e Moçambique, desde o início dos anos 60 até à independência de Angola, em 1975.
De acordo com o autor, em 1962, o assistente do director adjunto de planeamento da CIA, Paul Sakwa, elaborou um plano denominado "Commonwealth Plan", que visava convencer as autoridades portuguesas a aceitar o que a CIA considerava ser a inevitabilidade da independência das colónias portuguesas.
O plano previa que Portugal concedesse a auto-determinação a Angola e Moçambique após um período de transição de oito anos. Enquanto isso, seria organizado um referendo nas duas colónias para se determinar que tipo de relacionamento seria mantido entre os dois territórios e Portugal após a independência.
Durante esse período, os dirigentes nacionalistas angolano Holden Roberto e moçambicano Eduardo Mondlane receberiam "o estatuto de consultores assalariados" e seriam preparados para a liderança dos novos países.
"Para ajudar Salazar a engolir a pílula amarga da descolonização, Sakwa propôs [ainda em 1962] que a NATO oferecesse a Portugal 500 milhões de dólares [391 milhões de euros] para modernizar a sua economia", escreve Schneider.
Um ano depois a proposta daquele funcionário da CIA foi ampliada pelo diplomata Chester Bowles, que duplicou a ajuda a oferecer a Portugal, propondo que os Estados Unidos concedessem mais 500 milhões de dólares durante um período de cinco anos, ou seja um total de mil milhões de dólares durante o período de transição.
Documentos oficiais mostram que Bowles argumentou que seria "um bom negócio diplomático" se os esforços norte-americanos conseguissem resolver "o feio dilema" de Portugal a um custo de cem milhões de dólares (78 milhões de euros) por ano.
O plano dos Estados Unidos esbarrou, contudo, na inflexibilidade de Salazar.
"Portugal não está a venda", foi a resposta do ditador português quando a proposta lhe foi apresentada, em Agosto de 1963 - ainda durante a administração Kennedy - pelo secretário de Estado adjunto norte-americano, George Ball.
Franco Nogueira considerou a proposta americana uma "idiotice
O autor diz ainda que o então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Franco Nogueira, considerou a proposta americana uma "idiotice", porque revelava que Washington acreditava poder determinar ou garantir acontecimentos a longo prazo.
Segundo Nogueira, o plano dos Estados Unidos seria o primeiro passo para a inevitabilidade do caos nas colónias portuguesas em África.
Um dos aspectos mais curiosos do livro é a exactidão com que a CIA e vários diplomatas norte-americanos fazem, com muitos anos de antecedência e em documentos oficiais, a previsão da derrota militar portuguesa em África e o derrube da ditadura.
"A derrota militar portuguesa é uma conclusão inevitável se se permitir que a revolta em Angola ganhe volume e continuidade", adverte o documento da CIA que acompanhava a proposta inicial elaborada por Paul Sakwa, pouco depois do começo da guerra em Angola.
Sakwa questiona-se mesmo se os Estados Unidos poderiam permitir que Portugal "cometesse suicídio, arrastando os seus amigos na mesma via".
O então embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, Burke Elbrick, considerado em Washington como um simpatizante das autoridades portuguesas, enviou um telegrama às autoridades norte-americanas em 1963 em que dizia que Portugal estava "debaixo da espada de Dâmocles", pois não era "nem suficientemente grande nem suficientemente rico" para fazer frente a uma guerra de guerrilha em três frentes.
As guerras em África poderiam significar "o fim do império lusitano" e do regime de Salazar, escreveu ainda o diplomata, advertindo que o fim do regime poderia resultar na subida ao poder de um Governo "consideravelmente mais esquerdista ou neutral".
Em 1964 - dez anos antes da revolução do 25 de Abril -, a CIA advertiu que as guerras em África levariam ao aumento do descontentamento interno e que esse "aumento do descontentamento poderá convencer os militares da necessidade de substituírem Salazar".
Nesse mesmo ano, o Conselho de Segurança Nacional advertiu o Presidente Lyndon B. Johnson - que sucedeu a John F. Kennedy - de que as perspectivas de Portugal em África eram péssimas.
"Já não se trata de uma questão de saber se Angola se tornará independente ou não, pois a única questão é saber quando e como, tal como aconteceu na Argélia. Do mesmo modo, é uma certeza que quanto mais a luta durar, mais violenta, racista e infiltrada pelos comunistas se tornará, mais grave será a crise final a que os Estados Unidos terão de fazer face e mais caótica, radical e anti-ocidental será uma Angola independente", diz o documento.
Durante os anos 60, e face a estes avisos, muitos funcionários norte-americanos deram conta em documentos do seu desespero face à inflexibilidade do Governo de Salazar em mudar a política colonial.
Paul Sakwa, o funcionário da CIA que elaborou o "Commonwealth Plan", desesperado com a inflexibilidade de Salazar, terá chegado, ironicamente, a manifestar dúvidas de que o ditador português pudesse aceitar o plano americano "sem o benefício de uma lobotomia".
Para o secretário de Estado adjunto de então, George Ball, Salazar elaborava a política externa de Portugal "como se o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães fossem os seus conselheiros mais próximos".
http://ultimahora.publico.pt/shownews.asp?id=1206768&idCanal=21
António de Oliveira Salazar
Esta cadeira está desengonçada mas arrisco-me. Gosto muito de estar sentado aqui ao sol, no terraço do Forte de Santo António do Estoril, a contemplar a foz do Tejo e o oceano. É o meu único luxo, sou pobre, filho de pobres.
No exílio, uma vez a rainha D. Amélia disse que, se pudesse, de mim faria o rei de Portugal. Enganou-se. Eu gostava era de ter sido primeiro ministro de um rei absoluto. Só consigo estar no Governo porque nunca saio da rotina. Como conseguiria aguentar estes anos todos a concorrer a eleições, a ir ao Parlamento responder a perguntas, a correr a inaugurar coisas? Não, rei não quis, nem quero ser; sou pobre, filho de pobres. Continua AQUI
No exílio, uma vez a rainha D. Amélia disse que, se pudesse, de mim faria o rei de Portugal. Enganou-se. Eu gostava era de ter sido primeiro ministro de um rei absoluto. Só consigo estar no Governo porque nunca saio da rotina. Como conseguiria aguentar estes anos todos a concorrer a eleições, a ir ao Parlamento responder a perguntas, a correr a inaugurar coisas? Não, rei não quis, nem quero ser; sou pobre, filho de pobres. Continua AQUI
quinta-feira, 27 de abril de 2006
Continua a Primavera
Continua a Primavera na Vila de Oleiros, pela direita em direcção a Álvaro, no Casal Novo, no Mítico troço Casal-Madeirã.
Na Fonte, na Curva do Gelo, no Alto do Cavalo (lugar mítico), no Sobral . No Faval, Leiria de Cima, Leiria do Meio, Pessilgal, Roda de Baixo, Roda de Cima, Sabugal, Sobral de Baixo, Sobral de Cima e Casalinho...
E nos seguintes lugares: Póvoa de Minal, Mourelo, Ninho do Corvo, Val da Constância, Fundo do Val, Picorreia, Sobreirinho e Val da Carreira.
Na povoação do Cavalo. Mais para além daquela curva, no Monte Fundeiro, e ainda no troço Madeirã-Casal Novo, Alto da Cava-Casal Novo, Vale de Mós, Mosteiro...
Mais para baixo no Monte Fundeiro, em Vale Salgueiro, na Azenha da Ribeira, na aldeia de Poeiros, na Azenha de Cima.
Lugares míticos.
Paisagens a perder de vista.
Cristas, Vales, Outeiros, Montes, Serras, Planaltos...
Na Fonte, na Curva do Gelo, no Alto do Cavalo (lugar mítico), no Sobral . No Faval, Leiria de Cima, Leiria do Meio, Pessilgal, Roda de Baixo, Roda de Cima, Sabugal, Sobral de Baixo, Sobral de Cima e Casalinho...
E nos seguintes lugares: Póvoa de Minal, Mourelo, Ninho do Corvo, Val da Constância, Fundo do Val, Picorreia, Sobreirinho e Val da Carreira.
Na povoação do Cavalo. Mais para além daquela curva, no Monte Fundeiro, e ainda no troço Madeirã-Casal Novo, Alto da Cava-Casal Novo, Vale de Mós, Mosteiro...
Mais para baixo no Monte Fundeiro, em Vale Salgueiro, na Azenha da Ribeira, na aldeia de Poeiros, na Azenha de Cima.
Lugares míticos.
Paisagens a perder de vista.
Cristas, Vales, Outeiros, Montes, Serras, Planaltos...
chip
...porcaria de Tempo: tens tudo concentrado num chip: contactos, emoções, afectos, mensagens...
sou, agora, um barco sem bússola: e se rebenta uma tempestade...?...
asas do desejo
sou, agora, um barco sem bússola: e se rebenta uma tempestade...?...
asas do desejo
Tempos negros da ditadura e do CCCS
Tempos negros da ditadura e do CCCS
Sem defesa: alguém dizia que você era comunista e jogava a bomba...
O período da ditadura militar no Brasil teve na verdade várias fases, alternando períodos mais ou menos violentos. Em 1980, segundo ano de governo do general João Figueiredo - que iniciaria mais adiante a transição política para o regime democrático -, uma facção militar optava pela distensão política, enquanto a linha dura tentava manter posições rígidas no controle militar do Brasil, há muito reforçadas pelo Ato Institucional nº 5. Como sempre em tais casos, a impossibilidade do controle pleno dos subordinados fazia com que o "guarda da esquina" mandasse na prática mais que o presidente. Em nome da ditadura, muitos desmandos foram cometidos e - muitas vezes - qualquer autoridade local posava de general da República, no estilo "você sabe com quem está falando?".
Em Santos, grupos de extrema direita organizaram o Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), que se arrogou o direito de decidir que publicações poderiam ser ou não vendidas nas bancas de jornais. As ameaças chegaram a ser acompanhadas por bombas e incêndios noturnos em bancas de jornais da região, cujos donos não acataram a decisão do tal CCCS.
Para tal comando, qualquer publicação não pertencente a empresários afinados com o regime político direitista - e portanto todas as publicações alternativas, mantidas por sindicatos e pelas cooperativas de jornalistas - deveria ser impedida de circular, da mesma forma que - no estilo defendido pela organização radical Tradição, Família e Propriedade (TFP) - nenhuma publicação de conteúdo sensual/erótico poderia ser comercializada.
Em 4/8/1980, este jornalista publicava no jornal A Tribuna de Santos (página 4):
Grupos de direita fazem ameaças
As ameaças de grupos direitistas contra a venda de jornais alternativos chegou a Santos. Proprietários de livrarias e de firmas distribuidoras de jornais receberam carta assinada pelo Comando de Caça aos Comunistas de Santos - CCCS -, exigindo que os jornais considerados alternativos não sejam mais vendidos ao público, a partir de hoje. Mas, a ação desencadeada em Santos tem uma particularidade que a difere dos casos registrados em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte: as ameaças incluem as chamadas revistas eróticas (Ele e Ela; Homem; Play-Boy; Privé e outras). Assim, os grupos de direita passam também a atacar as multinacionais, pois a maioria dessas revistas pertence a grupos estrangeiros.
Como não poderia deixar de ser, os proprietários de livrarias e de firmas distribuidoras preferem manter-se no anonimato, "para que a situação não fique ainda mais difícil", como comentaram ontem. Hoje, eles pretendem reunir-se e discutir os problemas que poderão ser ocasionados com as ameaças, pois várias bancas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte foram atacadas por esses grupos. A primeira providência tomada pelos livreiros e distribuidores foi não vender os jornais ao público, ou ainda manter seus estoques dentro das lojas, em lugares de difícil acesso.
Em relação às chamadas revistas eróticas, os livreiros e jornaleiros ainda não tomaram qualquer posição. Segundo a opinião de alguns deles, o Comando de Caça aos Comunistas estaria tentando ganhar o apoio de entidades de servir, "pois em alguns casos, essas entidades reclamaram do erotismo que as revistas apresentam e que estava sendo exposto nas bancas". Outro detalhe da carta, é que o grupo afirma que os livreiros e jornaleiros estão sendo classificados de "inocentes úteis, utilizados pelos vermelhos". A carta deixa claro que o grupo tem raízes regionais, pois afirma que os jornais não devem ser distribuídos "às cidades da Baixada Santista".
A íntegra da carta:
"O Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), unido e coeso aos nobres ideais da Falange Pátria Nova e das Brigadas Moralistas, já identificou o senhor e a sua empresa em nosso index como inocentes úteis dos vermelhos e dos imorais. O CCCS adverte ao senhor, com a sua responsabilidade de proprietário de empresa distribuidora e/ou vendedora de periódicos, que, talvez sem saber, vem colaborando para o aumento da propaganda comunista e da literatura erótico-pornográfica em nosso país, distribuindo ou vendendo à população desta cidade (que um dia ensinou à Pátria a Liberdade e a Caridade), revistas obcenas (sic) e jornais marxistas-leninistas.
"Outras entidades patrióticas, semelhantes à nossa, estão também enviando um alerta semelhante a este, advertindo as pessoas para o clima de subversão política e de afronta à ordem moral da família brasileira. Algumas o fazem incorretamente, pois apenas advertem aos jornaleiros de bancas, simples revendedores economicamente mais fracos, quando os grandes responsáveis, na realidade, são os editores e os grandes distribuidores/vendedores, como o senhor e a sua empresa.
"Assim, para o bem da nossa cidade, do nosso querido Brasil e do seu próprio futuro, exigimos que a sua empresa pare imediatamente de distribuir e/ou vender em Santos e nos municípios da Baixada Santista as seguintes publicações:
"Jornais - Preto no Branco (Cooperativa dos Jornalistas de Santos), Hora do Povo, em Tempo, Pasquim, Movimento, Voz da Unidade, Voz Operária, Repórter, Luta Operária, Convergência Socialista, Lampião, Jornal do Gay; Revistas - Ele e Ela, Play-Boy, Lui, Status, Homem, Close, Privé, Rose, Personal, Confissões, Eros, Fiesta, Exclusive e demais revistas que tratem de assuntos eróticos e sexuais.
Esperamos contar com a sua patriótica colaboração. Não advertiremos mais. Caso contrário tomaremos atitudes drásticas. Comando CCCS".
Carlos Pimentel Mendes, editor do jornal eletrónico Novo Milênio
Sem defesa: alguém dizia que você era comunista e jogava a bomba...
O período da ditadura militar no Brasil teve na verdade várias fases, alternando períodos mais ou menos violentos. Em 1980, segundo ano de governo do general João Figueiredo - que iniciaria mais adiante a transição política para o regime democrático -, uma facção militar optava pela distensão política, enquanto a linha dura tentava manter posições rígidas no controle militar do Brasil, há muito reforçadas pelo Ato Institucional nº 5. Como sempre em tais casos, a impossibilidade do controle pleno dos subordinados fazia com que o "guarda da esquina" mandasse na prática mais que o presidente. Em nome da ditadura, muitos desmandos foram cometidos e - muitas vezes - qualquer autoridade local posava de general da República, no estilo "você sabe com quem está falando?".
Em Santos, grupos de extrema direita organizaram o Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), que se arrogou o direito de decidir que publicações poderiam ser ou não vendidas nas bancas de jornais. As ameaças chegaram a ser acompanhadas por bombas e incêndios noturnos em bancas de jornais da região, cujos donos não acataram a decisão do tal CCCS.
Para tal comando, qualquer publicação não pertencente a empresários afinados com o regime político direitista - e portanto todas as publicações alternativas, mantidas por sindicatos e pelas cooperativas de jornalistas - deveria ser impedida de circular, da mesma forma que - no estilo defendido pela organização radical Tradição, Família e Propriedade (TFP) - nenhuma publicação de conteúdo sensual/erótico poderia ser comercializada.
Em 4/8/1980, este jornalista publicava no jornal A Tribuna de Santos (página 4):
Grupos de direita fazem ameaças
As ameaças de grupos direitistas contra a venda de jornais alternativos chegou a Santos. Proprietários de livrarias e de firmas distribuidoras de jornais receberam carta assinada pelo Comando de Caça aos Comunistas de Santos - CCCS -, exigindo que os jornais considerados alternativos não sejam mais vendidos ao público, a partir de hoje. Mas, a ação desencadeada em Santos tem uma particularidade que a difere dos casos registrados em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte: as ameaças incluem as chamadas revistas eróticas (Ele e Ela; Homem; Play-Boy; Privé e outras). Assim, os grupos de direita passam também a atacar as multinacionais, pois a maioria dessas revistas pertence a grupos estrangeiros.
Como não poderia deixar de ser, os proprietários de livrarias e de firmas distribuidoras preferem manter-se no anonimato, "para que a situação não fique ainda mais difícil", como comentaram ontem. Hoje, eles pretendem reunir-se e discutir os problemas que poderão ser ocasionados com as ameaças, pois várias bancas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte foram atacadas por esses grupos. A primeira providência tomada pelos livreiros e distribuidores foi não vender os jornais ao público, ou ainda manter seus estoques dentro das lojas, em lugares de difícil acesso.
Em relação às chamadas revistas eróticas, os livreiros e jornaleiros ainda não tomaram qualquer posição. Segundo a opinião de alguns deles, o Comando de Caça aos Comunistas estaria tentando ganhar o apoio de entidades de servir, "pois em alguns casos, essas entidades reclamaram do erotismo que as revistas apresentam e que estava sendo exposto nas bancas". Outro detalhe da carta, é que o grupo afirma que os livreiros e jornaleiros estão sendo classificados de "inocentes úteis, utilizados pelos vermelhos". A carta deixa claro que o grupo tem raízes regionais, pois afirma que os jornais não devem ser distribuídos "às cidades da Baixada Santista".
A íntegra da carta:
"O Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), unido e coeso aos nobres ideais da Falange Pátria Nova e das Brigadas Moralistas, já identificou o senhor e a sua empresa em nosso index como inocentes úteis dos vermelhos e dos imorais. O CCCS adverte ao senhor, com a sua responsabilidade de proprietário de empresa distribuidora e/ou vendedora de periódicos, que, talvez sem saber, vem colaborando para o aumento da propaganda comunista e da literatura erótico-pornográfica em nosso país, distribuindo ou vendendo à população desta cidade (que um dia ensinou à Pátria a Liberdade e a Caridade), revistas obcenas (sic) e jornais marxistas-leninistas.
"Outras entidades patrióticas, semelhantes à nossa, estão também enviando um alerta semelhante a este, advertindo as pessoas para o clima de subversão política e de afronta à ordem moral da família brasileira. Algumas o fazem incorretamente, pois apenas advertem aos jornaleiros de bancas, simples revendedores economicamente mais fracos, quando os grandes responsáveis, na realidade, são os editores e os grandes distribuidores/vendedores, como o senhor e a sua empresa.
"Assim, para o bem da nossa cidade, do nosso querido Brasil e do seu próprio futuro, exigimos que a sua empresa pare imediatamente de distribuir e/ou vender em Santos e nos municípios da Baixada Santista as seguintes publicações:
"Jornais - Preto no Branco (Cooperativa dos Jornalistas de Santos), Hora do Povo, em Tempo, Pasquim, Movimento, Voz da Unidade, Voz Operária, Repórter, Luta Operária, Convergência Socialista, Lampião, Jornal do Gay; Revistas - Ele e Ela, Play-Boy, Lui, Status, Homem, Close, Privé, Rose, Personal, Confissões, Eros, Fiesta, Exclusive e demais revistas que tratem de assuntos eróticos e sexuais.
Esperamos contar com a sua patriótica colaboração. Não advertiremos mais. Caso contrário tomaremos atitudes drásticas. Comando CCCS".
Carlos Pimentel Mendes, editor do jornal eletrónico Novo Milênio
quarta-feira, 26 de abril de 2006
O "crime" de Iouri Bandajevski
Le Monde - 26/06/2003
O erro de Iouri Bandajvski
Há dois anos, este eminente cientista bielo-russo está vegetando numa prisão de Minsk. As suas pesquisas sobre as conseqüências de Chernobyl contestam as posições oficiais. Será uma coincidência?
Hervé Kempf
Dá para imaginar um grande cientista preso por ter descoberto uma vacina ou por ter isolado um vírus? Pois já faz dois anos que o maior cientista do Belarus está vendo o sol nascer quadrado numa cela da "colônia de regime restrito" da rua Kalvariskaïa, em Minsk, a capital, na companhia de assassinos.
O crime de Iouri Bandajevski, segundo a justiça do presidente autocrata Alexandre Loukachenko, num país limítrofe da Europa onde o KGB ainda existe sob este nome e onde a oposição política é de fato proibida, é ter aceitado propinas de seus estudantes.
Mas tudo leva a crer que o verdadeiro erro deste anatomista-patologista de 46 anos, um pesquisador incansável e adulado por seus alunos, é ter criticado a gestão sanitária das autoridades e, mais ainda, ter mostrado que a radioatividade sempre presente nas regiões vizinhas de Chernobyl vem provocando, apesar de seu nível reduzido, doenças importantes e duradouras nas crianças, desmentindo a verdade oficial segundo a qual a catástrofe não produz mais efeitos e pode ser esquecida.
Bandajevski não é um preso político clássico, um militante da democracia, e sim um preso científico. E nessa cela, não é só um cientista de valor que está trancado, mas a chave de uma hipótese científica novíssima no campo do estudo da radioatividade: a exposição crônica a pequenas doses de radioatividade provoca doenças inesperadas, entre outras cardíacas, nas crianças que foram expostas.
Caso fosse confirmada, esta hipótese multiplicaria ainda o terrível balanço de Chernobyl e a análise geral dos acidentes nucleares, sempre possíveis.
Após ter sustentado a sua tese de doutorado de anatomia patológica em 1987, Iouri Bandajevski é nomeado diretor do Laboratório central de pesquisa científica de Belarus. A sua trajetória é impecável, sendo considerado um dos pesquisadores mais promissores da URSS.
Mas, em abril de 1986, acontece o acidente de Chernobyl, cuja nuvem envenenada deixa o seu maior rastro sobre a pequena república de Belarus. Até 1990, o sistema soviético continua reinando, a informação é controlada, e raros são os que conhecem a dimensão exata da catástrofe. Iouri é um deles. Ele propõe diversos programas de pesquisas para as autoridades.
Em 1990, o ministro da saúde o nomeia reitor do Instituto de medicina de Gomel, com a missão de salvar esse instituto do abandono e de nele promover novos programas de pesquisas. O cargo tem prestígio, mas, na verdade, os candidatos são raros: a cidade de Gomel fica à proximidade das zonas mais contaminadas, e a maioria tenta discretamente deixar essa região onde a radioatividade persiste nos solos, nas águas, nos alimentos.
No começo dos anos 90, Bandajevski ensina, gerencia o instituto, forma os estudantes. Ele faz dele um estabelecimento reputado, numa região duplamente
afetada: assim como toda a União Soviética, pela queda do império, mas também pelo mal invisível de Chernobyl, que enfraquece e esvazia a cidade. Ele ainda encontra tempo para pesquisar, orientando evidentemente os seus estudos para a análise dos efeitos da radioatividade sobre o organismo.
É da sua esposa, Galina, que vem o alarme: ela é cardiologista e trabalha no hospital, onde ela observa com surpresa as anomalias cardíacas das crianças que ela ausculta: ruídos, arritmia, todos sintomas geralmente raros em crianças.
Em 1993, ela empreende um levantamento sistemático dos eletrocardiogramas das crianças de um jardim de infância: 80% deles revelam-se anormais. Ela avisa o marido, e a hipótese nasce de uma ligação entre esses sintomas e o nível de contaminação radioativa.
A hipótese não é nem um pouco ortodoxa: desde Hiroshima e Nagasaki, os especialistas associam a exposição à radioatividade com o câncer. Esta doença seria o principal efeito da radioatividade sobre o organismo vivo. Mas, para Bandajevski, é preciso ir mais longe: enquanto em Hiroshima as vítimas foram expostas a uma exposição maciça porém de curta duração, em Chernobyl as populações são vítimas de condições diferentes: uma exposição reduzida porém prolongada. Os efeitos poderiam então ser diferentes.
Com toda a energia de que é capaz, ele inicia essa pesquisa, testando a hipótese sobre os seus camundongos, interessando-se a isótopos desprezados até então, tais como o césio 137, orientando os seus estudantes sobre aspectos particulares do estudo e mobilizando outros hospitais da região.
Em 1995, a nova teoria é apresentada num livro de síntese publicado em inglês em Gomel: "Existe uma correlação entre a evolução de condições patológicas e as doses acumuladas de radionuclídeos. Ela é mais intensa para os sistemas cardíaco e nervoso. (...) Mesmo pequenas doses de substâncias radioativas, da ordem de 50 a 80 becquerels de césio 137 por quilo, podem causar desordens patológicas no organismo humano". Além disso, essa influência nefasta afeta sobretudo as crianças.
Enquanto multiplica as experiências para confirmar a hipótese, Bandajevski começa a falar publicamente, pois se a hipótese for comprovada, isso significa que é possível evitar inúmeras doenças, isso com a condição de lidar de outro modo com as conseqüências de Chernobyl, controlando melhor a alimentação, buscando meios de evacuar o césio do organismo, cuidando sobretudo das crianças, que são as mais ameaçadas.
Na Belarus do fim dos anos 90, não é bom dizer essas verdades: a tese oficial é a de que as conseqüências de Chernobyl estão sob controle, e que já é possível começar a "reabilitar" as zonas contaminadas.
Acontece que, em 1994, Alexandre Loukachenko ascendeu ao poder. De fato, foi por meio de eleições, mas o novo homem forte do país, um nostálgico do sistema soviético, sufoca aos poucos a democracia que florescera entre 1990 e 1994. Torna-se cada vez mais difícil opor-se ao presidente.
Mas, absorvido no seu trabalho, Bandajevski nem sequer prestou atenção a essa evolução política. Em 1999, um comitê do Parlamento lhe entrega uma missão de avaliação da gestão do pós-Chernobyl pelo ministério da saúde. O relatório que ele entrega às autoridades denuncia a dilapidação da maior parte do orçamento e a ineficiência das iniciativas tomadas. Não contente, Bandajevski escreve para o presidente Loukachenko e participa de um programa na televisão no qual ele explica o seu trabalho científico e as suas conclusões.
O resultado não demora a aparecer. Ele é preso em julho de 1999 e encarcerado por seis meses, sob a alegação de que ele teria aceitado dinheiro de seus alunos para aprová-los. A acusação de corrupção é a arma favorita de Loukachenko para desacreditar os seus opositores. No caso de Bandajevski, ela é inverossímil: "Ele é um intelectual autêntico, um cerebral, um puro", diz um diplomata ocidental em Minsk.
Bandajevski é libertado depois de seis meses e fica esperando pelo seu julgamento em liberdade: "Ele era inconsciente", conta Galina. "Em vez de preparar a sua defesa com os seus advogados, ele passou todo o tempo refazendo as suas experiências, em casa. Às vésperas do processo, ele ainda estava imprimindo o seu novo livro no computador".
Em 18 de junho de 2001, ele é condenado a oito anos de prisão. Nenhuma prova foi encontrada, enquanto a testemunha principal desistiu no meio da audiência. A OSCE (Organização para a segurança e a cooperação na Europa) encontrou oito infrações ao código penal de Belarus cometidas durante o processo. François Jacob, da Academia francesa das ciências, afirma numa carta de apoio que "o verdadeiro motivo de sua condenação se baseia numa crítica formulada num relatório científico".
Iouri Bandajevski está preso até hoje. As pressões contra ele e sua família não pararam. Ele está cansado, magro, perdendo cabelos, mas o seu moral ainda é bom, diz a sua esposa. E ele não cedeu: ele não reconheceu a sua culpabilidade, ele não se comprometeu a desistir de suas pesquisas científicas.
Contudo, embora ele tenha sido adotado por Anistia Internacional e por associações tais como a CRII-Rad (Comissão de pesquisa e de informação independentes sobre radioatividade), Bandajevski não recebeu praticamente nenhum apoio dos cientistas estrangeiros.
Absorvido pela sua luta em defesa de suas idéias em Belarus, Bandajevski não dedicou energia suficiente para publicar os seus resultados nas revistas ocidentais.
Na sua cela da rua Kalvariskaia, ele não pensa apenas no debate científico que foi abafado. Ele pensa também nas crianças do sul de Belarus, as vítimas de Chernobyl, que estão aguardando para ser libertadas do mal que está as roendo, do césio envenenado.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
O erro de Iouri Bandajvski
Há dois anos, este eminente cientista bielo-russo está vegetando numa prisão de Minsk. As suas pesquisas sobre as conseqüências de Chernobyl contestam as posições oficiais. Será uma coincidência?
Hervé Kempf
Dá para imaginar um grande cientista preso por ter descoberto uma vacina ou por ter isolado um vírus? Pois já faz dois anos que o maior cientista do Belarus está vendo o sol nascer quadrado numa cela da "colônia de regime restrito" da rua Kalvariskaïa, em Minsk, a capital, na companhia de assassinos.
O crime de Iouri Bandajevski, segundo a justiça do presidente autocrata Alexandre Loukachenko, num país limítrofe da Europa onde o KGB ainda existe sob este nome e onde a oposição política é de fato proibida, é ter aceitado propinas de seus estudantes.
Mas tudo leva a crer que o verdadeiro erro deste anatomista-patologista de 46 anos, um pesquisador incansável e adulado por seus alunos, é ter criticado a gestão sanitária das autoridades e, mais ainda, ter mostrado que a radioatividade sempre presente nas regiões vizinhas de Chernobyl vem provocando, apesar de seu nível reduzido, doenças importantes e duradouras nas crianças, desmentindo a verdade oficial segundo a qual a catástrofe não produz mais efeitos e pode ser esquecida.
Bandajevski não é um preso político clássico, um militante da democracia, e sim um preso científico. E nessa cela, não é só um cientista de valor que está trancado, mas a chave de uma hipótese científica novíssima no campo do estudo da radioatividade: a exposição crônica a pequenas doses de radioatividade provoca doenças inesperadas, entre outras cardíacas, nas crianças que foram expostas.
Caso fosse confirmada, esta hipótese multiplicaria ainda o terrível balanço de Chernobyl e a análise geral dos acidentes nucleares, sempre possíveis.
Após ter sustentado a sua tese de doutorado de anatomia patológica em 1987, Iouri Bandajevski é nomeado diretor do Laboratório central de pesquisa científica de Belarus. A sua trajetória é impecável, sendo considerado um dos pesquisadores mais promissores da URSS.
Mas, em abril de 1986, acontece o acidente de Chernobyl, cuja nuvem envenenada deixa o seu maior rastro sobre a pequena república de Belarus. Até 1990, o sistema soviético continua reinando, a informação é controlada, e raros são os que conhecem a dimensão exata da catástrofe. Iouri é um deles. Ele propõe diversos programas de pesquisas para as autoridades.
Em 1990, o ministro da saúde o nomeia reitor do Instituto de medicina de Gomel, com a missão de salvar esse instituto do abandono e de nele promover novos programas de pesquisas. O cargo tem prestígio, mas, na verdade, os candidatos são raros: a cidade de Gomel fica à proximidade das zonas mais contaminadas, e a maioria tenta discretamente deixar essa região onde a radioatividade persiste nos solos, nas águas, nos alimentos.
No começo dos anos 90, Bandajevski ensina, gerencia o instituto, forma os estudantes. Ele faz dele um estabelecimento reputado, numa região duplamente
afetada: assim como toda a União Soviética, pela queda do império, mas também pelo mal invisível de Chernobyl, que enfraquece e esvazia a cidade. Ele ainda encontra tempo para pesquisar, orientando evidentemente os seus estudos para a análise dos efeitos da radioatividade sobre o organismo.
É da sua esposa, Galina, que vem o alarme: ela é cardiologista e trabalha no hospital, onde ela observa com surpresa as anomalias cardíacas das crianças que ela ausculta: ruídos, arritmia, todos sintomas geralmente raros em crianças.
Em 1993, ela empreende um levantamento sistemático dos eletrocardiogramas das crianças de um jardim de infância: 80% deles revelam-se anormais. Ela avisa o marido, e a hipótese nasce de uma ligação entre esses sintomas e o nível de contaminação radioativa.
A hipótese não é nem um pouco ortodoxa: desde Hiroshima e Nagasaki, os especialistas associam a exposição à radioatividade com o câncer. Esta doença seria o principal efeito da radioatividade sobre o organismo vivo. Mas, para Bandajevski, é preciso ir mais longe: enquanto em Hiroshima as vítimas foram expostas a uma exposição maciça porém de curta duração, em Chernobyl as populações são vítimas de condições diferentes: uma exposição reduzida porém prolongada. Os efeitos poderiam então ser diferentes.
Com toda a energia de que é capaz, ele inicia essa pesquisa, testando a hipótese sobre os seus camundongos, interessando-se a isótopos desprezados até então, tais como o césio 137, orientando os seus estudantes sobre aspectos particulares do estudo e mobilizando outros hospitais da região.
Em 1995, a nova teoria é apresentada num livro de síntese publicado em inglês em Gomel: "Existe uma correlação entre a evolução de condições patológicas e as doses acumuladas de radionuclídeos. Ela é mais intensa para os sistemas cardíaco e nervoso. (...) Mesmo pequenas doses de substâncias radioativas, da ordem de 50 a 80 becquerels de césio 137 por quilo, podem causar desordens patológicas no organismo humano". Além disso, essa influência nefasta afeta sobretudo as crianças.
Enquanto multiplica as experiências para confirmar a hipótese, Bandajevski começa a falar publicamente, pois se a hipótese for comprovada, isso significa que é possível evitar inúmeras doenças, isso com a condição de lidar de outro modo com as conseqüências de Chernobyl, controlando melhor a alimentação, buscando meios de evacuar o césio do organismo, cuidando sobretudo das crianças, que são as mais ameaçadas.
Na Belarus do fim dos anos 90, não é bom dizer essas verdades: a tese oficial é a de que as conseqüências de Chernobyl estão sob controle, e que já é possível começar a "reabilitar" as zonas contaminadas.
Acontece que, em 1994, Alexandre Loukachenko ascendeu ao poder. De fato, foi por meio de eleições, mas o novo homem forte do país, um nostálgico do sistema soviético, sufoca aos poucos a democracia que florescera entre 1990 e 1994. Torna-se cada vez mais difícil opor-se ao presidente.
Mas, absorvido no seu trabalho, Bandajevski nem sequer prestou atenção a essa evolução política. Em 1999, um comitê do Parlamento lhe entrega uma missão de avaliação da gestão do pós-Chernobyl pelo ministério da saúde. O relatório que ele entrega às autoridades denuncia a dilapidação da maior parte do orçamento e a ineficiência das iniciativas tomadas. Não contente, Bandajevski escreve para o presidente Loukachenko e participa de um programa na televisão no qual ele explica o seu trabalho científico e as suas conclusões.
O resultado não demora a aparecer. Ele é preso em julho de 1999 e encarcerado por seis meses, sob a alegação de que ele teria aceitado dinheiro de seus alunos para aprová-los. A acusação de corrupção é a arma favorita de Loukachenko para desacreditar os seus opositores. No caso de Bandajevski, ela é inverossímil: "Ele é um intelectual autêntico, um cerebral, um puro", diz um diplomata ocidental em Minsk.
Bandajevski é libertado depois de seis meses e fica esperando pelo seu julgamento em liberdade: "Ele era inconsciente", conta Galina. "Em vez de preparar a sua defesa com os seus advogados, ele passou todo o tempo refazendo as suas experiências, em casa. Às vésperas do processo, ele ainda estava imprimindo o seu novo livro no computador".
Em 18 de junho de 2001, ele é condenado a oito anos de prisão. Nenhuma prova foi encontrada, enquanto a testemunha principal desistiu no meio da audiência. A OSCE (Organização para a segurança e a cooperação na Europa) encontrou oito infrações ao código penal de Belarus cometidas durante o processo. François Jacob, da Academia francesa das ciências, afirma numa carta de apoio que "o verdadeiro motivo de sua condenação se baseia numa crítica formulada num relatório científico".
Iouri Bandajevski está preso até hoje. As pressões contra ele e sua família não pararam. Ele está cansado, magro, perdendo cabelos, mas o seu moral ainda é bom, diz a sua esposa. E ele não cedeu: ele não reconheceu a sua culpabilidade, ele não se comprometeu a desistir de suas pesquisas científicas.
Contudo, embora ele tenha sido adotado por Anistia Internacional e por associações tais como a CRII-Rad (Comissão de pesquisa e de informação independentes sobre radioatividade), Bandajevski não recebeu praticamente nenhum apoio dos cientistas estrangeiros.
Absorvido pela sua luta em defesa de suas idéias em Belarus, Bandajevski não dedicou energia suficiente para publicar os seus resultados nas revistas ocidentais.
Na sua cela da rua Kalvariskaia, ele não pensa apenas no debate científico que foi abafado. Ele pensa também nas crianças do sul de Belarus, as vítimas de Chernobyl, que estão aguardando para ser libertadas do mal que está as roendo, do césio envenenado.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Desenho da Central Nuclear de CHERNOBIL
Este capítulo está elaborado a partir del artículo "Chernobil. Su repercusión en la física y en la tecnología", de J.M. MARTÍNEZ-VAL, publicado en el número 151 de la Revista de la Sociedad Nuclear Española, 31 de Marzo de 1996, y del curso "Los accidentes de TMI-2 y Chernobil-4. Una perspectiva para los estudios de cuantificación del riesgo", por A. ALONSO.
terça-feira, 25 de abril de 2006
Leituras
- PODIA SER, MAS NÃO É! mentira, ou mesmo uma anedota...
- MERECEM-SE! ouviram-se jogadores do FC Porto cantarem...
- 25 DE ABRIL de uma classe política inepta, incompetente e corrupta!
- LOUCO FUTEBOL PORTUGUÊS apesar da sua teimosia e da agressividade de que foi alvo...
arte de OPINAR!
- MERECEM-SE! ouviram-se jogadores do FC Porto cantarem...
- 25 DE ABRIL de uma classe política inepta, incompetente e corrupta!
- LOUCO FUTEBOL PORTUGUÊS apesar da sua teimosia e da agressividade de que foi alvo...
arte de OPINAR!
Greves
"Até a Revolução de 1964, que ampliou o significado da doutrina de Segurança Nacional para impor maior controle à região portuária santista (que teve seu prefeito cassado e substituído por interventores nas duas décadas seguintes) e ao parque industrial de Cubatão, Santos tinha grande participação nos movimentos políticos nacionais e internacionais. Amordaçada e amendrontada pelo regime militar, a cidade nem de longe pareceria nos anos seguintes com a que fervilhava com a movimentação sindical pré-1964.
São das vésperas da Revolução estas notícias, que dão uma idéia do que acontecia então na "terra de Brás Cubas". A primeira é do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 27 de janeiro de 1964:
SANTOS (Sucursal) - A baixada santista, em 1963, sofreu em média 3,4 greves por mês, contando-se entre elas 2 gerais, de solidariedade. Até juízes de futebol paralisaram suas atividades, alegando baixa taxa de pagamento e falta de garantias. Os dias mais agitados, porém, vividos nesta região paulista registraram-se em junho e agosto, quando se sucederam os movimentos grevistas dos "bagrinhos" e enfermeiros, respectivamente. Nas duas ocasiões, a cidade se transformou em praça de guerra, com a presença de tropas federais - primeiro, para garantir a execução da sentença que mandava sindicalizar 275 matriculados na estiva e, depois, para assegurar a ordem, principalmente na faixa portuária, refinaria e oleoduto.
A outra notícia é do Diário da Noite, da capital paulista, em 30 de agosto de 1963:
Santos, 29 (de Athaide Alves Franco e Antônio Rodrigues, enviados especiais) - Foi decretada greve geral em Santos. A decisão foi tomada às 22,20 horas pelo Fórum Sindical de Debates. O movimento eclodirá a partir da meia-noite de domingo, devendo paralisar todas as atividades da baixada santista. No momento em que redigíamos esta nota os membros do FSD deixavam o Sindicato dos Operários Portuários para um encontro com o Prefeito de Santos e diretores de estabelecimentos hospitalares.
Contudo informações chegadas ao conhecimento dos membros do Fórum Sindical de Debates davam conta de que a Santa Casa continua no seu firme propósito: não atenderá aos grevistas. Há poucos minutos o diretor do Departamento Nacional do Trabalho e o ministro do Trabalho, respectivamente Lúcio Gusmão e Amaury Silva, telefonaram para Santos a fim de se colocar a par da situação.
Documentos de posse dos grevistas dão conta de que no período compreendido entre outubro último e agosto corrente os hospitais elevaram suas taxas em 95 por cento. Inúmeras listas estão sendo corridas na cidade organizando fundos para auxílio dos grevistas.
A decisão do Fórum Sindical de Debates foi tomada por unanimidade, estando presentes à reunião representantes de 40 entidades sindicais. O movimento poderá ser antecipado para qualquer momento no caso de se registrarem arbitrariedades contra os grevistas."
novomilenio.inf.br - Santos - Histórias e Lendas
São das vésperas da Revolução estas notícias, que dão uma idéia do que acontecia então na "terra de Brás Cubas". A primeira é do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 27 de janeiro de 1964:
SANTOS (Sucursal) - A baixada santista, em 1963, sofreu em média 3,4 greves por mês, contando-se entre elas 2 gerais, de solidariedade. Até juízes de futebol paralisaram suas atividades, alegando baixa taxa de pagamento e falta de garantias. Os dias mais agitados, porém, vividos nesta região paulista registraram-se em junho e agosto, quando se sucederam os movimentos grevistas dos "bagrinhos" e enfermeiros, respectivamente. Nas duas ocasiões, a cidade se transformou em praça de guerra, com a presença de tropas federais - primeiro, para garantir a execução da sentença que mandava sindicalizar 275 matriculados na estiva e, depois, para assegurar a ordem, principalmente na faixa portuária, refinaria e oleoduto.
A outra notícia é do Diário da Noite, da capital paulista, em 30 de agosto de 1963:
Santos, 29 (de Athaide Alves Franco e Antônio Rodrigues, enviados especiais) - Foi decretada greve geral em Santos. A decisão foi tomada às 22,20 horas pelo Fórum Sindical de Debates. O movimento eclodirá a partir da meia-noite de domingo, devendo paralisar todas as atividades da baixada santista. No momento em que redigíamos esta nota os membros do FSD deixavam o Sindicato dos Operários Portuários para um encontro com o Prefeito de Santos e diretores de estabelecimentos hospitalares.
Contudo informações chegadas ao conhecimento dos membros do Fórum Sindical de Debates davam conta de que a Santa Casa continua no seu firme propósito: não atenderá aos grevistas. Há poucos minutos o diretor do Departamento Nacional do Trabalho e o ministro do Trabalho, respectivamente Lúcio Gusmão e Amaury Silva, telefonaram para Santos a fim de se colocar a par da situação.
Documentos de posse dos grevistas dão conta de que no período compreendido entre outubro último e agosto corrente os hospitais elevaram suas taxas em 95 por cento. Inúmeras listas estão sendo corridas na cidade organizando fundos para auxílio dos grevistas.
A decisão do Fórum Sindical de Debates foi tomada por unanimidade, estando presentes à reunião representantes de 40 entidades sindicais. O movimento poderá ser antecipado para qualquer momento no caso de se registrarem arbitrariedades contra os grevistas."
novomilenio.inf.br - Santos - Histórias e Lendas
segunda-feira, 24 de abril de 2006
Piódão - Arquitectura
Subindo pela escarpa abrupta em forma de anfiteatro, humildemente entalhada na paisagem que a envolve, a aldeia do Piódão mantém ainda o traçado antigo e irregular, tão característico das aldeias medievais.
A sensação de harmonia e integração no meio é de tal forma intensa, que tudo parece ter sido concebido de uma só vez, numa genial composição urbanística.
Ruas estreitas e sinuosas abrem-se aqui e além em recantos diversificados. Solta-se a vista do chão de xisto, quando do fundo se ouvem as águas da ribeira do Piódão, entrecruzadas pelo chilrear cristalino da passarada.
Ou esbarra então o olhar, nas paredes escuras do casario, para enfim se elevar pela montanha que o domina, até ao cume quase coberto pelas nuvens.
No chão, nas paredes das casas, e nas lousas que lhes servem de cobertura, o xisto impera par toda a aldeia, pontilhada pelo azul forte das portas e dos frisos das janelas. A unidade da cor é explicada como consequência do isolamento a que o Piódão esteve sujeito: a loja do Píodão só vendia tinta de uma cor, tal era a inacessibilidade do lugar.
0 interior das casas era geralmente dividido em dois pisos: em baixo um piso amplo, a loja, destinado a guardar os produtos de uma bem organizada agricultura de subsistência; e em cima, a madeira de castanho formava as divisões que constituíam a habitação da família.
Por cima de muitas das portas da aldeia vêem-se ainda algumas pequenas cruzes, diz-se, para afastar a trovoada. No domingo de Ramos os fiéis levam um ramo de oliveira para benzer e, nas noites de tempestade, fazem com ele uma cruz que é posta em cima das brasas da lareira ou na porta principal, invocando assim a protecção de Santa Bárbara para afastar a trovoada.
As casas descem de socalco em socalco ao sabor do monte, para se alargarem então na vasta praça que constitui o centro, a sala de visitas do Piódão, onde se ergue, orgulhosamente imaculada, a pequena Igreja Matriz.
A sensação de harmonia e integração no meio é de tal forma intensa, que tudo parece ter sido concebido de uma só vez, numa genial composição urbanística.
Ruas estreitas e sinuosas abrem-se aqui e além em recantos diversificados. Solta-se a vista do chão de xisto, quando do fundo se ouvem as águas da ribeira do Piódão, entrecruzadas pelo chilrear cristalino da passarada.
Ou esbarra então o olhar, nas paredes escuras do casario, para enfim se elevar pela montanha que o domina, até ao cume quase coberto pelas nuvens.
No chão, nas paredes das casas, e nas lousas que lhes servem de cobertura, o xisto impera par toda a aldeia, pontilhada pelo azul forte das portas e dos frisos das janelas. A unidade da cor é explicada como consequência do isolamento a que o Piódão esteve sujeito: a loja do Píodão só vendia tinta de uma cor, tal era a inacessibilidade do lugar.
0 interior das casas era geralmente dividido em dois pisos: em baixo um piso amplo, a loja, destinado a guardar os produtos de uma bem organizada agricultura de subsistência; e em cima, a madeira de castanho formava as divisões que constituíam a habitação da família.
Por cima de muitas das portas da aldeia vêem-se ainda algumas pequenas cruzes, diz-se, para afastar a trovoada. No domingo de Ramos os fiéis levam um ramo de oliveira para benzer e, nas noites de tempestade, fazem com ele uma cruz que é posta em cima das brasas da lareira ou na porta principal, invocando assim a protecção de Santa Bárbara para afastar a trovoada.
As casas descem de socalco em socalco ao sabor do monte, para se alargarem então na vasta praça que constitui o centro, a sala de visitas do Piódão, onde se ergue, orgulhosamente imaculada, a pequena Igreja Matriz.
À noite, quando os candeeiros despejam a sua luz suave e amarelecida, toda a Aldeia parece metamorfosear-se num presépio iluminado e vivo, merecendo bem a designação de Aldeia Presépio.
É provável que a primitiva igreja do Piódão, dedicada ao culto de Nossa Senhora da Conceição, tenha sido construída no decurso do séc. XVII, conforme apontam algumas referências. Conta-se que um dia os habitantes juntaram todo o ouro disponível e mandaram um velho pastor pedir ao Bispo de Coimbra autorização para construir a igreja. Perante tão dispendiosa solicitação, preparava-se o Bispo para recusar o pedido, quando o velho pastor, abrindo o seu barrete serrano, lhe mostrou as luzidias moedas de ouro necessárias a tal empreitada,
A existência de uma escultura em calcário dedicada a Nossa Senhora da Conceição da segunda metade desse século e anterior a 1676, data da criação da freguesia, poderá também ser contemporânea da edificação da Igreja.
No final do séc. XIX a fachada da Igreja Matriz ameaçava ruir e foi reconstruida ao sabor do gosto neo-barroco, ecléctico e romântico da época, por iniciativa do cónego Manuel Fernandes Nogueira.
As quatro finas torres cilíndricas rematadas em cones, parecem conferir movimento à frontaria, enquanto a torre sineira de planta quadrada se encosta a meio da fachada sul da Igreja.
Os três retábulos que alberga datam do séc. XVIII, originariamente em talha dourada. A restauração a que foi submetida há alguns anos, retirou do seu interior os belos azulejos oitocentistas com motivos florais azuis e de fabrico coimbrão.
Perto da Igreja podem-se ainda descobrir as ruínas de um mosteiro dos monges de Cister, ordem religiosa reformada por S. Bernardo de Clairvaux. Os monges brancos de S. Bernardo construíam sempre os seus mosteiros em estreitos vales - Benedictus montes, Bernardus valles - tal como fizeram no Piódão, e a enorme influência que exerceram em todas as vertentes da cultura portuguesa, remonta já aos tempos da Reconquista.
Aldeia do Piódão/Turismo Rural/C.M.C.
domingo, 23 de abril de 2006
A História de um Povo
As primeiras casas que formavam a Camba, ainda hoje se podem ver ao fundo da aldeia, num local hoje designado de Povo de Baixo. Deste aglomerado, parte das casas estão já em ruínas e outras foram reconstruídas. A CAMBA NOS ANOS 50 No século IX, a Camba fazia parte da freguesia de Vale d`Égua, concelho de Fajão, extinto nesse século. Hoje a aldeia de Vale d`Égua, não é mais do que um conjunto de ruínas, deslocando-se a população para aldeias vizinhas, principalmente para Camba.
Os Cambenses dedicavam-se essencialmente à agricultura, tendo como produção principal o milho. A pastorícia foi outra grande actividade. Era frequente encontrar grandes rebanhos de cabras pelas encostas, por esse facto, a vegetação naquela época era rara, e ainda, devido às frequentes roças que o mato era sujeito, para colocar nos currais e servir de estrume para as terras (esterco). Cada família, criava o seu Porco que fornecia carne para todo o ano, conservada em salgadeiras. A apicultura e o fabrico da famosa aguardente de mel, constituia uma ocupação comum a todas as familias. Para adquirir produtos diversos, a loja mais próxima era no Porto da Balsa, surgindo depois em Camba a tasca do Ti Zé dos Santos e a do Ti Eduardo, que serviam também de local de encontro e convívio.
No ano de 1948, com o inicio da construção da Barragem do Alto Ceira e dos túneis de canalização de água, que perfuram as serras até levar água para a Barragem de Stª Luzia, a vida dos Cambenses sofre algumas alterações. Esta obra da responsabilidade da antiga Companhia Eléctrica das Beiras, deu emprego a muitos Cambenses, homens e mulheres, quer na apanha de seixos, quer na abertura dos túneis, construção de estradas e barragem.
Ainda hoje se sentem os efeitos desse trabalho árduo, devido ás terriveis condições de trabalho dessa época, especialmente dentro túneis, resultando em doenças respiratórias graves e outras que têm feito as suas vitimas entre os Cambenses e todos os que alí trabalharam.
A construção da barragem trouxe a estas paragens gente de vários pontos do país, acabando alguns por criar laços familiares com Cambenses e se fixarem em Camba. Com a conclusão da obra, os Serviços Florestais foram outra ocupação para grande número de Cambenses, empregados na abertura de estradas e plantação de floresta nas encostas da região. Com o fim dos postos de trabalho na região, a maioria dos Cambenses, principalmente os homens, debandaram para as grandes cidades em busca de emprego, ficando em Camba na sua maioria mulheres e crianças que continuaram a ocupar-se da agricultura e dos seus rebanhos, acabando mais tarde por se juntar aos seus, principalmente as crianças que cedo deixaram a Camba em busca de uma vida melhor.
Apesar da grande maioria dos Cambenses ter deixado a sua terra, o seu amor e dedicação a Camba é enorme. Presentemente a aldeia está bastante mais desenvolvida a todos os níveis. O número de habitações duplicou nos ultimos 50 anos, o que fez surgir outras actividades como são a construção civil e o comércio.
Existem dois estabelecimentos comerciais em Camba, o Ti Mário e o Bar da Casa de Convívio, locais onde hoje em dia os Cambenses se juntam para conviver, conversar e adquir alguns produtos. A pastoricia é uma actividade quase nula, restando apenas um rebanho. Os Cambenses dedicam-se hoje em dia á produção e comercialização de Mel de excelente qualidade, Aguardente de Mel, Castanhas e Batata.
A Camba é um ponto de passagem para muitos automobilistas e turistas, sendo possivel pernoitar na nossa aldeia em quartos que poderão ser alugados na nossa Casa de Convivio. As vias de comunicação estão a ser melhoradas em toda a região do Alto Ceira, sendo já possivel ter acesso á sede do concelho por estrada alcatroada, assim como para as aldeias vizinhas. A aldeia está a ficar com um aspecto agradável, dispondo já de algumas infraestruturas básicas, levadas a cabo pela autarquia e pela Comissão Associativa de Melhoramentos de Camba, como são por exemplo a Casa de Convívio, calcetamento de ruas, abastecimento de àgua, recinto polidesportivo, implantação de Posto Médico servindo as aldeias vizinhas com médico de 15 em 15 dias.
A Camba é presentemente visitada por muitos, cativados pela simpatia das suas gentes que gostam de receber bem e mostrar as belezas da sua regiãoContudo, muitos colocam a questão: “Como será a Camba no futuro?”. Existe alguma apreensão quanto ao futuro, visto que a juventude não se fixa na região, não há postos de trabalho e a saída é inevitável. No entanto, o crescimento da aldeia não pára, com a recuperação e construção de novas casas todos os anos, crescimento facilitado agora com a revisão do Plano Director Municipal (PDM), que diminui os entraves á construção. Mas será no futuro uma aldeia grande mas deserta? Pensamos e temos confiança que não.
O desenvolvimento do turismo será uma aposta e o retorno á aldeia dos reformados será uma realidade. È urgente criar condições para que a população se fixe na aldeia. A juntar ao melhoramento das estradas, será necessário melhorar o nivel de vida, divulgando produtos da região e fumentando a sua comercialização.
A Comissão Associativa de Melhoramentos de Camba, tem projectos para melhorar infraestruturas, afim de chamar para Camba a juventude e o turismo, tornando a aldeia ainda mais cativante, como por exemplo a construção de uma Piscina Fluvial no Rio Ceira, na zona da Carvalha, melhoramento do ringue polidesportivo e recinto de festas, apetrechamento e modernização da Casa de Convívio para utilização durante todo o ano, etc.
(Comissão Associativa de Melhoramentos de CAMBA)
Lugares da Alma
(A Monsenhor Nunes Pereira)
Que sabia estes versos de cor.
Canta-se ainda à noitinha, pela roda de um braseiro. Por invernias, onde se pena de frio.
Por lugares onde Serra, e as Beiras dão de mão. E com o Rio Ceira, sempre encostado em seu perfeito ciúme.
O ciúme que o rio tem daquela Serra.. E por lugares, e mundos como Ceiroquinho.
Boiças, Algares, Relvas, Teixeira e Água d’Alte. Caratão, Porto da Balsa, Castanheira.
Fajão, Góis. Ou ainda Celavisa, Arganil, Gralhas, Vale da Maceira, Sargaçosa.
Ou (e fique-se por aqui): Barrigueiro, Ponte das Três Entradas, Mata. Mas é verdade.
Ainda se canta por estes lugares, com uma guitarra servindo de base. A base necessária ao mote geral da fagulha, saltando no madeiro.
Ainda se canta por aqui (soprando aos ares, e ao frio da noite), coisas da chuva e do vento. Algumas até bem transpiradas:
Esta noite sonhei eu,
A outra sonhado tinha,
Que estava na tua cama,
Acordei, estava na minha.
Tudo, praticamente tudo, o que aqui pertence, que pertence a estes lugares, é chamado a um versejar popular. A porta, e seu trinco.
A rola, e suas queixas. O provento que o pai ganha.
A sede, e a boca (na sua fonte). O terreiro, o vira, o adro da igreja, o jogo do pião.
A fruta do chão, o manjerico, o rosmaninho, a baga do loureiro. E ainda mais: o rio, as pedras de lavar, os quintais, as voltas do lugar, a mó, a nora, o lume, a cinza.
É verdade, sim senhora. Ainda se canta por estes lugares, na companhia de um grilo qualquer, que ninguém manda calar.
E para que tal aconteça, basta (apenas) o tempero de uma pinga, que ajude o cantar, a fazer-se delgadinho.
Que sabia estes versos de cor.
Canta-se ainda à noitinha, pela roda de um braseiro. Por invernias, onde se pena de frio.
Por lugares onde Serra, e as Beiras dão de mão. E com o Rio Ceira, sempre encostado em seu perfeito ciúme.
O ciúme que o rio tem daquela Serra.. E por lugares, e mundos como Ceiroquinho.
Boiças, Algares, Relvas, Teixeira e Água d’Alte. Caratão, Porto da Balsa, Castanheira.
Fajão, Góis. Ou ainda Celavisa, Arganil, Gralhas, Vale da Maceira, Sargaçosa.
Ou (e fique-se por aqui): Barrigueiro, Ponte das Três Entradas, Mata. Mas é verdade.
Ainda se canta por estes lugares, com uma guitarra servindo de base. A base necessária ao mote geral da fagulha, saltando no madeiro.
Ainda se canta por aqui (soprando aos ares, e ao frio da noite), coisas da chuva e do vento. Algumas até bem transpiradas:
Esta noite sonhei eu,
A outra sonhado tinha,
Que estava na tua cama,
Acordei, estava na minha.
Tudo, praticamente tudo, o que aqui pertence, que pertence a estes lugares, é chamado a um versejar popular. A porta, e seu trinco.
A rola, e suas queixas. O provento que o pai ganha.
A sede, e a boca (na sua fonte). O terreiro, o vira, o adro da igreja, o jogo do pião.
A fruta do chão, o manjerico, o rosmaninho, a baga do loureiro. E ainda mais: o rio, as pedras de lavar, os quintais, as voltas do lugar, a mó, a nora, o lume, a cinza.
É verdade, sim senhora. Ainda se canta por estes lugares, na companhia de um grilo qualquer, que ninguém manda calar.
E para que tal aconteça, basta (apenas) o tempero de uma pinga, que ajude o cantar, a fazer-se delgadinho.
Jorge Serrão
sábado, 22 de abril de 2006
Testemunhos 4
"Quando era a época das castanhas comia-mo-las assadas à lareira; por vezes a fome era tanta que eu engolia umas cruas, outras a escaldar, outras ainda com camisa, algumas até marchavam com casca, só com medo que os meus irmãos tirassem mais do que eu.
De vez em quando um deles berrava:
- Mãe, o Fernando está a comer as castanhas com camisa!
E, eu com a boca cheia, fazia que não. Entretanto ia enchendo os bolsos para depois".
(Fernando Pimenta, Cerdeira)
"Havia um velho do Vale Derradeiro que andava a regatear os preços na feira do Mont´Alto. Alguém viu e disse:
- Deixa lá o velho do Vale Derradeiro, que se lhe deres um pontapé no migalheiro chega para pagar a tenda e o tendeiro.
Ora, uns ladrões ouviram isto e logo resolveram ir a casa dele, mas revolveram tudo sem encontrar o dito dinheiro. Então, ameaçaram-no de morte e ele, coitado, teve de dizer que as suas poupanças estavam escondidas no corticito. Eles foram lá e levaram-lhe tudo, tudo, quanto tinha."
(História recolhida na Malhada Chã)
"Vira-se no Colmeal um que já morreu para o Padre que, coitado, também já morreu:
- Ó Senhor Padre, ficou-me um bocado de carne de porco espetada nos dentes desde o Entrudo até agora. Será pecado comê-la na Quaresma?
Responde-lhe o Padre:
- Bem, homem... se ela já lá está suponho que não será pecado...
Vai ele e atira-lhe:
- Então olhe, muito obrigado pelo indulto. É que eu tenho um presunto espetado nos dentes da forquilha e estou com umas ganas de comer nele..."
(História contada por Maria da Luz, da Aldeia Velha, Colmeal)
"Certo dia, na altura do racionamento (1945/46), vinha o Ti Alberto das bandas do Soeirinho com dois quilos de "açúcar ilegal" dentro da maleta de relojoeiro, eis senão quando topa com a Guarda, que logo o manda parar e pede para abrir aquela estranha mala metálica.
- Com que então açúcar! -Diz-lhe, triunfante, o cabo.
- Que, senhor guarda - responde ele logo. - É potassa!
E assim, por entre sorrisos cúmplices, se saiu o "Ti Alberto relojoeiro" desta embrulhada, continuando sem mais delongas o seu caminho."
(História recolhida nos Cepos)
Dr. Paulo Ramalho, Tempos Difíceis- Tradição e Mudança na Serra do Açor
De vez em quando um deles berrava:
- Mãe, o Fernando está a comer as castanhas com camisa!
E, eu com a boca cheia, fazia que não. Entretanto ia enchendo os bolsos para depois".
(Fernando Pimenta, Cerdeira)
"Havia um velho do Vale Derradeiro que andava a regatear os preços na feira do Mont´Alto. Alguém viu e disse:
- Deixa lá o velho do Vale Derradeiro, que se lhe deres um pontapé no migalheiro chega para pagar a tenda e o tendeiro.
Ora, uns ladrões ouviram isto e logo resolveram ir a casa dele, mas revolveram tudo sem encontrar o dito dinheiro. Então, ameaçaram-no de morte e ele, coitado, teve de dizer que as suas poupanças estavam escondidas no corticito. Eles foram lá e levaram-lhe tudo, tudo, quanto tinha."
(História recolhida na Malhada Chã)
"Vira-se no Colmeal um que já morreu para o Padre que, coitado, também já morreu:
- Ó Senhor Padre, ficou-me um bocado de carne de porco espetada nos dentes desde o Entrudo até agora. Será pecado comê-la na Quaresma?
Responde-lhe o Padre:
- Bem, homem... se ela já lá está suponho que não será pecado...
Vai ele e atira-lhe:
- Então olhe, muito obrigado pelo indulto. É que eu tenho um presunto espetado nos dentes da forquilha e estou com umas ganas de comer nele..."
(História contada por Maria da Luz, da Aldeia Velha, Colmeal)
"Certo dia, na altura do racionamento (1945/46), vinha o Ti Alberto das bandas do Soeirinho com dois quilos de "açúcar ilegal" dentro da maleta de relojoeiro, eis senão quando topa com a Guarda, que logo o manda parar e pede para abrir aquela estranha mala metálica.
- Com que então açúcar! -Diz-lhe, triunfante, o cabo.
- Que, senhor guarda - responde ele logo. - É potassa!
E assim, por entre sorrisos cúmplices, se saiu o "Ti Alberto relojoeiro" desta embrulhada, continuando sem mais delongas o seu caminho."
(História recolhida nos Cepos)
Dr. Paulo Ramalho, Tempos Difíceis- Tradição e Mudança na Serra do Açor
Testemunhos 3
...) "Ia a passar coberto de suor, dei as boas tardes a uma vaga forma feminina sentada à entrada da sua furna de troglodita, e recebo, juntamente com o troco de salvação, este juro imprevisto:- O senhor vai alagado! Quer beber uma pinga? Ele é arreganhado, mas para um remedeio...- Bem haja...- Prove, ao menos. Nós achamo-lo bom, porque não temos outro...Azedo como rabo-de gato, realmente, mas dado com a infinita doçura deste santo povo (...) a quem nenhum desterro, nenhum abandono, nenhuma incultura, nenhuma pobreza consegue avinagrar o coração."
Miguel Torga, in "Diário IX" (Piódão, 16 de Dezembro de 1962)
Testemunhos 2
"O quarto tinha as paredes forradas com jornais velhos, luxo com que distinguiam o hóspede... Deitei-me, e passado pouco tempo, qualquer coisa a mexer entre a parede e os jornais produzia uns ruídos que não me deixavam adormecer.
Chamei o meu anfitrião (...) e contei-lhe o que se passava.
Veio e descobriu: - São os ratos, que querem furar os papéis.
Saiu, foi agarrar um gato e deixou-o fechado no quarto de sentinela."
Vasco de Campos in "Serra! Caminhos de um Médico"
Chamei o meu anfitrião (...) e contei-lhe o que se passava.
Veio e descobriu: - São os ratos, que querem furar os papéis.
Saiu, foi agarrar um gato e deixou-o fechado no quarto de sentinela."
Vasco de Campos in "Serra! Caminhos de um Médico"
Testemunhos
"Estas salas (...) eram caiadas e nessas paredes já muito antigas havia sempre muitos buracos, que davam sempre um aspecto de penúria, pelo que as pessoas, em especial nas quadras festivas, usavam forrar as paredes com papel de jornais que se iam pedir a uns senhores que eram assinantes da Comarca de Arganil, que sempre os guardavam, para esse fim. Assim as paredes eram vestidas com esses jornais, tornando-se limpas e airosas, mas não por muito tempo, uma vez que os jornais eram colados com farinha amassada, que também servia de alimento para os ratos, que logo se encarregavam de destruir toda essa decoração."
António Santos Vicente in "Vida e Tradições das Aldeias Serranas"
António Santos Vicente in "Vida e Tradições das Aldeias Serranas"
sexta-feira, 21 de abril de 2006
A espiral do tempo
"A gente se quiser até com os olhos vê."
Sr. André, Aldeia Velha
Na serra todos os relógios pararam, mas o mecanismo das horas não se deteve. A espiral do tempo arrastou-nos até ao fim do milénio.
Olhemos para trás antes de começar uma nova era.
O Passado
Do passado restam-nos apenas velhos objectos com as suas histórias cruzadas e algumas recordações numa gaveta qualquer. E no entanto, no recanto puro da memória, guardamos saudade a esses tempos que foram difíceis.
Alguém sabe que lembrança guardarão os nossos filhos destes dias desvairados que lhes damos a viver?
A nossa civilização chegou à sua última encruzilhada: agora, ou consumimos o que resta do planeta ou reciclamos quase todos os nossos hábitos e atitudes.
Olhemos de novo para trás, a colher os últimos ensinamentos, antes de nos aventurarmos para lá da curva da estrada.
O passado não é uma história de encantar. Houve miséria, por vezes fome; e aos filhos da Serra sempre coube, nas alturas da crise, o ingrato papel de espelho onde se reflectiam, ampliadas, as agruras e injustiças do Mundo
Mas a vida simples das gentes serranas encerra uma lição de harmonia, sóbria dignidade e utilização comedida dos recursos, que pode ser o ponto de partida para uma reflexão sobre as características mais perversas da nossa própria Sociedade de Consumo.
Reparemos, por exemplo, no modo como todos os utensílios eram remendados, reaproveitados ou reutilizados em novos contextos. Nada se desperdiçava ou deitava fora; não havia tanto lixo nem se acumulavam objectos supérfluos.
A Arte de Remendar
Cada utensílio era um bem raro, feito com suor do rosto ou comprado à custa de grandes sacrifícios; seria por isso normal que durasse uma vida.
Os sarrões, as gamelas e os funis remendados, a louça quebrada e depois reparada com gatos - estes objectos, depois de passarem de mão em mão, falam-nos agora de um tempo em que poupar era tão normal quanto, hoje em dia, gastar e consumir indiscriminadamente.
A Arte de Improvisar
Por vezes havia que improvisar, com grande dose de imaginação, os utensílios que faltavam ou as ferramentas a que a bolsa não chegava - um serrote, uma escumadeira, um fumigador, um funil, etc.
Assim se cumpria, com bastante mais eficiência do que nos dias de hoje, uma das principais leis do universo.
Objectos com Múltiplas Utilizações
A alenterna de ir regar o milho à noite era a mesma com que se aluminavam as casas; na panela de ferro em que se fazia comida do porco, coziam-se depois as farinheiras; o balde de transportar a vianda do animal também servia para tirar a água do poço; no banco onde se matava o bicho, se mandava sentar o padre pela Páscoa; a cesta onde se acartava esterco servia às vezes de berço a um filho recém-nascido; com a sertã de fritar as filhós faziam-se candeias de quatro torcidas, nos lagares; a gaveta da broa era usada como assento na cozinha; um garfo de ferreiro fazia também as vezes de palito e de arpão para as enguias; com uma bilha de carvoeiro se aquecia a cama no Inverno; numa mala de carpinteiro se guardavam os tarecos para emigrar; os gasómetros das minas também aluminavam as casas dos mineiros; no "cesto de romaria" se enviavam encomendas para Lisboa; a gamela da broa era a mesma da migadura para a sopa ou para as galinhas.
O Futuro
Terras de pão que só dão silvas; levadas atulhadas de cascalho; muros derrubados; portas que dão para casas vazias; telhados que caem para dentro; varandas que apodrecem, debruçadas sobre ruas desertas; pinheiros onde antes havia mato para gado; fogos; eucaliptos depois dos fogos; ribeiras secas; erosão - cresceu um enorme deserto nos escombros da nossa memória colectiva e paira sobre ele a recordação de tempos que foram difíceis.
Mas a Serra é um segredo bem guardado pelas suas gentes. O seu coração ainda bate em todos estes objectos e fotografias que balançam em frente aos nossos olhos. Há neles uma lógica que se esconde e revela, um jogo contraditório de sombras e de luzes; há, já não miséria, mas beleza e harmonia à espera do novo século que se aproxima.
Saberemos nós construir os alicerces desses dias futuros sobre as raízes sãs dos dias passados? As próximas gerações comerão o pão que nós amassarmos.
Sr. André, Aldeia Velha
Na serra todos os relógios pararam, mas o mecanismo das horas não se deteve. A espiral do tempo arrastou-nos até ao fim do milénio.
Olhemos para trás antes de começar uma nova era.
O Passado
Do passado restam-nos apenas velhos objectos com as suas histórias cruzadas e algumas recordações numa gaveta qualquer. E no entanto, no recanto puro da memória, guardamos saudade a esses tempos que foram difíceis.
Alguém sabe que lembrança guardarão os nossos filhos destes dias desvairados que lhes damos a viver?
A nossa civilização chegou à sua última encruzilhada: agora, ou consumimos o que resta do planeta ou reciclamos quase todos os nossos hábitos e atitudes.
Olhemos de novo para trás, a colher os últimos ensinamentos, antes de nos aventurarmos para lá da curva da estrada.
O passado não é uma história de encantar. Houve miséria, por vezes fome; e aos filhos da Serra sempre coube, nas alturas da crise, o ingrato papel de espelho onde se reflectiam, ampliadas, as agruras e injustiças do Mundo
Mas a vida simples das gentes serranas encerra uma lição de harmonia, sóbria dignidade e utilização comedida dos recursos, que pode ser o ponto de partida para uma reflexão sobre as características mais perversas da nossa própria Sociedade de Consumo.
Reparemos, por exemplo, no modo como todos os utensílios eram remendados, reaproveitados ou reutilizados em novos contextos. Nada se desperdiçava ou deitava fora; não havia tanto lixo nem se acumulavam objectos supérfluos.
A Arte de Remendar
Cada utensílio era um bem raro, feito com suor do rosto ou comprado à custa de grandes sacrifícios; seria por isso normal que durasse uma vida.
Os sarrões, as gamelas e os funis remendados, a louça quebrada e depois reparada com gatos - estes objectos, depois de passarem de mão em mão, falam-nos agora de um tempo em que poupar era tão normal quanto, hoje em dia, gastar e consumir indiscriminadamente.
A Arte de Improvisar
Por vezes havia que improvisar, com grande dose de imaginação, os utensílios que faltavam ou as ferramentas a que a bolsa não chegava - um serrote, uma escumadeira, um fumigador, um funil, etc.
Assim se cumpria, com bastante mais eficiência do que nos dias de hoje, uma das principais leis do universo.
Objectos com Múltiplas Utilizações
A alenterna de ir regar o milho à noite era a mesma com que se aluminavam as casas; na panela de ferro em que se fazia comida do porco, coziam-se depois as farinheiras; o balde de transportar a vianda do animal também servia para tirar a água do poço; no banco onde se matava o bicho, se mandava sentar o padre pela Páscoa; a cesta onde se acartava esterco servia às vezes de berço a um filho recém-nascido; com a sertã de fritar as filhós faziam-se candeias de quatro torcidas, nos lagares; a gaveta da broa era usada como assento na cozinha; um garfo de ferreiro fazia também as vezes de palito e de arpão para as enguias; com uma bilha de carvoeiro se aquecia a cama no Inverno; numa mala de carpinteiro se guardavam os tarecos para emigrar; os gasómetros das minas também aluminavam as casas dos mineiros; no "cesto de romaria" se enviavam encomendas para Lisboa; a gamela da broa era a mesma da migadura para a sopa ou para as galinhas.
O Futuro
Terras de pão que só dão silvas; levadas atulhadas de cascalho; muros derrubados; portas que dão para casas vazias; telhados que caem para dentro; varandas que apodrecem, debruçadas sobre ruas desertas; pinheiros onde antes havia mato para gado; fogos; eucaliptos depois dos fogos; ribeiras secas; erosão - cresceu um enorme deserto nos escombros da nossa memória colectiva e paira sobre ele a recordação de tempos que foram difíceis.
Mas a Serra é um segredo bem guardado pelas suas gentes. O seu coração ainda bate em todos estes objectos e fotografias que balançam em frente aos nossos olhos. Há neles uma lógica que se esconde e revela, um jogo contraditório de sombras e de luzes; há, já não miséria, mas beleza e harmonia à espera do novo século que se aproxima.
Saberemos nós construir os alicerces desses dias futuros sobre as raízes sãs dos dias passados? As próximas gerações comerão o pão que nós amassarmos.
Dr.Paulo Ramalho, Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
quinta-feira, 20 de abril de 2006
Continua a Primavera
Este governo
Este governo, estes senhores, esta sequência de nomes de pessoas, acontecimentos ou factos estabelecidos por ordem de datas sucessivas, marca a maneira, o tempo, de actuar desta época rosa. A história encarregar-se-á de ser a ciência auxiliar de muitas memórias curtas.
Kate Walker
Syberia desafia o jogador a resolver enigmas na pessoa de Kate, advogada de New York em representação de uma companhia americana que quer comprar uma fábrica em Valadilene, França. O negócio com a proprietária de nome Anna Voralberg, oriunda de uma família rica, torna-se complicado. Kate descobre que Ann morreu. A venda da fábrica torna-se assim um problema. Ann deixa uma espécie de testamento onde indica o nome de um irmão, Hans Voralberg, agora o legítimo dono da fábrica.
Kate deve viajar a diversos lugares na busca de Hans com o propósito de negociar a venda da fábrica. Ela descobre que há muitas coisas na história da família que não se encaixam e não são bem o que parecem.
Kate deve viajar a diversos lugares na busca de Hans com o propósito de negociar a venda da fábrica. Ela descobre que há muitas coisas na história da família que não se encaixam e não são bem o que parecem.
Objectos
Objectos com Múltiplas Utilizações
A alenterna de ir regar o milho à noite era a mesma com que se aluminavam as casas; na panela de ferro em que se fazia comida do porco, coziam-se depois as farinheiras; o balde de transportar a vianda do animal também servia para tirar a água do poço; no banco onde se matava o bicho, se mandava sentar o padre pela Páscoa; a cesta onde se acartava esterco servia às vezes de berço a um filho recém-nascido; com a sertã de fritar as filhós faziam-se candeias de quatro torcidas, nos lagares; a gaveta da broa era usada como assento na cozinha; um garfo de ferreiro fazia também as vezes de palito e de arpão para as enguias; com uma bilha de carvoeiro se aquecia a cama no Inverno; numa mala de carpinteiro se guardavam os tarecos para emigrar; os gasómetros das minas também aluminavam as casas dos mineiros; no "cesto de romaria" se enviavam encomendas para Lisboa; a gamela da broa era a mesma da migadura para a sopa ou para as galinhas.
Dr.Paulo Ramalho, Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
quarta-feira, 19 de abril de 2006
Fajão
...Um campo de erva queimada, ao centro, uma pequena elevação de terreno. Declives moderados à esquerda, à direita e à frente.
Do lado de trás, declive abrupto. O máximo de simplicidade e simetria. /...
Beckett, Samuel / Dias Felizes
Do lado de trás, declive abrupto. O máximo de simplicidade e simetria. /...
Penedos de Fajão
Entre estes penedos
que daqui parecem,
verdes ervas crecem,
altos arvoredos.
Vai destes rochedos
água com que as flores
d'outras são regadas
que matam d'amores.
Co a água que cai
daquela espessura,
outra se mestura
que dos olhos sai:
toda junta vai
regar brancas flores,
onde há outros olhos
que matam d'amores.
Celestes jardins,
as flores, estrelas,
horteloas delas
são uns serafins.
Rosas e jasmins
de diversas cores;
Anjos que as regam
matam-me d'amores.
Redondilhas. Camões
Interminavelmente
E não me admiraria nada , a continuar esta Primavera do nosso descontentamento, que um dia destes caia o governo.
terça-feira, 18 de abril de 2006
Nas faldas da Serra do Açor
Há muitos séculos que as verdes pastagens da Serra do Açor atraíam grupos de pastores que para aí levavam os seus rebanhos. Diz-se mesmo que esses pastores seriam os Lusitanos, hábeis criadores de cavalos que povoavam os Montes Hermínios (Estrela).
Ao longo dos tempos as populações foram criando condições para a sua subsistência, conquistando à Serra cada pequena leira cultivada em socalcos. A agricultura, a pastorícia e a apicultura constituíram assim as principais actividades das populações do Piódão.
Pelo alto da Serra do Açor, próximo do Piódão, passava a antiga estrada real que ligava Coimbra à Covilhã por onde circulavam caravanas de carros de bois que traziam do litoral o peixe e o sal para levarem no regresso a carne, o queijo e os lanifícios destas terras do interior. Por ali passavam mercadores e pastores e até salteadores. Diz-se também que terão sido os ataques dos salteadores que incentivaram a união dos solitários pastores, espalhados por aquelas agrestes penedias onde criavam éguas, cavalos, ovelhas e cabras.
Situado num vale profundo e isolado, escondido nas faldas da Serra do Açor, o Piódão foi considerado, desde tempos remotos, como o local de eleição para refúgio de muitos foragidos da justiça. Ali se terá acolhido o fidalgo Diogo Lopes Pacheco, o único dos assassinos de D. Inês de Castro que logrou escapar à fúria de D. Pedro, quando, em segredo, vinha de Espanha a Portugal. Também aqui se teria refugiado João Brandão, misto de herói e assassino. Diz-se dele que atacava os seus inimigos pela calada da noite para se refugiar durante o dia em casa do Pároco do Piódão. E fala-se ainda de outros salteadores, em tempos mais ou menos remotos, como José do Telhado ou o Oliveirão.
Na sua origem a população pode ter alguns fora-da-lei, mas tem também a fidalguia e abastança dos seus senhores, com direito a tribuna própria na Igreja da Lourosa. Foi desta memória que ficou uma conhecida quadra popular.
"Gente nobre do Piódão
Gente de grande tesouro
Vão à missa à Lourosa
Com as suas esporas de ouro."
A criação da freguesia do Piódão data de 1676 e há notícia de ter sido um curato de apresentação anual no cabido da Sé de Coimbra.
No final de Oitocentos o Piódão transformou-se no pólo cultural de uma vasta região beirã por obra do seu jovem pároco, o padre Manuel Fernandes Nogueira, ali colocado em 1885 quando tinha apenas 25 anos. A ele se ficou a dever a fundação do seminário-colégio em 1886 que preparava os jovens para os estudos universitários e, mais frequentemente, para a vida eclesiástica. E ali ensinava, quase sozinho, todas as disciplinas do curso preparatório do Seminário.
Tendo funcionado até l906, a qualidade do ensino do Colégio do Piódão ultrapassou os limites do seu isolamento, atraindo centenas de jovens oriundos das mais diversas terras dos concelhos de Coimbra, Guarda e Castelo Branco. Alguns dos seus alunos tornaram-se depois figuras de destaque na vida política e eclesiástica Portuguesa.
A acção do padre Manuel Fernandes Nogueira, actualmente homenageado por uma estátua no largo da aldeia, não se limitou ao aspecto académico e cultural da povoação. Incentivou o desenvolvimento da agricultura e da silvicultura, criando na população laços estreitos de vida comunitária, e participando activamente no desenvolvimento económico da freguesia. Com o encerramento do Colégio, retoma-se o antigo esquecimento, interrompido a breves espaços pelos esforços isolados dos seus povos.
Só na década de 70 é que o Piódão consegue enfim aceder, e se tornar acessível, ao resto do mundo, com a abertura da estrada até à aldeia, em 1972, e a instalação de energia eléctrica, em 1978. Até àquela data, a única estrada existente terminava a cerca de 12 Km do Piódão e a distância só podia ser ultrapassada a pé, por caminhos demasiado estreitos para permitir a passagem dos carros de bois.
Tempos difíceis ainda frescos na memória das suas gentes, amenizados todavia por uma vida comunitária de entreajuda. Tempos idos em o povo do Piódão moldava o destino com as próprias mãos.
Por todo o povoado nasce agora uma sensação de vazio: a estrada que lhes trouxe o conforto dos tempos modernos, quebra-lhes a solidariedade e a vontade, tira-lhes o destino das mãos e leva-lhes para longe os filhos da terra.
Ficam os mais velhos trabalhando os estreitos socalcos de terra pouco profunda onde a máquina não pode trabalhar.
E fica também, ainda, o sabor da chanfana, do cabrito assado ou do presunto e a imprescindível companheira das noites frias de inverno, a aguardente de mel ou de medronho.
Aldeia do Piódão / Turismo Rural / C.M.C.
Ao longo dos tempos as populações foram criando condições para a sua subsistência, conquistando à Serra cada pequena leira cultivada em socalcos. A agricultura, a pastorícia e a apicultura constituíram assim as principais actividades das populações do Piódão.
Pelo alto da Serra do Açor, próximo do Piódão, passava a antiga estrada real que ligava Coimbra à Covilhã por onde circulavam caravanas de carros de bois que traziam do litoral o peixe e o sal para levarem no regresso a carne, o queijo e os lanifícios destas terras do interior. Por ali passavam mercadores e pastores e até salteadores. Diz-se também que terão sido os ataques dos salteadores que incentivaram a união dos solitários pastores, espalhados por aquelas agrestes penedias onde criavam éguas, cavalos, ovelhas e cabras.
Situado num vale profundo e isolado, escondido nas faldas da Serra do Açor, o Piódão foi considerado, desde tempos remotos, como o local de eleição para refúgio de muitos foragidos da justiça. Ali se terá acolhido o fidalgo Diogo Lopes Pacheco, o único dos assassinos de D. Inês de Castro que logrou escapar à fúria de D. Pedro, quando, em segredo, vinha de Espanha a Portugal. Também aqui se teria refugiado João Brandão, misto de herói e assassino. Diz-se dele que atacava os seus inimigos pela calada da noite para se refugiar durante o dia em casa do Pároco do Piódão. E fala-se ainda de outros salteadores, em tempos mais ou menos remotos, como José do Telhado ou o Oliveirão.
Na sua origem a população pode ter alguns fora-da-lei, mas tem também a fidalguia e abastança dos seus senhores, com direito a tribuna própria na Igreja da Lourosa. Foi desta memória que ficou uma conhecida quadra popular.
"Gente nobre do Piódão
Gente de grande tesouro
Vão à missa à Lourosa
Com as suas esporas de ouro."
A criação da freguesia do Piódão data de 1676 e há notícia de ter sido um curato de apresentação anual no cabido da Sé de Coimbra.
No final de Oitocentos o Piódão transformou-se no pólo cultural de uma vasta região beirã por obra do seu jovem pároco, o padre Manuel Fernandes Nogueira, ali colocado em 1885 quando tinha apenas 25 anos. A ele se ficou a dever a fundação do seminário-colégio em 1886 que preparava os jovens para os estudos universitários e, mais frequentemente, para a vida eclesiástica. E ali ensinava, quase sozinho, todas as disciplinas do curso preparatório do Seminário.
Tendo funcionado até l906, a qualidade do ensino do Colégio do Piódão ultrapassou os limites do seu isolamento, atraindo centenas de jovens oriundos das mais diversas terras dos concelhos de Coimbra, Guarda e Castelo Branco. Alguns dos seus alunos tornaram-se depois figuras de destaque na vida política e eclesiástica Portuguesa.
A acção do padre Manuel Fernandes Nogueira, actualmente homenageado por uma estátua no largo da aldeia, não se limitou ao aspecto académico e cultural da povoação. Incentivou o desenvolvimento da agricultura e da silvicultura, criando na população laços estreitos de vida comunitária, e participando activamente no desenvolvimento económico da freguesia. Com o encerramento do Colégio, retoma-se o antigo esquecimento, interrompido a breves espaços pelos esforços isolados dos seus povos.
Só na década de 70 é que o Piódão consegue enfim aceder, e se tornar acessível, ao resto do mundo, com a abertura da estrada até à aldeia, em 1972, e a instalação de energia eléctrica, em 1978. Até àquela data, a única estrada existente terminava a cerca de 12 Km do Piódão e a distância só podia ser ultrapassada a pé, por caminhos demasiado estreitos para permitir a passagem dos carros de bois.
Tempos difíceis ainda frescos na memória das suas gentes, amenizados todavia por uma vida comunitária de entreajuda. Tempos idos em o povo do Piódão moldava o destino com as próprias mãos.
Por todo o povoado nasce agora uma sensação de vazio: a estrada que lhes trouxe o conforto dos tempos modernos, quebra-lhes a solidariedade e a vontade, tira-lhes o destino das mãos e leva-lhes para longe os filhos da terra.
Ficam os mais velhos trabalhando os estreitos socalcos de terra pouco profunda onde a máquina não pode trabalhar.
E fica também, ainda, o sabor da chanfana, do cabrito assado ou do presunto e a imprescindível companheira das noites frias de inverno, a aguardente de mel ou de medronho.
Aldeia do Piódão / Turismo Rural / C.M.C.
segunda-feira, 17 de abril de 2006
A Agricultura na Serra do Açor
A difícil subsistência das populações serranas esteve sempre dependente da relação estreita entre uma agricultura pobre, de cômbaros e pequenos lameiros, e a criação de gado. De tal modo tudo estava tão intimamente ligado, que a criação do porco ou das cabras se cruzava e confundia a todo o momento com as fainas do milho e do centeio ou com o cultivo da batata, do feijão e das botelhas (abóboras).
O milho era o principal sustento: quando faltava o milho faltava tudo. A ele se juntava o feijão, a couve, a batata, o azeite, o vinho, a castanha, o porco, a cabra e pouco mais.
O estrume das lojas era essencial para o sucesso das sementeiras. Por isso, havia que ir ao mato para a cama das cabras, uma dura tarefa quotidiana que muitas vezes se realizava antes do sol nascer.
Agora, com as serras despovoadas de gentes e de gado, há mato em excesso, mas antes, para se encontrar uma boa malha tinham de se percorrer grandes distâncias nos baldios.
Um molho de mato pode ser uma obra de arte quando se sabe enfeixar e depois apertar bem, passando a corda pelo gancho do ervedeiro.
Em Dezembro começava-se a tirar o esterco das lojas e a transportá-lo para os bocados - um trabalho pesado, feito à força de braços e às costas, nas cestas. Por vezes, quando os acessos o permitiam, os carros de bois davam uma ajuda no transporte.
Depois de Fevereiro, as terras começavam a ser voltadas ao encino, de modo a serem preparadas para a sementeira. Como os solos eram magros e quase sempre inclinados, a cava exigia uma técnica especial - começava-se por tirar a terra, abrindo uma vala na parte mais baixa do terreno e acartando a terra às cestas (nas costas, claro) para a parte mais alta, onde era espalhada. Compensava-se, deste modo, o progressivo deslizamento dos solos devido às regas, à chuva e às próprias cavas. Cavada a terra, o esterco era então espalhado nos regos com um encino mais pequeno.
Em Março semeava-se o milho, muitas vezes misturado com feijão, em regos pouco fundos.
Depois, o milho era arralado. Com um metro era feito o empalhado com mato, para conservar a humidade do solo. Estava-se então em Junho - era a altura da primeira rega.
Seguidamente escanava-se (ou tirava-se a bandeira), quando a barba da espiga estava praticamente seca e desfolhava-se a planta quando a espiga começava a aloirar. As folhas e as bandeiras, depois de secas, eram guardadas como alimento de inverno para as cabras, assim se pagando com boa forragem o bom estrume antes recebido.
A rega realizava-se com regularidade até a espiga estar quase madura.
Finalmente, em Setembro, as espigas já secas eram cortadas do canoco e transportadas para casa. Aí, ao serão, eram descamisadas (ou escalpeladas e depois debulhadas.
As descamisadas e as degulhas, em que os grãos de milho eram descasulados (retirados do casulo), eram uma ocasião de entreajuda e convívio: à luz das candeias de azeite desfolhavam-se as maçarocas e depois os homens malhavam, com paus curtos ou manguais, o grande monte de espigas - uma, duas, três vezes, até a maior parte do grão se soltar do casulo.
Sentadas em semi-círculo, as mulheres retiravam dos casulos, com as mãos, os grãos que ainda restavam.
Cantava-se, falava-se da vida deste e daquele e, quer encontrassem ou não o "milho-rei" os rapazes e raparigas solteiros arranjavam um pretexto para namoriscarem.
Depois, vieram as debulhadoras manuais, a seguir as debulhadoras mecânicas, novas qualidades de milho híbrido (já sem "milho-rei") e, por fim, até a mocidade casadoira começou a debandar para as cidades, à cata de outro grão para o seu sustento.
Dr. Paulo Ramalho, in Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
O milho era o principal sustento: quando faltava o milho faltava tudo. A ele se juntava o feijão, a couve, a batata, o azeite, o vinho, a castanha, o porco, a cabra e pouco mais.
O estrume das lojas era essencial para o sucesso das sementeiras. Por isso, havia que ir ao mato para a cama das cabras, uma dura tarefa quotidiana que muitas vezes se realizava antes do sol nascer.
Agora, com as serras despovoadas de gentes e de gado, há mato em excesso, mas antes, para se encontrar uma boa malha tinham de se percorrer grandes distâncias nos baldios.
Um molho de mato pode ser uma obra de arte quando se sabe enfeixar e depois apertar bem, passando a corda pelo gancho do ervedeiro.
Em Dezembro começava-se a tirar o esterco das lojas e a transportá-lo para os bocados - um trabalho pesado, feito à força de braços e às costas, nas cestas. Por vezes, quando os acessos o permitiam, os carros de bois davam uma ajuda no transporte.
Depois de Fevereiro, as terras começavam a ser voltadas ao encino, de modo a serem preparadas para a sementeira. Como os solos eram magros e quase sempre inclinados, a cava exigia uma técnica especial - começava-se por tirar a terra, abrindo uma vala na parte mais baixa do terreno e acartando a terra às cestas (nas costas, claro) para a parte mais alta, onde era espalhada. Compensava-se, deste modo, o progressivo deslizamento dos solos devido às regas, à chuva e às próprias cavas. Cavada a terra, o esterco era então espalhado nos regos com um encino mais pequeno.
Em Março semeava-se o milho, muitas vezes misturado com feijão, em regos pouco fundos.
Depois, o milho era arralado. Com um metro era feito o empalhado com mato, para conservar a humidade do solo. Estava-se então em Junho - era a altura da primeira rega.
Seguidamente escanava-se (ou tirava-se a bandeira), quando a barba da espiga estava praticamente seca e desfolhava-se a planta quando a espiga começava a aloirar. As folhas e as bandeiras, depois de secas, eram guardadas como alimento de inverno para as cabras, assim se pagando com boa forragem o bom estrume antes recebido.
A rega realizava-se com regularidade até a espiga estar quase madura.
Finalmente, em Setembro, as espigas já secas eram cortadas do canoco e transportadas para casa. Aí, ao serão, eram descamisadas (ou escalpeladas e depois debulhadas.
As descamisadas e as degulhas, em que os grãos de milho eram descasulados (retirados do casulo), eram uma ocasião de entreajuda e convívio: à luz das candeias de azeite desfolhavam-se as maçarocas e depois os homens malhavam, com paus curtos ou manguais, o grande monte de espigas - uma, duas, três vezes, até a maior parte do grão se soltar do casulo.
Sentadas em semi-círculo, as mulheres retiravam dos casulos, com as mãos, os grãos que ainda restavam.
Cantava-se, falava-se da vida deste e daquele e, quer encontrassem ou não o "milho-rei" os rapazes e raparigas solteiros arranjavam um pretexto para namoriscarem.
Depois, vieram as debulhadoras manuais, a seguir as debulhadoras mecânicas, novas qualidades de milho híbrido (já sem "milho-rei") e, por fim, até a mocidade casadoira começou a debandar para as cidades, à cata de outro grão para o seu sustento.
Dr. Paulo Ramalho, in Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
domingo, 16 de abril de 2006
"A arte do Absurdo"
"A noção de absurdo se origina desde a Grécia antiga com os filósofos eleatas. O mais famoso discípulo de Parâmides, Zenão de Eléia (século V a.C), já introduzia o absurdo aparente como princípio de raciocínio filosófico, ao provar matematicamente a impossibilidade do movimento, que seria uma ilusão dos sentidos. Diógenes Laércio identificou em Zenão o criador da dialética, isto é, da lógica entendida como redução ao absurdo. Nota-se nas aporias paradoxais (caminhos sem saída) de Zenão uma redução ao absurdo das teses pitagóricas, que atribuíam ao ponto uma determinada dimensão.
Da parte dos sofistas tais métodos serviam para demonstrar, ironicamente, a falsidade das proposições de um adversário. Estabeleceram-se, assim, na escolástica, dois métodos contestatórios: a probatio per absurdum (prova pelo absurdo) e a reductio ad absurdum (redução ao absurdo). No primeiro se pretendia provar a verdade de uma proposição pela falsidade evidente de sua contraditória (por exemplo o Teorema de Pitágoras); no segundo caso ocorria uma inversão do significado inicial de uma proposição, provando-se a sua falsidade pelo exagero de suas conseqüências até o ridículo (por exemplo a Teoria dos Limites, na matemática). A reductio ad absurdum constituía-se, pois, num método irônico de ridicularizar uma doutrina adversária. Através do uso escolástico o absurdo identificou-se na Antiguidade com o conceito de falso.
Muito antes, entretanto, da escolástica, já é possível reconhecer a origem do moderno conceito de absurdo, identificação com o conceito de não racional, de algo fora dos limites da compreensão racional.
Seguindo vertentes diferentes do intelectualismo dos métodos escolásticos, e até mesmo mais antigas ao mesmo, eram as teses religiosas de Tertuliano (155 d.C.). Ele professava que a fé consiste apenas a crença, sem qualquer necessidade de compreensão racional. Ao ser acusado pelos pagãos de defender dogmas absurdos e contrários à razão, Tertuliano respondeu, em sua obra de De Carne Christi (Sobre a carne de Cristo), com a frase, Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo), erroneamente atribuída a santo Agostinho. Alguns dos principais filósofos incorporaram as disposições anti-racionais do Credo quia absurdum, entre eles santo Agostinho, santo Anselmo e são Bernardo de Clairvaux.
A noção do absurdo esteve, assim, latente nas filosofias irracionais ou nas que se recusavam a encontrar uma explicação racional para a existência. Paralelamente a essas filosofias, tal noção encontrava-se também subjacente em muitas expressões artísticas do passado, sobretudo nas manifestações do nonsense, do fantástico, da literatura dos sonhos, do humor negro, etc. O nonsense, o fantástico e o humor negro são conceitos afins ao de absurdo no sentido moderno, mas distintos.
O nonsense seria o disparatado puro e simples, o absolutamente sem sentido, enquanto o absurdo teria sempre um sentido, embora inexplicável e recôndito; o fantástico se situaria numa fronteira indefinida entre a realidade e a irrealidade, ou seria um modo peculiar de ver a existência, através de fantasias individuais, enquanto o sentimento do absurdo estaria ligado ao real em si mesmo, independente das projeções subjetivas (e neste sentido seriam fantásticas as obras de Edgar Allan Poe, E. T. A. Hoffmann e Gérard de Nerval, enquanto modernamente a obra de Franz Kafka se poderia enquadrar na temática do absurdo existencial); e, finalmente, o humor negro (com o jornalista americano Ambrose Bierce) se caracteriza como expressão essencialmente gratuita, enquanto a noção de absurdo estaria comprometida com a busca de significação para o real.
Apesar, entretanto, dessas diferenças, a afinidade de tais manifestações com o tema do absurdo evidenciou-se em vários autores modernos, que utilizaram o nonsense e o fantástico como elementos de uma nova indagação do significado da existência; e até mesmo o humor negro, caracterizado pela gratuidade em autores de um passado recente (os surrealistas, por exemplo, Salvador Dali), revelou-se como algo carregado de novas conotações, nas obras de um Kafka ou de um Samuel Beckett.
Temos no séc. XX muitos escritores que tratam da temática do absurdo. A obra de ficção de Franz Kafka é um excelente exemplo. Em seus romances, a ação dos heróis parece destituída de significação, pois está condicionada a uma potência invisível e imprevisível. Sua obra parece indicar a inutilidade das ações humanas diante de uma lei desconhecida.
A noção do absurdo da existência, subjacente em alguns precursores da filosofia existencial (Sören Kierkegaard, Miguel de Unamuno e outros), tornou-se núcleo básico de algumas expressões filosóficas e artísticas modernas. Os existencialistas rejeitaram as hipóteses metafísicas e teológicas para a explicação da existência e introduziram a noção do fracasso ontológico do homem, cuja vida seria "uma paixão inútil" (Jean-Paul Sartre).
A tese do absurdo existencial foi explicitada por Albert Camus em Le Mythe de Sisyphe, essair sur l’absurde (O Mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo), ensaio em que o personagem mitológico Sísifo encarna a inutilidade do esforço humano. Ao lado da expressão filosófica, a obra ficcional e dramática de Sartre e Camus revelaria também, através de situações típicas, a problematização do absurdo. As mais características, nesse sentido, seriam Le Mur (O Muro), contos de Jean-Paul Sartre em que personagens decidem sobre os seus destinos contra as leis da razão social, Calígula e a La Peste (A Peste), drama e romance de Albert Camus em que os personagens se rebelam contra a própria condição humana, reduzida à sua impotência individual ou coletiva.
Os existencialistas procuraram uma saída para o dilema da condição humana, propondo a escolha lúcida do próprio destino (Sartre) ou a revolta (Camus). Esta saída foi negada pelos representantes do teatro do absurdo, que não admitem sequer a possibilidade de explicação para o real, proclamando a impotência dos atos humanos. Neles, ao sempre realista, o absurdo emerge funcionalmente na própria representação cênica, com a arte de Maurits Cornelis Escher, com a mímica grotesca, o nonsense, o humor negro e as expressões parabólicas."
fonte: M.C. Escher
Da parte dos sofistas tais métodos serviam para demonstrar, ironicamente, a falsidade das proposições de um adversário. Estabeleceram-se, assim, na escolástica, dois métodos contestatórios: a probatio per absurdum (prova pelo absurdo) e a reductio ad absurdum (redução ao absurdo). No primeiro se pretendia provar a verdade de uma proposição pela falsidade evidente de sua contraditória (por exemplo o Teorema de Pitágoras); no segundo caso ocorria uma inversão do significado inicial de uma proposição, provando-se a sua falsidade pelo exagero de suas conseqüências até o ridículo (por exemplo a Teoria dos Limites, na matemática). A reductio ad absurdum constituía-se, pois, num método irônico de ridicularizar uma doutrina adversária. Através do uso escolástico o absurdo identificou-se na Antiguidade com o conceito de falso.
Muito antes, entretanto, da escolástica, já é possível reconhecer a origem do moderno conceito de absurdo, identificação com o conceito de não racional, de algo fora dos limites da compreensão racional.
Seguindo vertentes diferentes do intelectualismo dos métodos escolásticos, e até mesmo mais antigas ao mesmo, eram as teses religiosas de Tertuliano (155 d.C.). Ele professava que a fé consiste apenas a crença, sem qualquer necessidade de compreensão racional. Ao ser acusado pelos pagãos de defender dogmas absurdos e contrários à razão, Tertuliano respondeu, em sua obra de De Carne Christi (Sobre a carne de Cristo), com a frase, Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo), erroneamente atribuída a santo Agostinho. Alguns dos principais filósofos incorporaram as disposições anti-racionais do Credo quia absurdum, entre eles santo Agostinho, santo Anselmo e são Bernardo de Clairvaux.
A noção do absurdo esteve, assim, latente nas filosofias irracionais ou nas que se recusavam a encontrar uma explicação racional para a existência. Paralelamente a essas filosofias, tal noção encontrava-se também subjacente em muitas expressões artísticas do passado, sobretudo nas manifestações do nonsense, do fantástico, da literatura dos sonhos, do humor negro, etc. O nonsense, o fantástico e o humor negro são conceitos afins ao de absurdo no sentido moderno, mas distintos.
O nonsense seria o disparatado puro e simples, o absolutamente sem sentido, enquanto o absurdo teria sempre um sentido, embora inexplicável e recôndito; o fantástico se situaria numa fronteira indefinida entre a realidade e a irrealidade, ou seria um modo peculiar de ver a existência, através de fantasias individuais, enquanto o sentimento do absurdo estaria ligado ao real em si mesmo, independente das projeções subjetivas (e neste sentido seriam fantásticas as obras de Edgar Allan Poe, E. T. A. Hoffmann e Gérard de Nerval, enquanto modernamente a obra de Franz Kafka se poderia enquadrar na temática do absurdo existencial); e, finalmente, o humor negro (com o jornalista americano Ambrose Bierce) se caracteriza como expressão essencialmente gratuita, enquanto a noção de absurdo estaria comprometida com a busca de significação para o real.
Apesar, entretanto, dessas diferenças, a afinidade de tais manifestações com o tema do absurdo evidenciou-se em vários autores modernos, que utilizaram o nonsense e o fantástico como elementos de uma nova indagação do significado da existência; e até mesmo o humor negro, caracterizado pela gratuidade em autores de um passado recente (os surrealistas, por exemplo, Salvador Dali), revelou-se como algo carregado de novas conotações, nas obras de um Kafka ou de um Samuel Beckett.
Temos no séc. XX muitos escritores que tratam da temática do absurdo. A obra de ficção de Franz Kafka é um excelente exemplo. Em seus romances, a ação dos heróis parece destituída de significação, pois está condicionada a uma potência invisível e imprevisível. Sua obra parece indicar a inutilidade das ações humanas diante de uma lei desconhecida.
A noção do absurdo da existência, subjacente em alguns precursores da filosofia existencial (Sören Kierkegaard, Miguel de Unamuno e outros), tornou-se núcleo básico de algumas expressões filosóficas e artísticas modernas. Os existencialistas rejeitaram as hipóteses metafísicas e teológicas para a explicação da existência e introduziram a noção do fracasso ontológico do homem, cuja vida seria "uma paixão inútil" (Jean-Paul Sartre).
A tese do absurdo existencial foi explicitada por Albert Camus em Le Mythe de Sisyphe, essair sur l’absurde (O Mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo), ensaio em que o personagem mitológico Sísifo encarna a inutilidade do esforço humano. Ao lado da expressão filosófica, a obra ficcional e dramática de Sartre e Camus revelaria também, através de situações típicas, a problematização do absurdo. As mais características, nesse sentido, seriam Le Mur (O Muro), contos de Jean-Paul Sartre em que personagens decidem sobre os seus destinos contra as leis da razão social, Calígula e a La Peste (A Peste), drama e romance de Albert Camus em que os personagens se rebelam contra a própria condição humana, reduzida à sua impotência individual ou coletiva.
Os existencialistas procuraram uma saída para o dilema da condição humana, propondo a escolha lúcida do próprio destino (Sartre) ou a revolta (Camus). Esta saída foi negada pelos representantes do teatro do absurdo, que não admitem sequer a possibilidade de explicação para o real, proclamando a impotência dos atos humanos. Neles, ao sempre realista, o absurdo emerge funcionalmente na própria representação cênica, com a arte de Maurits Cornelis Escher, com a mímica grotesca, o nonsense, o humor negro e as expressões parabólicas."
fonte: M.C. Escher
sábado, 15 de abril de 2006
O Juiz de Fajão, na Relação do Porto
Um dia mataram um homem na serra da Rocha, e o Juiz de Fajão, que andava Por ali à caça, viu quem o matou.
Mas como esse homem andava de mal com certo indivíduo, puseram as culpas a esse com quem ele andava de mal.
No tribunal, as testemunhas juraram que tinha sido esse fulano o assassino..
O Juiz de Fajão tinha visto, mas não podia ser ao mesmo tempo testemunha e juiz. Tinha de julgar conforme a prova testemunhal, mas também não queria condenar um inocente e deixar em liberdade o assasssino.
Então lavrou a seguinte sentença:
Julgo que bem julgo,
posto que bem mal julgado está!
Vi que não vi, morra que não morra!
Dêem o nó na corda que não corra.
E, lida a sentença, aconselhou o réu a recorrer para a Relação.
Foi o processo para a Relação do Porto, e de lá devolveram-no alegando que não entendiam os dizeres daquela sentença, especialmente aquele «chés-bés, Maria põe palha». Que era melhor lá ir.
Depois entrou, mas ninguém lhe deu cadeira para se sentar. Então ele não se desmanchou; pegou no capote, dobrou-o muito bem dobrado e sentou-se em cima dele.
Perguntaram-lhe então o que queria dizer a sentença, e ele explicou:
«Julgo bem julgo,» porque julguei conforme a prova testemunhal.» «Posto que bem mal julgado está», porque eu vi que o réu está inocente». «Vi, que não vi», porque vi quem matou mas não posso ser Juiz e testemunha». «Morra que não morra, dêem o nó na corda que não corra», porque ele não deve morrer visto que está inocente».
E pergunta o presidente da Relação:
- Então o que é isto que aqui está: «chés-bés, Maria põe palha»?
- Pois os senhores não sabem o que é chés-bés? Até um rapazito sabe o que isso é. Olhe, quando eu entrei estava ali um à porta; se o mandarem chamar, ele diz o que isso é.
Foram chamar o rapazito, e perguntaram-lhe o que quer dizer «chés-bés». Ele respondeu logo: Quer dizer etc., etc.
O Juiz da Relação não se deu por vencido, e perguntou ao Juiz de Fajão:
- Então e isto que aqui está: «Maria põe palha»?
- Sabe, Sr. Dr. Juiz, é que nós lá em Fajão temos falta de azeite para nos alumiarmos, e então deitamos palhas na fogueira para podermos escrever.
Quando a chama vai a apagar-se tem de se dizer: Maria, põe palha! O Juiz da Relação disse então:
- Pois se lá não têm azeite, mande cá uma almotolia que eu dou-lhe o azeite. « Então o senhor Juiz não leva o capote?»
- O Juiz de Fajão nunca levou cadeira donde se assentou.
* A almotolia do azeite
Como o Juiz da Relação do Porto disse ao Juiz de Fajão que mandasse lá uma almotolia, que ele lha enchia de azeite para se alumiar, o Juiz de Fajão, que não era trouxa nenhum, mandou fazer uma almotolia grande, capaz de encher o chedeiro dum carro de bois.
Chamou os latoeiros da terra e dos arredores, e quando a almotolia estava pronta, puseram-na em cima dum carro de bois e lá vão com ela para o Porto.
Chegados ali, bateram à porta do Juiz da Relação, dizendo que iam buscar a almotolia de azeite que estava prometida desde o dia tantos de tal.
A criada, que veio à porta, ficou arrelampada , e foi lá dentro dizer ao patrão: Estão ali uns homens, mandados do Sr. Juiz de Fajão, dizendo que vêm buscar a almotolia de azeite que lhe tinha prometido no dia tantos de tal; mas é uma almotolia que enche o carro!
Ora o Juiz da Relação não tinha dito qual o tamanho da almotolia, e para não dar parte de fraco teve de mandar pedir azeite emprestado para encher a almotolia do Juiz de Fajão.
Mas como esse homem andava de mal com certo indivíduo, puseram as culpas a esse com quem ele andava de mal.
No tribunal, as testemunhas juraram que tinha sido esse fulano o assassino..
O Juiz de Fajão tinha visto, mas não podia ser ao mesmo tempo testemunha e juiz. Tinha de julgar conforme a prova testemunhal, mas também não queria condenar um inocente e deixar em liberdade o assasssino.
Então lavrou a seguinte sentença:
Julgo que bem julgo,
posto que bem mal julgado está!
Vi que não vi, morra que não morra!
Dêem o nó na corda que não corra.
E, lida a sentença, aconselhou o réu a recorrer para a Relação.
Foi o processo para a Relação do Porto, e de lá devolveram-no alegando que não entendiam os dizeres daquela sentença, especialmente aquele «chés-bés, Maria põe palha». Que era melhor lá ir.
Depois entrou, mas ninguém lhe deu cadeira para se sentar. Então ele não se desmanchou; pegou no capote, dobrou-o muito bem dobrado e sentou-se em cima dele.
Perguntaram-lhe então o que queria dizer a sentença, e ele explicou:
«Julgo bem julgo,» porque julguei conforme a prova testemunhal.» «Posto que bem mal julgado está», porque eu vi que o réu está inocente». «Vi, que não vi», porque vi quem matou mas não posso ser Juiz e testemunha». «Morra que não morra, dêem o nó na corda que não corra», porque ele não deve morrer visto que está inocente».
E pergunta o presidente da Relação:
- Então o que é isto que aqui está: «chés-bés, Maria põe palha»?
- Pois os senhores não sabem o que é chés-bés? Até um rapazito sabe o que isso é. Olhe, quando eu entrei estava ali um à porta; se o mandarem chamar, ele diz o que isso é.
Foram chamar o rapazito, e perguntaram-lhe o que quer dizer «chés-bés». Ele respondeu logo: Quer dizer etc., etc.
O Juiz da Relação não se deu por vencido, e perguntou ao Juiz de Fajão:
- Então e isto que aqui está: «Maria põe palha»?
- Sabe, Sr. Dr. Juiz, é que nós lá em Fajão temos falta de azeite para nos alumiarmos, e então deitamos palhas na fogueira para podermos escrever.
Quando a chama vai a apagar-se tem de se dizer: Maria, põe palha! O Juiz da Relação disse então:
- Pois se lá não têm azeite, mande cá uma almotolia que eu dou-lhe o azeite. « Então o senhor Juiz não leva o capote?»
- O Juiz de Fajão nunca levou cadeira donde se assentou.
* A almotolia do azeite
Como o Juiz da Relação do Porto disse ao Juiz de Fajão que mandasse lá uma almotolia, que ele lha enchia de azeite para se alumiar, o Juiz de Fajão, que não era trouxa nenhum, mandou fazer uma almotolia grande, capaz de encher o chedeiro dum carro de bois.
Chamou os latoeiros da terra e dos arredores, e quando a almotolia estava pronta, puseram-na em cima dum carro de bois e lá vão com ela para o Porto.
Chegados ali, bateram à porta do Juiz da Relação, dizendo que iam buscar a almotolia de azeite que estava prometida desde o dia tantos de tal.
A criada, que veio à porta, ficou arrelampada , e foi lá dentro dizer ao patrão: Estão ali uns homens, mandados do Sr. Juiz de Fajão, dizendo que vêm buscar a almotolia de azeite que lhe tinha prometido no dia tantos de tal; mas é uma almotolia que enche o carro!
Ora o Juiz da Relação não tinha dito qual o tamanho da almotolia, e para não dar parte de fraco teve de mandar pedir azeite emprestado para encher a almotolia do Juiz de Fajão.
Contos de Fajão, Monsenhor Nunes Pereira
sexta-feira, 14 de abril de 2006
Sexta-feira Santa
Homilia do Cardeal Patriarca
"Contemplar a Cruz através do olhar de Maria"
"Contemplar a Cruz através do olhar de Maria"
1. "Stabat Mater dolorosa, iúxta Crúcem lacrimosa, dum pendébat Filius". Silenciosa aos pés da Cruz, com o coração retalhado de dor, Maria é figura da humanidade redimida. Nesta Sexta-Feira Santa convido-vos a contemplar o mistério da Cruz de Cristo, através do olhar maternal de Maria. O evangelista São João refere-nos que aos pés da Cruz, onde o Senhor entrega a vida, estavam a Mãe de Jesus, acompanhada por sua irmã Maria, mulher de Cleófas e Maria de Magdala (Jo. 19,25). Jesus tinha sido praticamente abandonado por todos. Os discípulos dispersaram-se, restando apenas João, aquele que Jesus amava; os miraculados desapareceram, as multidões que O seguiam e O aclamaram como Messias nas rua de Jerusalém, tinham pedido a Sua condenação. Só Maria, Sua Mãe, acompanhada por duas amigas e João são fiéis até ao fim. Eles vencem o medo e superam a dor e não evitam a Cruz. Essa é a primeira atitude que podemos aprender com Maria: não ter medo da Cruz, contemplá-la com amor, porque aquele crucificado é a encarnação do amor. Aproximamo-nos da Cruz porque nela está suspenso alguém que nos ama infinitamente, nosso Senhor e Mestre. Naquela Cruz joga-se o nosso destino; ali somos gerados para uma vida nova, nas núpcias misteriosas entre Deus e a humanidade; e Maria, que dera à luz o Verbo encarnado, surge como Mãe da nova humanidade, participando como mulher Mãe nesse parto doloroso da humanidade redimida. Jesus explicita essa nova maternidade de Maria, ao dizer-lhe, referindo-se a São João: "Mulher, eis o teu filho". A maldição que tinha caído sobre outra mulher, Eva, a primeira mãe da humanidade, condenada a dar à luz os seus filhos na dor (Gen. 3,16) é vencida na dor de Maria. Também ela, aos pés da Cruz, gera os novos filhos na dor, mas a sua dor é o sofrimento da redenção.
2. Aos pés da Cruz está Maria como co-redentora. Quis Deus que entre ela e o seu Filho, houvesse uma unidade de missão, e essa missão Maria aceitou-a, desde o primeiro momento, na obediência da fé. "Eu sou a Serva do Senhor, cumpra-se em mim a Tua Palavra" (Lc. 1, 38). Essa obediência total à vontade do Pai será a atitude contínua de Jesus. A Sua fidelidade é uma obediência que, segundo São Paulo, encontra a sua máxima expressão naquela Cruz: humilhando-Se ainda mais, obedeceu até à morte na Cruz (Fil. 2,8). E na Carta aos Hebreus que há pouco escutámos, diz-se que Ele, "apesar de ser Filho, aprendeu, de quanto sofrera, o que é obedecer" (Heb. 5,8). Aprender a obediência, aprofundar a atitude de abandono à vontade de Deus, eis algo que Maria não deixou de aprofundar, desde a anunciação até à Cruz. Aos pés da Cruz, tal como Seu Filho, Maria obedece, abandona-se ao desígnio misterioso de Deus e percebe, na Cruz, qual era a vontade de Deus a que se abandonara no início. A sua obediência é, agora, mais radical e profunda, pois percebe que é mais exigente aceitar a vontade de Deus acerca do Seu Filho do que acerca dela própria. A sua obediência é a mesma de Jesus, ela é co-redentora.
Contemplemo-la, no seu olhar terno e sereno, de quem abraça o mundo no dom do Seu Filho e aprendamos, com ela, a obedecer à vontade do Senhor, quando nos convida à conversão, quando nos atrai para a intimidade, quando nos envia em missão, quando nos interpela a sermos santos, como Ele é Santo. A Cruz de Cristo é, em cada momento, um apelo à conversão, um convite à confiança, um desafio de amor. Se hesitarmos na resposta, cruzemos o nosso olhar com o dela, e peçamos-lhe que seja nossa mediadora. 3. Contemplar Maria aos pés da Cruz é captar a redenção como drama, que atinge a sua profundidade no sofrimento de inocentes, pessoas cujo coração puro nunca conheceu o pecado. O sofrimento revela-se-nos, neles, não como castigo merecido da culpa, mas na força positiva da sua energia criadora. Porquê o sofrimento de corações inocentes, como o de Cristo e o coração Imaculado de Sua Mãe? Já no Antigo Testamento, nas regras da Páscoa Judaica, estava determinado que a vítima pascal deveria ser um cordeiro sem defeito (Ex. 12,5). Na nova Páscoa, Jesus, o mais puro dos homens, que exprime na natureza humana a própria pureza de Deus, é o novo Cordeiro Pascal. Fora assim que João Baptista, apontando-O com o dedo, O apresentou aos seus discípulos: "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo. 1,29). Mas no altar do sacrifício, como vítima sem mancha, acompanha-O Maria, Sua Mãe. Por isso a liturgia bizantina chama a Maria "a cordeira de Deus". Ela é, verdadeiramente, co-redentora. Contemplando Maria aos pés da Cruz, canta uma antífona daquela tradição litúrgica: "Ao ver o Cordeiro, Pastor e Redentor, injustamente levantado na Cruz, a cordeira exclama, chorando amargamente: o mundo rejubila aceitando de Ti a redenção, as minhas entranhas ardem ao ver a Tua crucifixão, que Tu sofres por misericórdia; Deus bondoso, Senhor sem pecado! A Ela clamamos com fé: alcança-nos misericórdia, ó Virgem, concede-nos a remissão dos pecados, a nós que nos prostramos diante do Teu sofrimento" (1).
Contemplamos o mistério da Cruz através do coração Imaculado da Mãe de Jesus, também ela imolada com o Cordeiro Pascal. Naquela Cruz joga-se o destino da humanidade pecadora, o destino de cada um de nós. Mesmo que sofrêssemos todas as dores do mundo, elas não mereceriam a nossa redenção. Interpretá-las-íamos como castigo dos nossos pecados, porventura como vingança de Deus. Só corações inocentes podiam acolher o sofrimento como expressão dramática do amor de Deus ofendido, percebendo-lhe a grandeza do amor misericordioso. Num coração inocente o sofrimento é todo dom e oferta, é hino de louvor. Fixando o nosso olhar em Maria, Mãe dolorosa, percebemos a dramaticidade do pecado como ofensa à glória devida a Deus. A gravidade do pecado consiste nisso: que uma criatura criada à imagem de Deus, exerça a sua liberdade contra o desígnio amoroso desse mesmo Deus. Ao tomarem sobre si os nossos pecados, Jesus e Sua Mãe, sem nunca terem pecado, não se limitam a sofrer em vez dos pecadores, sofrem por causa do pecado, com tal intensidade, que repõem a glória ofendida e restituem, como que em nova criação, a capacidade de os homens pecadores se abandonarem à misericórdia.
4. Recomeça ali, aos pés daquela Cruz, uma nova possibilidade de fidelidade à aliança com Deus, nasce um povo novo, gerado na inocência do seio virginal da Igreja, de que Maria é Mãe e figura. "Depois Jesus disse ao discípulo: eis a tua Mãe" (Jo. 19,27). Aos pés da Cruz, contemplando Maria, descobrimos a fecundidade virginal da Igreja, que nos gera na inocência, para um caminho novo de fidelidade. Como aconteceu com Jesus e Sua Mãe, a inocência não nos liberta do sofrimento; mas permite-nos aceitar todo o sofrimento e fazer dele um dom, dando-lhe força redentora. Contemplando Maria, aos pés da Cruz, aprenderemos, com ela, a abraçar a nossa cruz, e fazer dela oferta eucarística e hóstia de louvor, para a redenção do mundo.
Sé Patriarcal, 29 de Março de 2002
NOTA: 1 - Joseph L'Edit, Marie dans la Liturgie de Byzance, pp. 194
2. Aos pés da Cruz está Maria como co-redentora. Quis Deus que entre ela e o seu Filho, houvesse uma unidade de missão, e essa missão Maria aceitou-a, desde o primeiro momento, na obediência da fé. "Eu sou a Serva do Senhor, cumpra-se em mim a Tua Palavra" (Lc. 1, 38). Essa obediência total à vontade do Pai será a atitude contínua de Jesus. A Sua fidelidade é uma obediência que, segundo São Paulo, encontra a sua máxima expressão naquela Cruz: humilhando-Se ainda mais, obedeceu até à morte na Cruz (Fil. 2,8). E na Carta aos Hebreus que há pouco escutámos, diz-se que Ele, "apesar de ser Filho, aprendeu, de quanto sofrera, o que é obedecer" (Heb. 5,8). Aprender a obediência, aprofundar a atitude de abandono à vontade de Deus, eis algo que Maria não deixou de aprofundar, desde a anunciação até à Cruz. Aos pés da Cruz, tal como Seu Filho, Maria obedece, abandona-se ao desígnio misterioso de Deus e percebe, na Cruz, qual era a vontade de Deus a que se abandonara no início. A sua obediência é, agora, mais radical e profunda, pois percebe que é mais exigente aceitar a vontade de Deus acerca do Seu Filho do que acerca dela própria. A sua obediência é a mesma de Jesus, ela é co-redentora.
Contemplemo-la, no seu olhar terno e sereno, de quem abraça o mundo no dom do Seu Filho e aprendamos, com ela, a obedecer à vontade do Senhor, quando nos convida à conversão, quando nos atrai para a intimidade, quando nos envia em missão, quando nos interpela a sermos santos, como Ele é Santo. A Cruz de Cristo é, em cada momento, um apelo à conversão, um convite à confiança, um desafio de amor. Se hesitarmos na resposta, cruzemos o nosso olhar com o dela, e peçamos-lhe que seja nossa mediadora. 3. Contemplar Maria aos pés da Cruz é captar a redenção como drama, que atinge a sua profundidade no sofrimento de inocentes, pessoas cujo coração puro nunca conheceu o pecado. O sofrimento revela-se-nos, neles, não como castigo merecido da culpa, mas na força positiva da sua energia criadora. Porquê o sofrimento de corações inocentes, como o de Cristo e o coração Imaculado de Sua Mãe? Já no Antigo Testamento, nas regras da Páscoa Judaica, estava determinado que a vítima pascal deveria ser um cordeiro sem defeito (Ex. 12,5). Na nova Páscoa, Jesus, o mais puro dos homens, que exprime na natureza humana a própria pureza de Deus, é o novo Cordeiro Pascal. Fora assim que João Baptista, apontando-O com o dedo, O apresentou aos seus discípulos: "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo. 1,29). Mas no altar do sacrifício, como vítima sem mancha, acompanha-O Maria, Sua Mãe. Por isso a liturgia bizantina chama a Maria "a cordeira de Deus". Ela é, verdadeiramente, co-redentora. Contemplando Maria aos pés da Cruz, canta uma antífona daquela tradição litúrgica: "Ao ver o Cordeiro, Pastor e Redentor, injustamente levantado na Cruz, a cordeira exclama, chorando amargamente: o mundo rejubila aceitando de Ti a redenção, as minhas entranhas ardem ao ver a Tua crucifixão, que Tu sofres por misericórdia; Deus bondoso, Senhor sem pecado! A Ela clamamos com fé: alcança-nos misericórdia, ó Virgem, concede-nos a remissão dos pecados, a nós que nos prostramos diante do Teu sofrimento" (1).
Contemplamos o mistério da Cruz através do coração Imaculado da Mãe de Jesus, também ela imolada com o Cordeiro Pascal. Naquela Cruz joga-se o destino da humanidade pecadora, o destino de cada um de nós. Mesmo que sofrêssemos todas as dores do mundo, elas não mereceriam a nossa redenção. Interpretá-las-íamos como castigo dos nossos pecados, porventura como vingança de Deus. Só corações inocentes podiam acolher o sofrimento como expressão dramática do amor de Deus ofendido, percebendo-lhe a grandeza do amor misericordioso. Num coração inocente o sofrimento é todo dom e oferta, é hino de louvor. Fixando o nosso olhar em Maria, Mãe dolorosa, percebemos a dramaticidade do pecado como ofensa à glória devida a Deus. A gravidade do pecado consiste nisso: que uma criatura criada à imagem de Deus, exerça a sua liberdade contra o desígnio amoroso desse mesmo Deus. Ao tomarem sobre si os nossos pecados, Jesus e Sua Mãe, sem nunca terem pecado, não se limitam a sofrer em vez dos pecadores, sofrem por causa do pecado, com tal intensidade, que repõem a glória ofendida e restituem, como que em nova criação, a capacidade de os homens pecadores se abandonarem à misericórdia.
4. Recomeça ali, aos pés daquela Cruz, uma nova possibilidade de fidelidade à aliança com Deus, nasce um povo novo, gerado na inocência do seio virginal da Igreja, de que Maria é Mãe e figura. "Depois Jesus disse ao discípulo: eis a tua Mãe" (Jo. 19,27). Aos pés da Cruz, contemplando Maria, descobrimos a fecundidade virginal da Igreja, que nos gera na inocência, para um caminho novo de fidelidade. Como aconteceu com Jesus e Sua Mãe, a inocência não nos liberta do sofrimento; mas permite-nos aceitar todo o sofrimento e fazer dele um dom, dando-lhe força redentora. Contemplando Maria, aos pés da Cruz, aprenderemos, com ela, a abraçar a nossa cruz, e fazer dela oferta eucarística e hóstia de louvor, para a redenção do mundo.
Sé Patriarcal, 29 de Março de 2002
NOTA: 1 - Joseph L'Edit, Marie dans la Liturgie de Byzance, pp. 194
Sexta-feira da Paixão
Sexta-feira da Paixão
Em sua obra Festas e Tradições Populares do Brasil (reeditada pela Ediouro, Rio de Janeiro/RJ, cerca de 1985), Melo Morais Filho conta um pouco sobre os usos e costumes da Semana Santa no Brasil, em fins do século XIX e início do século XX:
A Procissão do Enterro
O perdão das injúrias, o bem pelo mal, eram neste dia os orvalhos que reverdeciam as flores que se fanavam da fé. A morte do Cristo dissipava o horror da imortalidade e fazia cintilar a esperança nas plagas nebulosas da vida eterna. A crença pública imobilizava-se nas raias contemplativas, onde as ações boas conferenciavam entre si.
Como uma repercussão das palavras que o filho de Deus deixara cair dos lábios no alto do Gólgota, o Imperador perdoava a criminosos. Inimigos vinham de longe reconciliar-se; as famílias reatavam relações partidas; o filho rebelde inclinava diante do pai a fronte já obediente; e o escravo fugido comparecia indultado perante o senhor.
Nas fazendas, o eito e o tronco não gotejavam sangue, as gargalheiras não maceravam as vítimas, as correntes do cepo não mordiam o pé do cativo nas torturas das senzalas. Era o reinado da paz e do perdão; o único dia talvez em que se consideravam bem-aventurados aqueles que choravam!
E a penitência e a devoção encaminhavam à casa de Deus a turba pacífica. Na Capela Imperial, as velas gastas na vigília ao Santíssimo fumavam, avivando o lume dos morrões esbraseados e longos. A igreja conservava as portas cerradas em sinal de dó, o interior era sombrio, e os sacerdotes, aparecendo da sacristia, tomavam o altar-mor: o ofício da Paixão começava abrupto.
A adoração da cruz, deitada ao longo no chão do presbitério, o bispo e o cabido faziam prosternados, findo o que, a comunhão derradeira da semana celebrava-se solene.
A Paixão, que iniciava-se por uma profecia, era o Evangelho dialogado em canto gregoriano. Os Judeus, o Cristo, Pilatos e os Apóstolos exibiam-se na cena sagrada, tendo por intérpretes o coro e três padres, sque, de dois púlpitos e da laje do templo, entretinham a ação, combinando trechos bíblicos com as cadências sublimes de antigüidade remota. No desempenho da tragédia divina, os padres, elevando os braços, alteavam a voz, - Eram os bradados. A paixão concluía-se pelo ofício de Trevas, que, em tempos afastados, precedia de pouco à saída da procissão do Enterro.
Das oito para as nove horas da noite, duas dessas procissões percorriam as ruas da cidade; a do Carmo e a de S. Francisco de Paula. Escolhendo como tipo a do Carmo, a sua descrição é curiosa, resistindo severa a confrontos longínquos.
Na primitiva, os personagens do cortejo eram menos numerosos; porém, uma espécie de prólogo, de intermédio dramático, numa encenação de efeito, dava a conhecer os principais caracteres.
***
Em 1831, por volta das quatro horas da tarde, a procissão do Enterro estava na rua, sendo utilizados, para se encarregarem de diversos papéis, cantores e músicos do ofício de Trevas.
Esgotadas as práticas de sexta-feira na Capela Imperial, o Carmo enchia-se de povo para observar uma verdadeira cena de teatro. A um sinal convencionado, abriam-se as cortinas de damasco do coro, e as figuras que tinham de formar o préstito fúnebre apareciam agrupadas, causando grande sensação.
Minutos depois, cerrava-se o pano, e aqueles personagens incorporavam-se nas ruas populosas ao cortejo admirável. A procissão do Enterro, como se fazia mais recentemente, suprimira esta cena histórica, acrescentando, como compensação, novas figuras e mais avultados acessórios.
A procissão do Carmo saía às oito horas da noite. A multidão, apinhada no largo do Paço, defronte da igreja, e na rua Direita, movia-se em massa, aqui e ali, como uma onda de asfalto fervente, negra e espelhante.
O luar batia ao longe no mar e polia as paredes brancas e as sacadas dos edifícios, de onde centenas de famílias debruçavam-se sôfregas. As luminárias douravam das janelas e sacadas, as colchas flutuantes ao vento, produzindo os reflexos iriados uma perspectiva brilhante.
Com os tambores forrados de preto, a bandeira enlaçada de crepe e as armas em funeral, um batalhão da guarda nacional postava-se a um lado da praça para as honras fúnebres do saimento.
A um momento inesperado, súbito clarão golfejava da porta principal da igreja que se abria. A gente que ocupava o adro, descia; o povo separava-se em alas na rua Direita; os sineiros, no alto da torre, despencavam o corpo, abraçando a cabeça dos sinos; e todos voltavam o rosto, estirando o pescoço, para o alpendre do templo. As pessoas mais sisudas e discretas colocavam-se a maior distância, o que deveras convinha à apreciação do aparatoso ato.
Bem como enorme pedaço de veludo negro, cortado por dois galões de fogo, assim era aquela trilha, serpeada pelas luzes das tochas em profusão. A procissão havia saído... De há tantos anos passados, falemos do préstito, revivendo recordações.
Rompendo a marcha e levando adiante de si a multidão que se atropelava, seis soldados da cavalaria da polícia, com espadas desembainhadas, alinhavam o povo.
As mulheres suspendiam nos braços as criancinhas sonolentas, o chefe de família dispunha, segundo a idade e o tamanho, os filhos e as senhoras, para que bem vissem; e nas portas escuras, trepados em mochos, os escravos procuravam, da melhor forma, espiar o que se passava. O rebuliço e os arremessos eram infalíveis, como se pode deduzir. E a matraca, batida por um indivíduo vestido de balandrau, troava...
Equilibrado por um irmão do Carmo, o Lábaro romano campeava nas alturas com a vistosa incrição em letras de ouro: S. P. Q. R. À sua sombra, o Farricoco, envergando uma túnica escura, com capuz sobre a cabeça, e máscara aberta para os olhos e boca, simbolizando os Novíssimos do Homem, tocava uma trombeta, sustendo na mão esquerda uma comprida e fina vela de cera, da qual a instantes sacudia os pingos.
Com este personagem bizarro começavam a passar os Terceiros da confraria, com seus hábitos próprios, empunhando grossas e pesadas tochas, conduzindo alguns, pela mão, um anjinho, cada qual com um instrumento da Paixão.
Nessa procissão, como nas demais, os comerciantes portugueses que representavam as riquíssimas irmandades adornavam-se de suas condecorações nacionais, cravejadas de finíssimas pedras e de brilhantes de raro valor.
Pode-se dizer que a confraria do Carmo comparecia toda, preenchendo os irmãos os grandes claros, os intervalos prolongados, entre a aparição dos personagens que a crença daquela época supunha haverem acompanhado o enterro do Cristo.
O préstito parava amiúde; os anjinhos, fatigados, iam quase de rastos; e o guião, com o seu séquito de irmãos da Misericórdia, com castiçais de pau e velas acesas, obscurecia os ares, azuladamente transparentes pelo brilho da lua cheia.
E nem mais se ouvia a matraca... O Farricoco perdera-se de vista. A este, porém, vinte minutos mais tarde, seguiam-se os quatro Profetas maiores, em costumes de mouros, perfilando ao ombro escadinhas de pinho, marchando impertubáveis. Este grupo, barbado e de cabelos cacheados, não passava isento de motejos. E os irmãos prosseguiam, os anjinhos mais desenvolvidos marchavam, balançando a perninha, e os Profetas lá iam...
Um destacamento da guarda romana, com alabardas, lanças e escudos raiantes, assomava após, capitaneado por um Centurião, homem colossal e resoluto. De viseira e capacete de couraceiro, com sua banda de seda franjada de ouro, levantava o passo graduado, deixando assentar a pesada e enorme alabarda nas pedras, que estrondavam à pancada. Os rapazes gostavam desta figura e aplaudiam o desgarre.
Os anjinhos, portadores da coluna, da cana e da coroa de espinhos, indicavam que o sarcófago do Senhor passaria em breve. Então, as três Marias, que eram músicos vestidos de dominós pretos e de máscara, avizinhavam-se, com as suas auréloas em volta da cabeça, fazendo leves mesuras, e murmurando lugubremente: - Behu! Behu!
A estes figurantes, que tornavam-se às vezes ridículos a espíritos imprudentes e pouco refletidos, sucedia o coro dos músicos da Capela e o Anjo-cantor. O Anjo-cantor era uma beleza de dezesseis a dezoito anos, ricamente vestida e cingindo um diadema de ouro e brilhantes.
Subindo uma escada de degraus largos, quando entoava, desenrolando o sudário ensangüentado, a antífona - O vos omnes qui transitis per viam - sentia-se que por ali ia passar alguma coisa de divino. As flores, atiradas das janelas, forravam-lhe o caminho; o esquife do Senhor aparecia.
À semelhança de um lago de estrelas frias, o sarcófago de prata maciça oscilava ao ombro de frades do Carmo, de alva e estola atravessada, coroados de espinhos. O religioso silêncio que dominava as multidões era apenas quebrado pelos rufos abafados de tambores, e pela marcha fúnebre que se executava longínqua.
Em seguida, vinha o andor de Nossa Senhora, carregado por irmãos do Carmo. Como o esquife, este andor era todo de prata esculpida, mas guarnecido nas quatro faces por estreitas cortinas cor de violeta e douradas, que terminavam em ricas franjas de ouro. A sagrada imagem no seu pedestal rodeado de ciprestes, impunha-se como santa, como virgem e como mãe!
Este cortejo era fechado pelo batalhão, cuja música tocava, durante o trajeto, marchas fúnebres. Só depois das onze horas a procissão recolhia-se à igreja de onde saíra, ficando por mais algum tempo as imagens expostas à adoração do público.
Pouco depois, o sermão de lágrimas, outrora verdadeiro primor de eloqüência, era declamado pelo orador mais célebre aos fiéis reunidos naquele sacrário de dor. Muita gente do povo percorria os Passos, visitava os Hortos, ficava estacionada nos adros das igrejas expostas ao público.
Igual procissão, que saía de S. Francisco de Paula, tinha seus partidários, seus devotos, mas itinerário diverso.
Sentadas nas calçadas, ao longo das ruas, dos degraus das igrejas, as vendedeiras de doces e confeitos arriavam os tabuleiros, dentro dos quais uma lanterninha de folha-de-flandres, com uma vela acesa, alumiava os mostradores ambulantes.
À distância, essa miríada de luzes movediças dava a idéia de uma noite clara dos trópicos, com as suas moitas cheias de luz e suas campinas chuviscadas de vagalumes.
Da Semana Santa, cujo livro de costumes o nacionalismo brasileiro atirou ao olvido, salve-se ao menos esta lauda da tradição.
Em sua obra Festas e Tradições Populares do Brasil (reeditada pela Ediouro, Rio de Janeiro/RJ, cerca de 1985), Melo Morais Filho conta um pouco sobre os usos e costumes da Semana Santa no Brasil, em fins do século XIX e início do século XX:
A Procissão do Enterro
O perdão das injúrias, o bem pelo mal, eram neste dia os orvalhos que reverdeciam as flores que se fanavam da fé. A morte do Cristo dissipava o horror da imortalidade e fazia cintilar a esperança nas plagas nebulosas da vida eterna. A crença pública imobilizava-se nas raias contemplativas, onde as ações boas conferenciavam entre si.
Como uma repercussão das palavras que o filho de Deus deixara cair dos lábios no alto do Gólgota, o Imperador perdoava a criminosos. Inimigos vinham de longe reconciliar-se; as famílias reatavam relações partidas; o filho rebelde inclinava diante do pai a fronte já obediente; e o escravo fugido comparecia indultado perante o senhor.
Nas fazendas, o eito e o tronco não gotejavam sangue, as gargalheiras não maceravam as vítimas, as correntes do cepo não mordiam o pé do cativo nas torturas das senzalas. Era o reinado da paz e do perdão; o único dia talvez em que se consideravam bem-aventurados aqueles que choravam!
E a penitência e a devoção encaminhavam à casa de Deus a turba pacífica. Na Capela Imperial, as velas gastas na vigília ao Santíssimo fumavam, avivando o lume dos morrões esbraseados e longos. A igreja conservava as portas cerradas em sinal de dó, o interior era sombrio, e os sacerdotes, aparecendo da sacristia, tomavam o altar-mor: o ofício da Paixão começava abrupto.
A adoração da cruz, deitada ao longo no chão do presbitério, o bispo e o cabido faziam prosternados, findo o que, a comunhão derradeira da semana celebrava-se solene.
A Paixão, que iniciava-se por uma profecia, era o Evangelho dialogado em canto gregoriano. Os Judeus, o Cristo, Pilatos e os Apóstolos exibiam-se na cena sagrada, tendo por intérpretes o coro e três padres, sque, de dois púlpitos e da laje do templo, entretinham a ação, combinando trechos bíblicos com as cadências sublimes de antigüidade remota. No desempenho da tragédia divina, os padres, elevando os braços, alteavam a voz, - Eram os bradados. A paixão concluía-se pelo ofício de Trevas, que, em tempos afastados, precedia de pouco à saída da procissão do Enterro.
Das oito para as nove horas da noite, duas dessas procissões percorriam as ruas da cidade; a do Carmo e a de S. Francisco de Paula. Escolhendo como tipo a do Carmo, a sua descrição é curiosa, resistindo severa a confrontos longínquos.
Na primitiva, os personagens do cortejo eram menos numerosos; porém, uma espécie de prólogo, de intermédio dramático, numa encenação de efeito, dava a conhecer os principais caracteres.
***
Em 1831, por volta das quatro horas da tarde, a procissão do Enterro estava na rua, sendo utilizados, para se encarregarem de diversos papéis, cantores e músicos do ofício de Trevas.
Esgotadas as práticas de sexta-feira na Capela Imperial, o Carmo enchia-se de povo para observar uma verdadeira cena de teatro. A um sinal convencionado, abriam-se as cortinas de damasco do coro, e as figuras que tinham de formar o préstito fúnebre apareciam agrupadas, causando grande sensação.
Minutos depois, cerrava-se o pano, e aqueles personagens incorporavam-se nas ruas populosas ao cortejo admirável. A procissão do Enterro, como se fazia mais recentemente, suprimira esta cena histórica, acrescentando, como compensação, novas figuras e mais avultados acessórios.
A procissão do Carmo saía às oito horas da noite. A multidão, apinhada no largo do Paço, defronte da igreja, e na rua Direita, movia-se em massa, aqui e ali, como uma onda de asfalto fervente, negra e espelhante.
O luar batia ao longe no mar e polia as paredes brancas e as sacadas dos edifícios, de onde centenas de famílias debruçavam-se sôfregas. As luminárias douravam das janelas e sacadas, as colchas flutuantes ao vento, produzindo os reflexos iriados uma perspectiva brilhante.
Com os tambores forrados de preto, a bandeira enlaçada de crepe e as armas em funeral, um batalhão da guarda nacional postava-se a um lado da praça para as honras fúnebres do saimento.
A um momento inesperado, súbito clarão golfejava da porta principal da igreja que se abria. A gente que ocupava o adro, descia; o povo separava-se em alas na rua Direita; os sineiros, no alto da torre, despencavam o corpo, abraçando a cabeça dos sinos; e todos voltavam o rosto, estirando o pescoço, para o alpendre do templo. As pessoas mais sisudas e discretas colocavam-se a maior distância, o que deveras convinha à apreciação do aparatoso ato.
Bem como enorme pedaço de veludo negro, cortado por dois galões de fogo, assim era aquela trilha, serpeada pelas luzes das tochas em profusão. A procissão havia saído... De há tantos anos passados, falemos do préstito, revivendo recordações.
Rompendo a marcha e levando adiante de si a multidão que se atropelava, seis soldados da cavalaria da polícia, com espadas desembainhadas, alinhavam o povo.
As mulheres suspendiam nos braços as criancinhas sonolentas, o chefe de família dispunha, segundo a idade e o tamanho, os filhos e as senhoras, para que bem vissem; e nas portas escuras, trepados em mochos, os escravos procuravam, da melhor forma, espiar o que se passava. O rebuliço e os arremessos eram infalíveis, como se pode deduzir. E a matraca, batida por um indivíduo vestido de balandrau, troava...
Equilibrado por um irmão do Carmo, o Lábaro romano campeava nas alturas com a vistosa incrição em letras de ouro: S. P. Q. R. À sua sombra, o Farricoco, envergando uma túnica escura, com capuz sobre a cabeça, e máscara aberta para os olhos e boca, simbolizando os Novíssimos do Homem, tocava uma trombeta, sustendo na mão esquerda uma comprida e fina vela de cera, da qual a instantes sacudia os pingos.
Com este personagem bizarro começavam a passar os Terceiros da confraria, com seus hábitos próprios, empunhando grossas e pesadas tochas, conduzindo alguns, pela mão, um anjinho, cada qual com um instrumento da Paixão.
Nessa procissão, como nas demais, os comerciantes portugueses que representavam as riquíssimas irmandades adornavam-se de suas condecorações nacionais, cravejadas de finíssimas pedras e de brilhantes de raro valor.
Pode-se dizer que a confraria do Carmo comparecia toda, preenchendo os irmãos os grandes claros, os intervalos prolongados, entre a aparição dos personagens que a crença daquela época supunha haverem acompanhado o enterro do Cristo.
O préstito parava amiúde; os anjinhos, fatigados, iam quase de rastos; e o guião, com o seu séquito de irmãos da Misericórdia, com castiçais de pau e velas acesas, obscurecia os ares, azuladamente transparentes pelo brilho da lua cheia.
E nem mais se ouvia a matraca... O Farricoco perdera-se de vista. A este, porém, vinte minutos mais tarde, seguiam-se os quatro Profetas maiores, em costumes de mouros, perfilando ao ombro escadinhas de pinho, marchando impertubáveis. Este grupo, barbado e de cabelos cacheados, não passava isento de motejos. E os irmãos prosseguiam, os anjinhos mais desenvolvidos marchavam, balançando a perninha, e os Profetas lá iam...
Um destacamento da guarda romana, com alabardas, lanças e escudos raiantes, assomava após, capitaneado por um Centurião, homem colossal e resoluto. De viseira e capacete de couraceiro, com sua banda de seda franjada de ouro, levantava o passo graduado, deixando assentar a pesada e enorme alabarda nas pedras, que estrondavam à pancada. Os rapazes gostavam desta figura e aplaudiam o desgarre.
Os anjinhos, portadores da coluna, da cana e da coroa de espinhos, indicavam que o sarcófago do Senhor passaria em breve. Então, as três Marias, que eram músicos vestidos de dominós pretos e de máscara, avizinhavam-se, com as suas auréloas em volta da cabeça, fazendo leves mesuras, e murmurando lugubremente: - Behu! Behu!
A estes figurantes, que tornavam-se às vezes ridículos a espíritos imprudentes e pouco refletidos, sucedia o coro dos músicos da Capela e o Anjo-cantor. O Anjo-cantor era uma beleza de dezesseis a dezoito anos, ricamente vestida e cingindo um diadema de ouro e brilhantes.
Subindo uma escada de degraus largos, quando entoava, desenrolando o sudário ensangüentado, a antífona - O vos omnes qui transitis per viam - sentia-se que por ali ia passar alguma coisa de divino. As flores, atiradas das janelas, forravam-lhe o caminho; o esquife do Senhor aparecia.
À semelhança de um lago de estrelas frias, o sarcófago de prata maciça oscilava ao ombro de frades do Carmo, de alva e estola atravessada, coroados de espinhos. O religioso silêncio que dominava as multidões era apenas quebrado pelos rufos abafados de tambores, e pela marcha fúnebre que se executava longínqua.
Em seguida, vinha o andor de Nossa Senhora, carregado por irmãos do Carmo. Como o esquife, este andor era todo de prata esculpida, mas guarnecido nas quatro faces por estreitas cortinas cor de violeta e douradas, que terminavam em ricas franjas de ouro. A sagrada imagem no seu pedestal rodeado de ciprestes, impunha-se como santa, como virgem e como mãe!
Este cortejo era fechado pelo batalhão, cuja música tocava, durante o trajeto, marchas fúnebres. Só depois das onze horas a procissão recolhia-se à igreja de onde saíra, ficando por mais algum tempo as imagens expostas à adoração do público.
Pouco depois, o sermão de lágrimas, outrora verdadeiro primor de eloqüência, era declamado pelo orador mais célebre aos fiéis reunidos naquele sacrário de dor. Muita gente do povo percorria os Passos, visitava os Hortos, ficava estacionada nos adros das igrejas expostas ao público.
Igual procissão, que saía de S. Francisco de Paula, tinha seus partidários, seus devotos, mas itinerário diverso.
Sentadas nas calçadas, ao longo das ruas, dos degraus das igrejas, as vendedeiras de doces e confeitos arriavam os tabuleiros, dentro dos quais uma lanterninha de folha-de-flandres, com uma vela acesa, alumiava os mostradores ambulantes.
À distância, essa miríada de luzes movediças dava a idéia de uma noite clara dos trópicos, com as suas moitas cheias de luz e suas campinas chuviscadas de vagalumes.
Da Semana Santa, cujo livro de costumes o nacionalismo brasileiro atirou ao olvido, salve-se ao menos esta lauda da tradição.
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